Seria Pablo Marçal o novo “Homem da Capa Preta”?
A candidatura de Marçal fragmenta o voto das periferias paulistanas, afetando diretamente as chances de Boulos. O resultado dessa divisão de votos periféricos pode favorecer a reeleição de Nunes, promovendo a manutenção de políticas que aprofundam o empobrecimento de setores ainda mais amplos
Trabalhando nos últimos anos no campo da história brasileira, sobretudo da história contemporânea, certa constância em algumas dinâmicas tem me chamado a atenção. Por exemplo, em contextos de crise política e descontentamento social, surgem candidaturas que, à primeira vista, parecem representar a voz das camadas mais vulnerabilizadas da população, mas que, sob uma análise mais detida, mostram-se como peças estratégicas em um jogo político mais complexo. As campanhas de Tenório Cavalcanti ao governo da Guanabara em 1960 e de Pablo Marçal à prefeitura de São Paulo em 2024 compartilham traços essenciais, embora distantes no tempo. Ambas atua(ra)m como agentes de dispersão de votos nas periferias, enfraquecendo candidaturas progressistas e, de forma direta e indireta, favorecendo projetos conservadores e de extrema direita.
Essas campanhas não só se beneficiam de uma base eleitoral desorganizada, com pouca clareza ideológica, mas também utilizam estratégias que flertam com o autoritarismo e a violência, enquanto se valem do próprio sistema democrático para promover uma agenda abertamente autoritária e anti-direitos.

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O populismo como estratagema eleitoral: Tenório Cavalcanti e a Guanabara em 1960
As e os mais jovens talvez não se lembrem dessa figura intimidadora. Alguns talvez se lembrem do filme estrelado por José Wilker sobre sua trajetória. Mas o fato é que, em 1960, o Rio de Janeiro se preparava para uma disputa crucial para definir o governador da recém-criada unidade federativa da Guanabara. De um lado, Carlos Lacerda, um nome de peso da direita conservadora, “tribuno” de discursos virulentos e altamente polarizador, com forte apoio da elite econômica e da imprensa. Do outro, Sérgio Magalhães, representante das forças progressistas, com apelo popular e um projeto de reformas urbanas e sociais.
Nesse cenário, Tenório Cavalcanti, conhecido como “O Homem da Capa Preta”, surgiu como candidato independente. Dono de uma personalidade carismática e temida, Cavalcanti governava com mão de ferro a Baixada Fluminense, onde seu poder se sustentava em milícias armadas e práticas autoritárias. Seu principal símbolo, para além da capa sui generis, era sua famosa metralhadora, apelidada de “Lurdinha”, que frequentemente exibia em comícios e discursos, reforçando sua imagem de líder violento e justiceiro.
Embora se apresentasse como defensor das camadas populares, Cavalcanti, com sua retórica de combate à corrupção e promessas de proteger cidadãs e cidadãos comuns, acabou por favorecer a candidatura de Carlos Lacerda. Ao dispersar votos nos subúrbios cariocas, bastante populosos, especialmente entre eleitoras e eleitores ideologicamente indefinidos, ele minou o potencial de crescimento de Sérgio Magalhães, que precisava concentrar os votos progressistas para enfrentar a máquina política de Lacerda.
Cavalcanti, apesar de estar inserido no processo democrático, não escondia seu desprezo pelas instituições. Um episódio famoso ocorreu durante a campanha, quando ele ameaçou publicamente “limpar a política” com sua metralhadora caso fosse eleito, promovendo um discurso que desafiava a própria ideia de democracia representativa.
Ao escrever sobre as eleições na Guanabara em outubro de 1960, uma das mais renomadas pesquisadoras da política carioca, Marly Silva da Motta, asseverou: sem Tenório, Lacerda perderia. Ela estava certa. Nas urnas, Cavalcanti (PST) teve 22,3% dos votos, concentrados na Baixada Fluminense e subúrbios. Esse número, embora expressivo, foi insuficiente para vencer, mas cumpriu o papel de dispersar votos que, em sua maioria, poderiam ter ido para Sérgio Magalhães (PTB), que ficou com 33,4% dos votos. Apesar da disputa acirrada, essa divisão favoreceu a vitória de Carlos Lacerda (UDN), que obteve 35,7% dos votos, consolidando-se como o vencedor e demonstrando o impacto que a candidatura de Cavalcanti teve ao enfraquecer a base progressista.
Pablo Marçal e a eleição para a prefeitura de São Paulo em 2024
Em 2024, a corrida pela prefeitura de São Paulo trouxe à tona outro candidato que, assim como Tenório Cavalcanti, se colocou como outsider: Pablo Marçal. Empresário e coach motivacional, Marçal construiu uma base de seguidores nas redes sociais, especialmente nas periferias paulistanas, onde sua retórica de empreendedorismo e superação pessoal encontrou eco.
Marçal apresentou sua candidatura como uma alternativa à política tradicional, prometendo transformar São Paulo com base em uma visão que mistura autoajuda, meritocracia e liberalismo econômico. Contudo, suas propostas vagamente estruturadas e sua ideologia política ao estilo mistureba-miojo tornaram sua campanha um fenômeno peculiar. Assim como Cavalcanti, Marçal atrai eleitores desiludidos (muito mais homens do que mulheres, é preciso dizer), que veem nele uma figura “antissistema” e uma solução para os problemas sociais da cidade.
O efeito dessa candidatura foi, mais uma vez, a dispersão de votos. Enquanto a chapa Guilherme Boulos-Marta Suplicy, concentra os votos progressistas, Marçal atua como um divisor, retirando votos de setores periféricos que poderiam se alinhar ao projeto Boulos-Marta, por uma cidade mais justa e igualitária. Como resultado, entretanto, a campanha de Marçal acaba beneficiando diretamente a candidatura de Ricardo Nunes, prefeito conservador, candidato do bolsonarismo e alinhado a um liberalismo econômico predador e autoritário, que tenta a reeleição.
Além disso, Marçal adota um discurso agressivo contra as instituições democráticas, especialmente ao atacar a imprensa e o sistema político, posicionando-se como uma figura autoritária disfarçada de empresário de sucesso. Essa postura é repetidamente afirmada em discursos como os que sublinha que “São Paulo não precisa de políticos, mas de empreendedores”, deslegitimando a função pública e as instituições representativas. Marçal, como já é público e notório, também é conhecido por incentivar seus seguidores a desrespeitar regras que, segundo ele, impedem o crescimento pessoal e a liberdade individual, demonstrando um desprezo pelo papel do Estado, que ele ironicamente busca gerir.
Como na Guanabara, as pesquisas mais recentes revelam uma disputa acirrada. Segundo levantamento de setembro de 2024, o atual prefeito Ricardo Nunes (MDB) lidera com 27% das intenções de voto, seguido de perto por Guilherme Boulos (PSOL) com 25%, enquanto Pablo Marçal aparece com 19%. Esse empate técnico, observado nas pesquisas anteriores, ilustra o impacto de Marçal como candidato com forte penetração nas periferias da capital paulistana. Assim como Cavalcanti em 1960, Marçal divide o eleitorado de Boulos, enfraquecendo as chances de uma virada progressista e favorecendo a manutenção do poder nas mãos de Ricardo Nunes.
Violência e ameaça à democracia
Embora os métodos de Cavalcanti e Marçal pareçam diferentes, ambos compartilham um traço comum: o uso da violência, seja ela física ou simbólica, como ferramenta política.
Tenório Cavalcanti era um político que literalmente carregava uma arma consigo, utilizando-a como símbolo de sua força e autoridade. Um episódio notório ocorreu em 1957, quando Cavalcanti invadiu a Câmara dos Deputados armado, ameaçando seus opositores e demonstrando seu poder pela intimidação. Sua candidatura ao governo da Guanabara, portanto, trazia consigo o medo de que um eventual governo seu seria marcado pela violência e pela repressão, minando as bases democráticas.
Pablo Marçal, por outro lado, pratica uma violência discursiva e simbólica. Sua campanha é marcada por ataques verbais a adversários políticos, mulheres e a instituições como o Ministério Público e a Justiça Eleitoral, que ele acusa de “atrapalhar o progresso”. Muitas de suas live em redes sociais, como foi denunciado inclusive por outros candidatos e candidatas, incitam à violência e ao desrespeito às regras mínimas de convívio coletivo. Tal discurso, ainda que não envolva violência física, coloca em xeque a própria estrutura democrática e estimula um comportamento de desrespeito às regras do jogo político.
Efeitos eleitorais: fragmentação e fortalecimento da extrema-direita
Nos dois casos, as candidaturas de Tenório Cavalcanti e Pablo Marçal têm como efeito principal a fragmentação do voto popular, enfraquecendo candidatos progressistas e favorecendo forças conservadoras.
Em 1960, a divisão dos votos da Baixada e nos subúrbios cariocas impediu que Sérgio Magalhães, com uma base eleitoral sólida entre a população empobrecida, acumulasse os votos necessários para derrotar Carlos Lacerda. Cavalcanti, ao dispersar o eleitorado periférico, acabou indiretamente facilitando a vitória de Lacerda, que representava a continuidade de uma política conservadora na capital fluminense e como testemunharíamos, logo após, o apoio material ao golpe militar de 1964.
Em 2024, o mesmo fenômeno pode ser observado com Pablo Marçal. Sua candidatura fragmenta o voto das periferias paulistanas, afetando diretamente as chances de Guilherme Boulos, que despontava como o principal rival de Ricardo Nunes. O resultado dessa divisão de votos periféricos pode favorecer a reeleição de Nunes, mantendo o controle conservador da cidade e políticas que aprofundam as desigualdades e o empobrecimento de setores ainda mais amplos.
As candidaturas de Tenório Cavalcanti e Pablo Marçal, apesar de separadas por mais de 60 anos, compartilham uma estratégia comum de fragmentação do eleitorado periférico, enfraquecendo candidaturas progressistas e fortalecendo, por vias diretas e indiretas, forças políticas de extrema-direita. Suas campanhas flertam com o autoritarismo e a violência, ameaçando as bases do sistema democrático que, ironicamente, usam para promover suas ideias. Ao explorarem o descontentamento popular e se apresentarem como outsiders, acabam reforçando o status quo e impedindo mudanças estruturais que poderiam beneficiar justamente as classes que dizem representar.
Rose Barboza é psicóloga. Atualmente é pesquisadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal e na Universidade de Brasília, Brasil.