Sobre a complexidade do mundo evangélico
Compreender as nuances deste movimento impõe a nós, analistas, a responsabilidade de não reduzir os evangélicos às nossas conveniências, desejos e temores
Nos últimos anos, assistimos a um aumento notável no interesse por parte de intelectuais, jornalistas e políticos em relação ao fenômeno evangélico no Brasil. O interesse é compreensível, dada a magnitude do crescimento dessa população e sua crescente influência nos âmbitos político e cultural do país.
Por se tratar de um fenômeno complexo e multifacetado, é comum que boa parte das análises ceda à tentação de simplificar esse público em moldes convenientes para suas visões de mundo, numa tentativa de “reduzir para caber” a complexidade da experiência evangélica em uma explicação mais ou menos aderente aos seus objetivos políticos.
Nesse contexto, as análises sobre os evangélicos frequentemente orbitam duas perspectivas distintas. Para certos analistas, os evangélicos são retratados em tons de cinza: considerados ícones máximos do obscurantismo, da ignorância e do retrocesso que assolam o país, essa visão enxerga a ascensão evangélica como sinônimo da teocratização da política e da sociedade brasileira. Nesse quadro, os evangélicos são vistos como uma ameaça ao Estado laico e um perigo iminente à diversidade cultural do Brasil.
Para outros, porém, os evangélicos apresentam tons mais coloridos. Ao destacar as raízes populares desse segmento – que foi e continua sendo composto em sua maioria por mulheres negras e trabalhadores pobres –, essas análises enfatizam a importância dessa religiosidade no contexto das comunidades periféricas. Aqui, a igreja evangélica emerge como um poderoso catalisador de dignidade social, contribuindo para a restauração de indivíduos e famílias, além de atuar como um dos propulsores da cultura empreendedora nas camadas populares do país.
É claro que o conflito entre essas análises ultrapassa o mero interesse intelectual. Trata-se, acima de tudo, de disputar o lugar dos evangélicos na política brasileira e definir sobre quais bases devem assentar os termos de negociação da esquerda progressista para com esse público.
A situação é paradoxal. Se adotamos o diagnóstico acinzentado, tratamos potenciais aliados como inimigos e abrimos mão de dialogar com mais de 30% do eleitorado do país. Porém, se abraçarmos o diagnóstico colorido, corremos o risco de romantizar a experiência evangélica ao mesmo tempo em que negligenciamos o avanço conservador em nome de um suposto diálogo que, na prática, só perpetua a influência fundamentalista nas fileiras progressistas.
É preciso encontrar uma saída do meio. De fato, os evangélicos não são só conservadores, reacionários e bolsonaristas. Na vida do dia a dia, os evangélicos são trabalhadores e trabalhadoras pobres e negros que sofrem na carne as mazelas da pobreza e do racismo inerentes ao contexto do capitalismo periférico. Para muitos, aliás, a religião é a única fonte de resistência e resiliência, oferecendo socorro e abrigo em face das múltiplas angústias e ansiedades.
Reconhecer essa realidade, contudo, não exime o fato de que gesta no interior desse movimento uma visão de mundo autoritária e fundamentalista, que costuma não tolerar diferentes perspectivas e que só autoriza dialogar com os outros a partir de seus próprios termos. Um movimento cujo projeto de poder está muitas vezes confundido a uma motivação sincera de evangelização e “salvação dos perdidos”, mas que no limite ameaça a diversidade e a liberdade religiosa, tornando-se um risco real para a democracia do país.

Por isso é natural que surja no interior da esquerda progressista a urgência (um tanto tardia) de discutir estratégias de aproximação com esse público. Porque se por um lado os crentes parecem encarnar praticamente todas as causas sociais que a esquerda afirma representar, por outro, o discurso político evangélico parece se ver representado por boa parte daquilo que a esquerda visa combater.
É no entrelaçar dessas tensões e ambiguidades que o movimento evangélico se insere no Brasil contemporâneo. Eles são tudo isso: conservadores e progressistas, intolerantes e solidários, empreendedores e precarizados, opressores e injustiçados. Eles são o remédio e o veneno de um país tão desigual.
Compreender as nuances deste movimento impõe a nós, analistas, a responsabilidade de não reduzir os evangélicos às nossas conveniências, desejos e temores. Exige a coragem de produzir diagnósticos mais compostos de luz e sombras e menos de filtros que ora amplificam traços grosseiros, ora ocultam marcas indesejadas.
Rafael Rodrigues da Costa é sociólogo, mestre em Ciências Sociais pela Unifesp e pesquisador visitante da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor convidado da Pós-Graduação da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).