O sequestro da liberdade e as lutas pela democracia
Conceito de liberdade está em acirrada disputa e muitas vezes tem servido de disfarce para a manutenção de relações ilegítimas de poder, ligadas mais à tirania do que à emancipação
Numa conjuntura internacional em que as teorias da conspiração e os grupos de extrema direita estão se multiplicando é crucial compreender como os movimentos autoritários se apropriam do discurso sobre a liberdade para minar as noções fundamentais de justiça, cidadania e democracia. Temos, todas e todos, muito o que aprender sobre os vários debates que estão ocorrendo atualmente nos Estados Unidos envolvendo o tema da liberdade. Sob a campanha ideológica e demagógica da extrema direita, a própria ideia de liberdade está sendo sequestrada e utilizada para proibir livros que apresentem a história de luta e a problemática social envolvendo o racismo contra a população negra; o colonialismo contra os povos indígenas e os ataques aos direitos conquistados pela comunidade LGBTQIA+.
Essa onda ultraconservadora que tenta proibir o acesso a livros também assola o Brasil e vai desde a tentativa de proibição de obras do educador Paulo Freire durante o governo Bolsonaro, até o caso mais recente ocorrido no estado do Paraná, onde o governo do Partido Liberal, mesmo partido do ex-presidente de extrema direita, enviou ofício às escolas do estado determinando que diversos livros, inclusive alguns clássicos, fossem retirados de circulação. Reduzida a um termo banal e descartável, a liberdade é cada vez mais invocada por esses grupos autoritários para censurar a história, eliminar o pensamento crítico do currículo e criminalizar as ações de bibliotecários e professores que incentivam a elevação do nível de consciência, o pluralismo de ideias e a justiça social nas escolas.
O conceito de liberdade está em acirrada disputa e muitas vezes tem servido de disfarce para a manutenção de relações ilegítimas de poder, ligadas mais à tirania do que à emancipação. Vivemos numa época de pós-verdade em que até as liberdades se tornaram ameaçadoras. Os algoritmos das redes sociais criam filtros-bolha que impedem o diálogo, multiplicam as fake news e invertem a própria realidade. Já não importam mais os fatos, e sim a comoção emocional que as narrativas criadas nas redes são capazes de provocar. Nesse contexto, o autoritarismo emergente é cada vez mais definido pela questão de quem se qualifica para ser cidadão, de quem tem condições para acessar os direitos sociais, e de quem tem o poder de participar na elaboração das políticas públicas no cotidiano da democracia.
Historicamente a noção de liberdade tem sido utilizada pelos críticos das desigualdades, por poetas, artistas progressistas e por grupos que resistem às injustiças de um Estado opressor. Mas também tem sido frequentemente utilizada por aqueles que falam em nome do autoritarismo e de atos selvagens de violência para legitimar todo o tipo de controle sobre a subjetividade das pessoas e de disciplina sobre a população. Por exemplo, no Canadá, o apelo à liberdade funcionou ao serviço de atos de genocídio contra os povos indígenas, incluindo a remoção forçada das suas terras e os horrores cometidos nos colégios internos mantidos pela igreja católica, provocando uma assimilação e destruição cultural generalizada. Nos Estados Unidos, a liberdade também legitimou o genocídio contra os nativos norte-americanos, as violências da escravidão e o encarceramento em massa de imigrantes.
No Brasil, o discurso da liberdade também foi utilizado pelos grupos de extrema direita para justificar os ataques ao processo eleitoral, à Constituição Federal e aos direitos das minorias, culminando no episódio de atentado terrorista que destruiu as sedes dos três poderes da República, em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023. O apelo a essas liberdades injustas é cruel e continua a legitimar o velho discurso patriarcal que promove a censura, o racismo, o machismo e múltiplas formas flagrantes de oportunismo político. No entanto, o que pode ser feito para preservar o sentido da liberdade como uma questão crucial na luta contra as opressões e a favor de uma ampla participação da população na construção da democracia?
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Precisamos nos perguntar como podemos libertar a própria ideia de liberdade, que foi sequestrada pelos grupos ultra conservadores. Urge repensá-la radicalmente como uma categoria política e educacional, para que esteja a serviço da democracia. Uma concepção democrática de liberdade deve criticar os níveis alarmantes de desigualdade na distribuição de riqueza e poder na sociedade contemporânea. Precisa combater o legado venenoso do racismo estrutural e impedir a disseminação de uma cultura anti-intelectual que proíba o acesso à cultura e estigmatize a razão crítica como algo desonesto e monstruoso.
Na luta pela liberdade, é relevante considerar o que falou a poetisa Adrienne Rich quando afirmou que a realidade concreta de não ser livre – contínua, penetrante e corrosiva – é a condição de uma existência negada a uma grande parte da população, que é mantida tanto por meio da reprodução cultural, quanto do uso explícito da força. O sequestro da liberdade não só levanta questões cruciais sobre tudo que está em jogo nesses tempos de tirania, mas também exige ações de resistência contra a alienação e de luta por um significado que seja tão expansivo quanto justo, que promova, em vez de destruir, a consolidação de uma sociedade onde a democracia participativa seja fundamento substantivo e não só discursivo.
Para que a verdadeira liberdade triunfe, precisamos de uma revolução ética, estética, e de valores. Precisamos não só de uma nova definição, mas de uma ação coletiva que alimente a esperança impaciente enraizada no imperativo ardente da resistência. Nesse sentido, o das lutas por resistência, finalizamos com um brilhante escrito de Cecília Meireles: “Não importa que se estejam tendo inúmeros interesses equívocos correndo secretamente e traiçoeiramente por debaixo deste mar. Se não houvesse resistências, qualquer deles poderia dominar, e a passividade se estabeleceria, perdidas todas as inquietudes, no abandono das coisas inutilizadas. Mas há resistências. E daí vêm as lutas… E seja qual for o aspecto da vitória mais próxima, o futuro guarda em si uma certeza admirável da vitória mais justa. A vitória mais justa tem de ser a que ofereça ao homem a mais superior liberdade. A que o liberte de outros homens, e a que o liberte de si”. (Cecília Meireles, em Crônicas de Educação, v.2, p.271).
Henry Armand Giroux é doutor em Ciências Sociais e professor titular da Cátedra Paulo Freire na McMaster University, Canadá; e Gustavo de Oliveira Figueiredo é doutor em Ciências Humanas, professor e pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.
Ótimo artigo. Em Santa Catarina, governado pela extrema direita também tirou livros das bibliotecas escolares. Podemos acrescentar o descaso com Ministério da Educação, na época de Bolsonaro, no qual incompetentes foram elencados a este cargo estratégico do país. Peço licença para indicar um texto publicado aqui no Le Monde, “Eles não têm educação?” Disponível em: https://diplomatique.org.br/eles-nao-tem-educacao/