Rússia e suas raízes muçulmanas
Mais de 15% da população da Federação Russa é muçulmana e 8 de suas 21 repúblicas autônomas adotam o Islã como religião oficial. É com esses argumentos que Moscou reivindica uma relação política privilegiada com o conjunto do mundo árabe, sob o objetivo declarado de “reforçar a multipolaridade global”
Apesar da repressão impiedosa que acabara de impor aos rebeldes da Chechênia, em 10 de outubro de 2003 o então presidente russo Vladimir Putin tornou-se o primeiro chefe de um Estado com maioria não-muçulmana a tomar a palavra na cúpula da Organização da Conferência Islâmica, que reúne 57 Estados muçulmanos. Um sucesso político e diplomático. Valorizando o fato de que a Federação da Rússia conta com mais de 15% de muçulmanos1 e que os povos originários de oito de suas 21 repúblicas autônomas adotam a religião islâmica2, a Rússia obteve o status de membro observador dessa organização internacional. E isso graças ao apoio um tanto paradoxal da Arábia Saudita e do Irã.
Antes dos cristãos
Desde então, Putin e outros dirigentes russos, entre eles o ministro de Relações Exteriores, Serguei Lavrov, fazem questão de afirmar que a Rússia, “de certa forma, integra o mundo muçulmano”. Numa entrevista concedida à Al Jazeera, em 16 de outubro de 2003, Putin ressaltou que, contrariamente aos muçulmanos que vivem no Leste Europeu, os que moram na Rússia são autóctones. Ele afirmou até mesmo que a presença do Islã no território russo é anterior à do cristianismo3…
É sobre essa base que Moscou reivindica uma relação política privilegiada com o conjunto do mundo árabe e muçulmano. As lideranças russas parecem acreditar que seu país, considerado um Estado principalmente europeu, tem uma missão histórica a cumprir como mediador entre dois mundos, o ocidental e o muçulmano.
Três grandes razões podem explicar o sentido e o alcance dessas reivindicações e das políticas relacionadas a elas. Antes de tudo, a pretensão russa visa enfrentar os efeitos deletérios da guerra da Chechênia, tanto em seu próprio território como no resto do mundo. O objetivo é o de evitar, ou pelo menos limitar, a polarização entre a maioria étnica russa e os muçulmanos que moram no país, reforçando o sentimento destes últimos em pertencer ao Estado. “É preciso impedir a islamofobia”, afirmou Putin na mesma entrevista. Uma tarefa difícil quando se decide empreender uma caça – não só na Chechênia – a todos os fundamentalistas muçulmanos, ainda que alguns sejam considerados apenas suspeitos. “O terrorismo não deve ser identificado com nenhuma religião, cultura ou tradição”, garantiu ele.
Se antes e pouco depois dos ataques de 11 de setembro de 2001 Putin designava os rebeldes chechenos sistematicamente como “terroristas fundamentalistas muçulmanos”, agora ele fala de “terroristas ligados a redes internacionais de traficantes de droga e armamentos”, evitando assim a freqüente referência ao Islã.
A busca de uma ligação privilegiada com o mundo árabe e muçulmano tem, em segundo lugar, o objetivo oficial da política externa russa de “reforçar a multipolaridade no mundo”. Leia-se: sustentar e desenvolver pólos de resistência à hegemonia e ao unilateralismo dos Estados Unidos. Trata-se de tirar vantagem da hostilidade geral diante da política externa de Washington no conjunto do mundo árabe e muçulmano. Desde a URSS os russos já se apresentavam como aliados naturais dos Estados árabes antiimperialistas e de “orientação socialista”. E, após a queda do Muro de Berlim, procuraram estabelecer relações políticas fortes não apenas com o Irã e a Síria, mas também com a Arábia Saudita, o Egito e a Turquia, havia muito tempo próximos dos Estados Unidos.
Armamento de alta performance
As considerações econômicas pesam bastante, principalmente no setor de energia, locomotiva que propiciou o retorno da Rússia no cenário internacional. O Kremlin vê na energia nuclear e na exportação de centrais um importante campo para o futuro, capaz de dar ao país competitividade mundial nas áreas de alta tecnologia e de torná-lo algo mais do que um mero exportador de matérias-primas energéticas. O mesmo vale para as remessas ao exterior de armamentos de ponta, setor de alta performance da economia soviética e que enfrentou graves dificuldades nos anos 1990.
Não são mais as alianças formais que o Kremlin busca. Assim como na Organização de Cooperação de Xangai (Rússia, China, Casaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão), são as relações políticas fortes, mas não restritivas, que Moscou quer, sem que para isso faça oposição direta aos Estados Unidos. É significativo que o Irã seja mantido num status de observador da Organização de Xangai, quando gostaria de tornar-se membro.
Por fim, a terceira ordem de explicação dessa nova política dirigida ao mundo muçulmano inclui a tortuosa busca de identidade da Rússia pós-soviética, tanto no plano interno como no internacional. Nesse sentido, ela não traz apenas um otimismo político circunstancial. Em 2005, o acadêmico Sergei Rogov escreveu na revista oficial do Ministério de Relações Exteriores que “o fator islâmico na política russa era antes de tudo uma busca de identidade4. Essa é uma das razões pelas quais a Rússia não pode ser um Estado-nação no sentido europeu do termo”. E complementa: “Nossas relações com o mundo islâmico concernem diretamente nossa segurança”.
É preciso entender o que isso quer dizer. Em setembro de 2003, Igor Ivanov, então ministro de Relações Exteriores, afirmava que a guerra do Iraque tinha provocado o aumento do número de atentados terroristas no território russo – como, aliás, no mundo todo. E isso foi antes da tragédia em Beslan5. As conseqüências previsíveis do conflito no país árabe explicam a posição de Moscou. Todos se lembram da oposição combinada de França, Alemanha e Rússia no Conselho de Segurança das Nações Unidas, fato que privou de legitimidade internacional o conflito iniciado pelos Estados Unidos. Por meio dessa aliança, Moscou esperava então ver emergir um novo vetor de multipolaridade.
Os dirigentes russos, tendo Putin e Dmitri Medvedev à frente, parecem realmente inquietos ao ver a idéia do “choque de civilizações” tornar-se uma profecia auto-realizadora. Pouco depois da guerra do Afeganistão, da guerra do Iraque e do apoio incondicional e sem precedentes de Washington às políticas mais intransigentes de Israel, os líderes da Rússia classificaram como uma catástrofe nos negócios mundiais o possível ataque americano ao Irã. Segundo eles, uma ação desse tipo teria conseqüências desestabilizadoras enorme
s nessa vasta região, inclusive em várias antigas repúblicas soviéticas e na própria Rússia.
Essa é uma das chaves para entender a relação complexa e difícil que a Rússia mantém com o Irã. De um lado, Teerã conta com um parceiro geopolítico importante, além de ser o terceiro principal cliente das indústrias de armamento russas, depois da China e da Índia, assim como uma vitrine para a exportação controlada de centrais nucleares. Justamente por isso, seus dirigentes sempre se abstiveram de expressar apoio à rebelião chechena. Da mesma forma, dois países cooperaram para apoiar ativamente as forças de oposição armadas aos talibãs no Afeganistão, bem antes que os Estados Unidos o fizessem – é preciso lembrar que o Afeganistão dos talibãs foi o único Estado no mundo a reconhecer a independência da Chechênia, sem falar na ajuda que prestou aos combatentes chechenos.
De outro lado, Moscou denuncia os propósitos do presidente Mahmoud Ahmadinejad sobre Israel, qualificados como “vergonhosos” pelo governo russo, e exerce pressões significativas sobre Teerã, principalmente votando com Washington, no Conselho de Segurança da ONU, sanções econômicas aos parceiros.
Correndo o risco de uma deterioração das relações com o Irã, o Kremlin quer mostrar aos Estados Unidos e aos outros países ocidentais que a Rússia se comporta como ator responsável no regime de não-proliferação do armamento nuclear. Ao mesmo tempo, tenta convencer Teerã a encontrar um modus vivendi com a Agência Internacional da Energia Atômica (AIEA). Participando de sanções limitadas e graduais, a Rússia espera afastar o máximo possível o espectro de uma ação armada contra o Irã. Não há dúvidas de que o Kremlin tampouco deseja ter um país munido de armas nucleares próximo a suas fronteiras. Também é claro que preferiria viver com um Irã nuclear em vez de ter de encarar as conseqüências desestabilizadoras de um ataque americano sobre Teerã.
Desestabilização à vista
A ambivalência dessas posições contribuiu para aproximar politicamente os russos de países como Turquia e Arábia Saudita, aliados tradicionais dos Estados Unidos. Essas duas nações, rivais do Irã, evidentemente temem o acesso deste país ao armamento nuclear. No entanto, assim como a Rússia e pelas mesmas razões, se opõem a uma ação militar de Washington por acreditarem que as conseqüências para a região seriam imediatas.
Como resultado da guerra do Iraque, a Turquia viu aparecer em suas fronteiras um Curdistão independente. Esse problema, por si só, seria seriamente agravado por uma desestabilização do Irã. E a Rússia pretende tirar vantagem disso num momento em que os turcos se vêem dependentes das trocas econômicas realizadas entre as duas nações. Nada surpreendente, já que o intercâmbio de produtos entre turcos e russos têm se mantido desigual há mais de 200 anos.
Num nível evidentemente inferior, acontece o mesmo na relação com a Arábia Saudita, que se opôs à guerra do Iraque apesar de sua hostilidade em relação a Saddam Hussein – e de ter deixado os Estados Unidos utilizarem as bases de que dispunham ali. Em fevereiro de 2007, Putin fez a primeira visita de um chefe de Estado russo (e mesmo soviético) aos sauditas. Ele propôs contratos de construção de centrais nucleares e vendas de armamentos e pleiteou, igualmente, o aumento do número de muçulmanos russos autorizados a ir à peregrinação anual a Meca. Agora, o apoio aos rebeldes chechenos, que foi expresso abertamente pelo governo da Arábia Saudita até 2002, desapareceu.
*Jacques Lévesque é professor da faculdade de Ciências Políticas e Direito da Universidade de Québec, em Montreal, e autor, entre outros livros, de 1989, la fin d’un empire: l’URSS e la libération de l’Europe de l’Est. [1989, o fim de um império: a URSS e a libertação do Leste Europeu], Paris, Presses de Sciences Po, 1995.