“Se esquecemos das mulheres negras que vieram antes, cabe a cada uma ser a primeira”
Confira entrevista com a quadrinista Clara Chotil, autora da HQ Ópera Negra que conta a vida da mezzo-soprano brasileira Maria d’Apparecida
Em uma rua tranquila do Butantã, antes de retornar à França, Clara Chotil mergulha a ponta do pincel em uma taça de vinho, bate-o na borda para retirar o excesso e começa a desenhar a roda de samba entre amigos que acontecia na casa de sua tia. A quadrinista franco-brasileira gosta de desenhar cenas cotidianas ao vivo, especialmente as relacionadas à música ou teatro. Ópera Negra, primeira HQ de Chotil, foi lançada pela Veneta em 2023 e conta a fascinante vida da cantora lírica brasileira Maria d’Apparecida, morta em 2017, em Paris.

Em Ópera Negra, acompanhamos o processo de apuração da jornalista e escritora Mazé Chotil, mãe de Clara, sobre a vida da cantora, instigada pelo evento de sua morte. A HQ é inspirada no livro Maria d’Apparecida Negroluminosa Voz (Editora Alameda, 2020), uma biografia da cantora escrita por Mazé. A narrativa do quadrinho alterna-se entre o presente de investigação e a experiência de vida da mezzo-soprano, um passado singular retratado em cores.
Nome esquecido pelo público brasileiro, Maria d’Apparecida iniciou a carreira na Europa na década de 1950, depois de ser impedida de cantar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro por ser negra. Isso não a deteve de ser a primeira mulher negra latinoamericana a se apresentar na Ópera de Paris em 1965. Amparada pela renomada companhia, pisou no palco do Municipal do Rio para interpretar Carmen, uma das mais emblemáticas personagens operísticas. A chamada por conhecidos e parentes após a morte da mezzo-soprano foi apenas o início de uma longa jornada de pesquisa, realizada por mãe e filha, que se empenham pela manutenção da memória de Maria.

Desde 2019, Chotil desenha histórias ao vivo com o coletivo de teatro documental F-71. Em 2018, produziu retratos de militantes da Comunidade Quilombola Dona Juscelina (Muricilândia, TO), em um projeto idealizado pela pesquisadora Juliana Basílio. Também é autora de Ballade des Dames du Temps Jadis (Editora Flblb), que investiga a desigualdade de gênero nas universidades francesas. Em entrevista exclusiva ao Le Monde Diplomatique Brasil, a quadrinista conta sobre o interesse pelo desenho ao vivo e pelos quadrinhos, a pesquisa para a elaboração de Ópera Negra e a urgência de se conhecer a história de Maria d’Apparecida.
Le Monde Diplomatique Brasil — Como você começou a desenhar? Os quadrinhos sempre fizeram parte de sua vida?
Clara Chotil — Sempre desenhei, mas demorei para chegar à prática dos quadrinhos. Pintava e sempre tive uma grande produção de desenho. Demorei para juntar a escrita, algo que também fazia, com o desenho. Há uns quatro ou cinco anos, relendo quadrinhos e descobrindo novas referências, comecei a trabalhar com peças de teatro, nas quais desenhava ao vivo. Comecei a desenhar com um coletivo chamado F-71, dedicado ao teatro documental. Éramos duas pessoas no palco, uma atriz e eu desenhando ao vivo. Nós duas contávamos uma história. Essa foi a primeira maneira profissional de contar histórias com desenhos. Foi a partir daí que tomei esse passo para fazer um projeto pessoal de quadrinhos.

Quem foi Maria d’Apparecida? Por que as pessoas precisam conhecê-la?
Maria d’Apparecida foi uma cantora lírica brasileira, que teve um início de carreira muito bom, mas logo foi barrada em seu país por ser negra. Então, decidiu seguir a carreira na França, onde fez grande sucesso, cantando na Ópera de Paris. Por causa de um acidente de carro, ela acabou se interessando muito pela música brasileira e tornou-se embaixadora da MPB na França. Ela foi muito importante e conhecida nos anos 1970 e 1980, especialmente pelo seu trabalho como cantora lírica e, posteriormente, como cantora de música brasileira. Conheci essa história por acaso, por conta de sua morte em 2017, em Paris. O nome dela chegou aos nossos ouvidos, meus e da minha mãe, por conta de uma chamada a conhecidos após sua morte. Foi a partir dessa chamada que minha mãe ficou curiosa por não conhecê-la e começou a pesquisá-la. Maria seria enterrada como indigente.
Fazendo pesquisas para ateliês infantis, encontrei outros nomes de cantoras líricas negras brasileiras do século XVII e XIX… Maria d’Apparecida não foi a primeira cantora lírica negra brasileira, porém, a cada vez que pesquisava a biografia de uma dessas mulheres, lia coisas como: “A primeira cantora lírica negra brasileira…”. Se esquecemos das mulheres negras que vieram antes, cabe a cada uma ser a primeira, porque não temos memória. Isso é uma posição muito difícil, que requer dessas mulheres um enorme esforço para abrir portas. Esse motivo, apesar de existirem muitos outros, já é uma razão suficiente para conhecê-la.

O que mais te impressionou na história dela?
A pluralidade dela, o fato de ela ter sido tão bem inserida em tantos meios distintos. Ela juntou ópera, surrealismo francês, MPB… Também a liberdade dela. Ela tinha uma maneira muito moderna de viver, uma vida muito longe da norma. E isso de uma maneira muito assumida, muito forte. É algo que continua a me impressionar, cada vez que leio artigos ou ouço entrevistas com ela.
Como você lidou com o fato de existirem poucos registros em primeira pessoa da Maria? Como foi construí-la como personagem?
Isso me fez lidar com o fato de fazer a biografia de alguém muito distante de mim. Tive que assumir essa distância, porque realmente há poucos elementos em que se ouve a voz dela. Geralmente, são olhares de fora. De certo modo, o meu também é: não sou uma mulher negra, não vivi naquela época, não sou uma brasileira exilada. Decidi criar uma narrativa a partir da inserção da personagem da minha mãe, que seria um meio caminho até Maria. Isso também me permitiu expor meu ponto de vista. Decidi respeitar essa distância. Há uma camada de mistério que foi criada em torno da Maria d’Apparecida – criada por ela também. Achei interessante falar dessa distância, em vez de tentar escondê-la ou interpretar pensamentos ou ações da Maria.

A arquitetura tem bastante destaque no livro. Você chegou a visitar lugares por onde a Maria passou ou se apresentou? Fez alguma pesquisa sobre a arquitetura da época para o livro?
Fiz muitas pesquisas gráficas, porque fiz o livro durante a pandemia de Covid-19 e estava na França. Naquele momento, estava longe dos lugares que desenhei. Era justamente uma maneira de viajar por meio do desenho. O quadrinho também é um lugar de exploração espacial, tanto através da imagem, quanto da composição. Gosto de explorar essa noção de se mover nos espaços por meio dos desenhos. Queria fazer o leitor viajar com a Maria pelos lugares onde ela passou. Isso também tem a ver com a noção de escala, de eu observar a Maria de longe. Há poucos desenhos onde estamos muito perto da Maria d’Apparecida.
Você coloca a sua mãe e sua tia na história. Como foi a reação delas ao verem-se no livro?
Eu não sei qual a reação exata delas. Sei que minha mãe está feliz de ver a história circular. Era o primeiro objetivo dela. Esse quadrinho homenageia também o trabalho de pesquisa que ela teve, exposto no livro Maria d’Apparecida Negroluminosa Voz (Editora Alameda, 2020), tentando prolongá-lo, fazer com que essa história atinja novos públicos. Os livros acabam sendo uma desculpa para passar mais tempo com elas, tanto no momento de desenhá-las, como também na hora em que as pessoas descobrem a história.

O ato de desenhar ao vivo é uma experiência de interação importante no seu trabalho. O que te atrai nesse momento de encontro?
Desenhar ao vivo é a minha prática principal de desenho. Também é uma das razões pelas quais demorei a fazer quadrinhos. Foi algo novo para mim: parar e desenhar a partir de referências, da memória que eu tinha dos objetos. A minha prática é desenhar os lugares onde estou, uma maneira muito intensa de viver o momento e de observar os lugares. Gosto muito de fazer isso em relação à música e ao teatro. São duas coisas que me fazem explorar a prática de desenho ao vivo, tanto o desenho no palco, como em momentos não direcionados ao público. Tenho vários quadrinhos em que tento juntar desenhos de observação, eventos musicais, ou ligados a registrar um momento.

No caso de Ópera Negra, conhecemos uma história que já aconteceu. Como foi imaginar um tempo passado?
Para mim, foi muito importante fazer do passado algo vivo. Queria que o leitor pudesse se identificar com os momentos, as situações. Tentar não tratar o passado como algo distinto das vivências atuais. Por isso, trato o passado com cores, com composições que tento deixar mais vivas, com esse traço que é mais sugestivo, rápido. Foram maneiras de tentar colocar a energia que senti com a história da Maria d’Apparecida e espero que isso tenha sido recebido assim. Tratei o tempo presente com apenas uma cor, o azul, que é a cor do livro, porque temos menos a necessidade de nos identificar com o presente, já são situações que conhecemos melhor.
Você fez parte de um projeto de extensão com a pesquisadora Juliana Basílio, que envolveu desenhar o retrato de griôs do Quilombo Dona Juscelina, no Tocantins. Como foi esse processo de confiança, até conseguir desenhá-los?
A ideia foi criar retratos de algumas militâncias do quilombo. Logo, conheci a Dona Juscelina, conheci também outros jovens, que me levaram para lugares que achavam relevantes. A comunidade começou a me ver circular e surgiu a ideia de retratar os oito griôs do quilombo. Entre as visitas, desenhava também os espaços, as praças. Sempre que fazia retratos, alguém lançava a conversa, enquanto desenhava. Tento criar esse momento em que estou acompanhada de um entrevistador, assim a atenção da pessoa não está focada no retratado. Torna-se um momento mais natural. As pessoas se abrem mais. O desenho é uma forma mais suave de entrar em contato com alguém, por conta do tempo de execução, que se torna um momento de troca.

Tem outros projetos em mente?
Tenho alguns projetos de teatro, no qual continuo fazendo desenhos ao vivo. Meu projeto de quadrinho atual é uma ficção que escrevo a partir da minha história materna. Trata de questões de territorialidade e luta pela terra a partir da história da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND), uma colônia instalada no Mato Grosso do Sul, numa região ocupada pelo povo indígena Guarani-Kaiowá. É o lugar onde minha mãe nasceu. Estou nesse processo de escrita e desenho. É algo que estou fazendo aos poucos, porque estou entrevistando pessoas, criando trocas lá. Estou fazendo com pintura, com cores diretas.
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