Soldados quebram a lei do silêncio
Os fundadores da ONG israelense Rompendo o Silêncio compreenderam que seu papel não era mostrar casos extremos de crueldade e barbárie. “O soldado que maltrata um velhinho no checkpoint não nos interessa”, explica Michael Menkin. “Preferimos falar do recruta que está atrás dele, o soldado ‘normal’”Meron Rapoport
“Vou lhes contar quando eu realmente surtei. Íamos intervir em Gaza. Estávamos numa trincheira e umas crianças se aproximaram e começaram a atirar pedras sobre nós. As instruções estipulavam que quando ele [um palestino] se encontra num perímetro em que pode nos alcançar com uma pedra, ele também pode nos atingir com uma granada. Então, atirei nele. Devia ter uns 12 ou 15 anos. Acho que não o matei, tento me convencer disso para ter a consciência tranquila, para dormir melhor à noite. Surtei quando, em pânico, fui contar para os meus amigos e minha família que tinha apontado [uma arma] para alguém e que tinha atirado na sua perna e no seu traseiro. Eles estavam muito contentes: eu tinha me tornado um herói, e eles contaram toda a história na sinagoga. Eu estava em estado de choque.”1
Em seu livro É isto um homem?,2 Primo Levi rememora um sonho recorrente que tinha em Auschwitz – descobriu mais tarde que muitos prisioneiros tinham o mesmo pesadelo. Ele voltava para casa, para junto de sua família, e contava os horrores do campo, mas ninguém o escutava: todo mundo se levantava da mesa e ia embora. Ele queria falar, contar sua história, mas não podia ser ouvido, tampouco ser compreendido.
Gaza não é Auschwitz, e os soldados que deram depoimentos em Occupation of the Territories não são sobreviventes do Holocausto. Contudo, da mesma maneira que Primo Levi, eles sentiram a necessidade de contar sua história, inaudível para seu círculo, que a perceberam como uma ameaça. Seus interlocutores preferiram reinterpretá-la, traduzi-la em termos familiares, em esquemas já conhecidos sobre a situação em Gaza, na Cisjordânia, atrás do muro, atrás dos checkpointsnovinhos que se parecem mais com postos de fronteira internacionais do que com barreiras militares de um exército de ocupação. “O que vocês queriam que os parentes desse soldado dissessem para o filho?”,pergunta Avihai Stoler, um ex-soldado que colheu alguns depoimentos do livro. “Não se preocupe, meu filho: você matou um moleque, e daí? Os parentes preferem não se interessar pelo seu dilema.”
Occupation of the Territories3 é uma coletânea de depoimentos de soldados, homens e mulheres, que servem ou serviram nas diversas unidades do Exército israelense, na Cisjordânia e em Gaza, desde o início da Segunda Intifada, em 2000. É de longe a obra mais completa sobre o modus operandi israelense nos territórios ocupados. Não há nenhuma revelação sobre as decisões tomadas no mais alto escalão ou nos bastidores, mas elementos a respeito da realidade bruta e diária do controle militar sobre os lares e os campos dos palestinos, sobre suas ruas e suas estradas, seus bens e seu tempo, sobre a vida e a morte de cada habitante da Cisjordânia e de Gaza.
De acordo com fontes confiáveis, entre 40 mil e 60 mil israelenses se juntaram às unidades de combate durante os últimos dez anos.4 Somente 750 foram entrevistados para esse livro. Supondo que todos esses soldados combatentes, num momento ou outro, tenham estado em território ocupado (o que pode não ser o caso dos soldados da Aeronáutica ou da Marinha), constatou-se que 1% a 2% deles deram entrevistas arrasadoras. Ou seja, uma quantidade considerável, muito superior à necessária para uma pesquisa ou um estudo acadêmico. Qualquer um pode contestar as conclusões dos autores e sustentar que o controle rígido de todos os aspectos da vida dos palestinos é vital para a segurança de Israel. Porém ninguém pode negar que as coisas funcionam dessa forma.
O soldado ‘normal’
A ONG israelense Shovrim Shtika(Rompendo o Silêncio) foi fundada em 2004 por alguns soldados que serviram em Hebron e desejavam mostrar seu ponto de vista sobre a ocupação. No início, eles quiseram obter o maior número possível de histórias chocantes. As imagens de soldados exibindo na ponta de seus fuzis a cabeça de palestinos mortos em combate causaram grande impacto. Entretanto, diante da afluência dos depoimentos, os fundadores compreenderam que não se tratava de mostrar casos extremos de crueldade e barbárie. “O soldado que maltrata um velhinho no checkpointnão nos interessa”, explica Michael Menkin, um dos fundadores do grupo. “Preferimos falar do recruta que está atrás dele, o soldado ‘normal’.”
Os testemunhos evocam maus-tratos, violências gratuitas ou matanças arbitrárias que às vezes passam por crimes de guerra: um deficiente mental espancado e coberto de sangue ou transeuntes enviados ao topo de um minarete para fazer explodir objetos suspeitos que o robô não consegue alcançar. No livro, lê-se o relato da morte de um homem desarmado cujo único crime foi estar em cima de um telhado (“Vocês me perguntam hoje por que eu atirei? Foi só por causa da pressão, eu cedi à pressão dos outros”, contou um soldado). Ou ainda, o assassínio premeditado, e até a execução, de policiais palestinos desarmados, para se vingar de um ataque contra um checkpoint vizinho. As ordens de uma alta patente a respeito da conduta diante de um suposto terrorista deitado no solo, ferido ou morto: “Aproximem-se do corpo, apontem a arma entre os dentes e atirem”. Além de inúmeras cenas de roubo, pilhagem ou destruição de móveis e de carros.
“Não é um ‘show de horror de Tsahal’”, explica Avishai Stoler. “É a história de uma geração, de nossa geração.” Durante as três décadas seguintes à guerra de 1967, grande parte dos debates em Israel teve como tema a necessidade ou a monstruosidade da ocupação. Desde então, essa palavra praticamente desapareceu dos discursos. Para designar os territórios palestinos, um israelense usará os termos “Judeia”, “Samaria”, “Cisjordânia” ou “território”, mas “territórios ocupados”, jamais. O termo “ocupação” tornou-se praticamente um tabu, uma palavra de mau agouro, que nunca deve ser pronunciada em público. Eu mesmo constatei isso no meu trabalho, quando dirigi um programa de televisão em que um dos convidados havia afirmado que a violência crescia no seio da sociedade israelense “por causa da ocupação”. O pânico foi geral entre os colegas da emissora: “Diga ao apresentador que peça para seu convidado retirar o que ele acabou de falar”, suplicaram.
Vários fatores explicam essa evolução. Em primeiro lugar, para os israelenses, os atentados suicidas da Segunda Intifada de alguma forma deram carta branca ao Exército para “erradicar o terrorismo”. Por outro lado, o “processo de paz”, interminável e infrutífero, tornou-se uma espécie de “música de fundo” do cenário público, sobre o qual teve dois efeitos opostos. De um lado, os israelenses não sentiam mais a urgência de resolver o conflito, pois este último já estava sanado, uma vez que nós, os israelenses, tínhamos aceitado ceder os territórios, optar por uma solução com dois Estados e conceder a autodeterminação aos palestinos. “O problema dos territórios acabou”, escreveu recentemente o editorialista israelense mais influente, Nahum Barnea. “Por que Israel não liga para a paz” era, em contrapartida, a capa da revista norte-americana Time de setembro de 2010.5
A esses dados políticos acrescenta-se um fator militar. Desde o início da Segunda Intifada, e mais precisamente desde a construção do muro de separação, o controle militar exercido sobre os palestinos tornou-se mais metódico, sistemático e “científico”. Occupation of the Territoriestenta analisar esses métodos e desvendar os códigos usados pelos militares. Com base em todos os depoimentos, a ONG Rompendo o Silêncio se esforça para encontrar novos termos mais adaptados à realidade. Dessa forma, é melhor falar de “propagação do medo no seio da população civil” do que de “medidas de prevenção contra o terrorismo” na Cisjordânia e em Gaza; “apropriação e anexação” em vez de “separação”; “controle de todos os aspectos da vida dos palestinos”, e não “tecido vivo” (“Life Fabric”, fórmula militar que designa a rede rodoviária que beneficia a população palestina); “ocupação” no lugar de “controle”.
Missão: perturbar
“Nossa missão era perturbar – era esse o termo utilizado – a vida dos cidadãos, e assediá-los”, revelou um dos soldados entrevistados. “Era a definição da nossa missão, porque os terroristas são cidadãos e nós queríamos perturbar suas atividades e, para isso, era preciso assediá-los. Estou certo disso, e acho que ainda hoje é esse o código usado, se as ordens não mudaram.” Esses testemunhos nos ensinam que a desestabilização e o assédio da população local não são simples fruto da negligência ou de maus-tratos (embora existam): são a base da gestão da ocupação na Cisjordânia e em Gaza. “Se o vilarejo produz alguma atividade, vocês vão provocar insônia no vilarejo.”
Avihai Stoler ficou cerca de três anos na região de Hebron. Conheceu soldados que explodiram uma bomba no centro de um vilarejo “para que saibam que estamos aqui”. “Patrulha barulhenta”, “patrulha violenta”, “manifestação de presença”, “atividade discreta”, “alegre Purim” são os termos que designam um modo de ação único e rotineiro: invadir um vilarejo ou uma cidade, lançar granadas, instalar checkpointsimprovisados, vasculhar casas aleatoriamente, instalar-se ali durante horas ou dias, “provocar[nos palestinos]um sentimento de perseguição para que nunca se sintam seguros”. Essas eram as ordens às quais Stoler devia obedecer.
Ele e Avner Gvaryahu serviram em uma unidade de elite cuja atividade era avaliada, segundo as palavras de uma alta patente, pelo número de cadáveres de terroristas. Ambos lamentam o fato de a sociedade se recusar a ouvir o que têm a dizer. Nenhum canal de televisão de Israel estava presente no lançamento do livro. Apenas a mídia estrangeira, o que dá a entender que a angústia dos soldados israelenses interessa apenas aos japoneses ou aos australianos. “Meu pai pertence à segunda geração do Holocausto”, revela Gvaryahu. “Para ele, os perseguidos, os infelizes dessa história, somos nós.”
No entanto, surpreendentemente, Stoler e Gvaryahu permanecem otimistas: a sociedade acabará compreendendo o que é feito em seu nome, e ela evoluirá. Porque é a sociedade que deve mudar, não o Exército. “Um dia, fui entrevistado por uma jornalista colombiana”, lembra Stoler. “Ela me perguntou por que isso tudo era um problema para nós. Na Colômbia, os soldados cortam a cabeça dos rebeldes todos os dias, na maior indiferença. Mas eu acho que a sociedade israelense quer manter uma certa moralidade. É isso que nos faz ir adiante. Sem essa vontade coletiva, nossos atos não têm mais sentido.”
“A sociedade israelense foi feita refém”, afirma Gvaryahu. “Os interesses dos captores são diferentes dos nossos e, no entanto, nos apaixonamos por eles, como se estivéssemos acometidos da síndrome de Estocolmo. É fácil atribuir esse crime aos colonos, mas não acredito nisso. Os verdadeiros sequestradores somos nós.”