Sombras da intimidade
Com a crise, voltaram os discursos exigindo a volta das mulheres ao lar. Se por um lado se instaurou a igualdade de direitos, por outro essa medida não mascara as desigualdades na prática: na casa ou no trabalho, a dominação masculina ainda é a regra
A questão das desigualdades entre homens e mulheres está longe de ser resolvida: sejam quais forem o campo e a dimensão da vida social considerados, a persistência das disparidades – às vezes acentuadas – entre a condição dos homens e das mulheres é patente, em detrimento do princípio fortemente afirmado de igualdade entre os sexos. Essa proclamação esconde mal as diferenças persistentes no acesso à formação e ao emprego, nas qualificações e hierarquias definidas segundo a divisão social do trabalho, nas remunerações profissionais, na divisão de tarefas na vida doméstica do casal ou da família, na probabilidade de chegar a uma posição social mais elevada, no espaço público e, notadamente, nos postos de responsabilidade política, e até mesmo no enfrentamento da velhice.1
Assim como as outras desigualdades sociais às quais se articulam, as desigualdades entre os sexos se repetem e se acumulam:2engendram-se e se alimentam mutuamente, multiplicando as vantagens para alguns em detrimento de outros. Dessa forma, a divisão desigual do trabalho doméstico gera um sério obstáculo à atividade remunerada e ao investimento em uma carreira profissional para as mulheres.3Reciprocamente, as grandes dificuldades encontradas na busca e manutenção de um emprego normal (de duração indeterminada e período integral) – que atenderia ao desejo de realização pessoal e promoção social – incentivam as mulheres a voltar-se para a esfera conjugal e familiar. A atribuição do privado às mulheres e a hegemonia dos homens no espaço público se geram e se reforçam em um círculo vicioso.
Através das gerações, as disparidades entre homens e mulheres se reproduzem, mas não sem mudanças, certamente. Se, por um lado, as transformações importantes em geral melhoraram consideravelmente a posição das mulheres na sociedade, por outro, essas mudanças se revelam ambíguas: são acompanhadas de efeitos perversos, com novas obrigações sociais e formas de discriminação.
Novas discriminações
Dessa forma, se as estudantes hoje apresentam melhores resultados nas escolas, estão ainda mais excluídas (ou autoexcluídas) das relações de excelência que as levariam a cargos mais valorizados.4Se as mulheres se impuseram no setor assalariado, ainda são mais ameaçadas pelo desemprego e pela precariedade do que seus colegas homens, mais frequentemente obrigadas a aceitar empregos de tempo parcial, em posições subalternas e, em geral, com remunerações menores às dos homens que ocupam cargos equivalentes. A última lei [francesa] sobre a igualdade dos salários entre homens e mulheres (de 9 de novembro de 2010) foi esvaziada de seu conteúdo pelo decreto de aplicação de 7 de julho de 2011 e pela circular de 18 de outubro de 2011, que reduzia as penalidades das empresas infratoras.5Se as mulheres souberam conquistar certa autonomia, especialmente graças a fontes de renda próprias, isso lhes custou a chamada “dupla jornada”, já que na maioria dos casos os serviços domésticos continuam divididos de forma desigual. E quando o casal se separa, normalmente por opção delas, as mulheres enfrentam novas dificuldades ligadas ao cuidado das crianças e sua desvalorização relativa no “mercado matrimonial”. Por fim, se elas começaram a ocupar a esfera política, ainda é difícil ascender a verdadeiras funções de responsabilidade.
Hoje, sabe-se que a tese de uma “feminização da sociedade francesa” ou de uma “feminização dos costumes” é falaciosa. Essa afirmação se apoia na superioridade demográfica das mulheres, no aumento de famílias monoparentais “chefiadas” por elas e na preocupação crescente com a aparência física desejável determinada pelo masculino, paralelamente ao desenvolvimento da prática de esportes e da moda de produtos lightsou da nova cozinha etc.6
Essa pretensa “feminização” é apenas uma tela por trás da qual se renova e até se reforça a dominação masculina. Omite-se também que a identidade feminina se define atualmente pelos traços clássicos da masculinidade: a obtenção de um diploma e o exercício de um trabalho assalariado. A sociedade, nesse sentido, está mais “masculinizada”; as mulheres se alinham, de alguma forma, em função das normas tradicionais dos homens. A desvalorização do masculino, sob os golpes das críticas e conquistas feministas, afeta somente as formas espetaculares do machismo – o culto da virilidade –, sem que sejam atingidos os fundamentos dessa hegemonia, seja na educação e no ensino, no trabalho, no universo doméstico ou na esfera pública. É somente nas classes populares, nas quais as identidades sexuais tradicionais ainda são elementos preponderantes na valorização social, que essa desconstrução da imagem masculina teria modificado um pouco os esquemas clássicos.7
Machismo em casa
A emancipação das mulheres permanece, assim, uma obra inacabada que precisa continuar com o apoio das conquistas por meio das quais as mulheres se tornaram, pelo menos parcialmente, atrizes de seu próprio destino e de toda a sociedade.8Um dos principais obstáculos ainda é a perpetuação da divisão desigual dos trabalhos domésticos. Esse aspecto das relações entre homens e mulheres quase não mudou desde o fim da década de 1960. As mulheres continuam a assegurar grande parte do trabalho “privado”, mesmo se pouco a pouco surgiu uma zona negociável (cozinha, compras, louça).9Nesse âmbito, a dominação masculina contemporânea é patente.
Atacar essa fortaleza social parece uma missão quase impossível, porque significa tocar no cerne da vida privada dos indivíduos: toda nossa civilização, pelo menos desde a Renascença e mais ainda a partir dos regimes democráticos, repousa sobre princípios intangíveis, como a autonomia da intimidade como garantia da liberdade individual em relação à esfera pública. Em outras palavras, a desigualdade entre os sexos se engendra à sombra da vida privada, sob o argumento de preservar os direitos da pessoa.
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Mulheres, vítimas da propriedade privada
Quando e como os rebanhos deixaram de ser propriedade comum de uma tribo ou grupo para ser propriedade de chefes de famílias individuais? Não se sabe nada a respeito até hoje. Mas, essencialmente, deve ter se dado da seguinte forma [Engels evoca aqui o crescimento da produção – criação de gado, agricultura, artesanato doméstico – e da escravidão]. Com os rebanhos e outras riquezas novas, a família passa por uma revolução. Ganhar a subsistência era uma atividade até então relacionada ao homem; era ele quem produzia os meios necessários para esse fim e tinha a propriedade desses meios. Os rebanhos constituíam novas formas de ganho; era trabalho de homem domesticá-los e depois cuidar deles. Dessa forma, ele ganhava a propriedade do gado. Todos os benefícios oriundos da produção eram destinados, portanto, ao homem; a mulher também desfrutava esse benefício, mas não tinha acesso à propriedade do rebanho. O “selvagem” guerreiro e caçador se contentava com o segundo lugar na casa, depois da mulher; o pastor, “de hábitos mais pacíficos”, aproveitando-se de sua riqueza, invadiu o primeiro escalão e deixou a mulher em segundo plano. E ela não podia reclamar. A divisão do trabalho na família havia definido a divisão da propriedade entre o homem e a mulher; o trabalho permanecia o mesmo, contudo, modificava as relações domésticas anteriores unicamente porque, fora da família, a divisão do trabalho havia sido modificada. A mesma causa que havia assegurado a anterior supremacia da fêmea na casa – o fato de ela se dedicar somente aos trabalhos domésticos – asseguraria agora a supremacia do homem na casa: os trabalhos domésticos da mulher, a partir desse momento, foram inferiorizados em relação ao trabalho produtivo do homem; o trabalho do homem representava tudo, enquanto o da mulher era apenas um simples trabalho dispensável. Já aqui parece que a emancipação da mulher, sua igualdade de condições com o homem, é e permanece impossível na mesma medida em que a mulher permanecerá excluída do trabalho social produtivo e deverá se dedicar ao labor doméstico privado. […] Com a supremacia efetiva do homem na casa, o último obstáculo ao seu poder absoluto se esvaiu. Esse poder absoluto foi confirmado e se eternizaria com a queda do direito maternal, a instauração do direito paternal e a passagem gradual do casamento a um caráter monogâmico. Mas, da mesma forma, uma brecha se produz na velha ordem: a família conjugal tornou-se uma potência e, ameaçadora, se impôs às pessoas.
Fonte: Friedrich Engels, L’origine de la famille, de la propriété privée et de l’État[A origem da família, da propriedade privada e do Estado], Éditions Sociales, Paris, 1971 (edição original: 1884).
BOX 2
Nascimento de um mito
Os homens sempre detiveram todos os poderes concretos; desde os primeiros tempos do patriarcado, eles consideraram útil manter a mulher em um estado de dependência; seus códigos foram estabelecidos contra ela; e é assim que ela foi concretamente constituída como o Outro. Essa condição servia aos interesses econômicos dos machos, mas também convinha a suas pretensões ontológicas e morais. Quando o sujeito procura se afirmar, o Outro que o limita e nega é necessário: ele só alcança a si mesmo através dessa realidade que ele não é. É por isso que a vida humana não é jamais plenitude e repouso, ela é falta e movimento, ela é luta.
Diante de si, o homem encontra a Natureza; ele a tomou, ele tenta apropriar-se dela. Mas ela não pode preenchê-lo. Ou ela se realiza apenas como uma oposição puramente abstrata, é obstáculo e se mantém externa, ou se submete passivamente ao desejo do homem e se deixa assimilar por ele; ele só a possui consumindo-a, ou seja, destruindo-a. Em ambos os casos, ele continua só; ele está só quando pega uma pedra, só quando come uma fruta. Apenas existe presença do outro se o outro está presente em si, ou seja, a verdadeira alteridade é aquela de uma consciência separada da minha e idêntica a ela. É a existência de outros homens que arranca cada homem de sua imanência e lhe permite realizar a verdade do seu ser, realizar-se como transcendência, como escape em direção ao objeto, como projeto. Mas essa liberdade exterior, que confirma minha liberdade, também entra em conflito com ela: é a tragédia da consciência infeliz; cada consciência pretende colocar-se sozinha como sujeito soberano. Cada uma tenta realizar-se, reduzindo a outra à escravidão. Mas o escravo no trabalho e o medo provam-se a ele também como essencial e, por um retorno dialético, é o senhor que aparece como inessencial.
[…] [O homem] sonha com quietude na inquietude e com uma plenitude opaca que habitaria, porém, a consciência. Esse sonho encarnado é precisamente a mulher: ela é o intermediáriodesejado entre a natureza externa ao homem e o semelhante que lhe é idêntico demais. Ela não lhe opõe o silêncio inimigo da natureza nem a dura exigência de um reconhecimento mútuo; por um privilégio único, ela é uma consciência e ao mesmo tempo parece possível possuí-la em sua carne. Graças a ela, há um modo de escapar à implacável dialética do senhor e do escravo, cuja fonte está na reciprocidade das liberdades.
Simone de Beauvoir, Le deuxième sexe [O segundo sexo], Gallimard, Paris, 1949.