Tenebrosas transações
Eduardo Cunha, apesar de sua tenacidade e apego ao poder, será figura fugaz na vida republicana. Luziu enquanto durou: uma luz que nada iluminou, apenas confundiu. Sobrevive dos efeitos reflexos do poder que constituiu, pois os prazos do sistema político paquidérmico, avesso à participação popularChico Alencar
Interregnum, conceituou Antonio Gramsci (1891-1937), ao escrever seus Cadernos do cárcere, com o tempo que a prisão na Itália fascista lhe permitia para especular sobre o curso da história. Ele se referia àquele período de incerteza, de imprevisibilidade, véspera de grandes mudanças, “quando um sistema de poder está em colapso, mas seu sucessor ainda não se formou”.
Se você pensou no Brasil de hoje, pensou bem. Vivemos tempos assim, bem caracterizados por um estudioso de Gramsci e da obra do nosso saudoso Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), o sociólogo Léo Lince: “Tempo da inexistência de nexos que articulem em projeto alternativo os diferentes polos de condensação dos conflitos e das culturas críticas ao modelo que agoniza”. Diferentes frentes – Brasil Popular, Povo Sem Medo – e movimentos ensaiam, incipientes, uma resposta propositiva à crise brasileira, que é do sistema político e do modelo econômico.
Enquanto ela não é superada, porém, o interregno, o intervalo, a turbulência da incerteza produzem seus fenômenos. O filósofo italiano detectou um deles, ao dizer que essas épocas trevosas de transição eram propícias ao aparecimento de “sintomas mórbidos, fenômenos estranhos, criaturas monstruosas”. Em sua terra e em sua época histórica, deu Mussolini, Hitler, Salazar e Franco, fora outros tiranetes não tão conhecidos.
Se você pensou em algumas figuras públicas do Brasil de hoje, em especial Eduardo Cunha, pensou bem. Vivemos tempos assim, em que o naufrágio do PT, o partido que negou a si mesmo, fez emergir a direita mais fisiológica, à qual tentou e tenta se aliar. Esta agora procura, com seus métodos da pequena política, hegemonizar o controle do poder, até para se proteger. O conservadorismo almeja segurar, ainda que se estapeando na cabine de comando, o timão da embarcação avariada da governança da República brasileira. Navega-se no mar de lama da corrupção sistêmica, estrutural, histórica.
A Nova República não cumpriu suas promessas de democratização ampla, geral e irrestrita, com a esperada socialização e transparência dos meios de governar. Esgota-se mais um ciclo da nossa história, marcado pela “ordem para os de baixo e progresso para os de cima”. A democracia formal e banal das eleições bienais, com seus partidos que são, quase todos, “marcas de fantasia”, já não satisfaz.
A política de negócios avassala, percebe qualquer atento analista da conjuntura. A ascensão de Eduardo Cunha como protagonista da vida pública nacional, a ponto de se tornar presidente da Câmara dos Deputados e segundo na linha da sucessão presidencial, foi metódica e planejada como dinâmico empreendimento público-privado. Nem “parceria” é: trata-se de um modus operandi na política partidária, dita representativo-eleitoral. Dele faz parte o sucesso nos negócios, vinculado à ocupação de espaços nas administrações e alimentado pelas mordidas em nacos crescentes do orçamento público. Seu efeito é também alentada acumulação patrimonial. São os “homens de bens” da política brasileira.
No caso de Cunha, a moldura religiosa disponibiliza rebanhos populares abertos à captação de votos, garantindo a taxa de sucesso nas urnas. Até nesse plano “espiritual” o cálculo de ganhos é feito. Cunha estaria transitando da igreja Sara Nossa Terra, com seu milhão de fiéis, para a poderosa Assembleia de Deus, com seus 13 milhões de devotos. De iguais milhões de votos. O bispo Rodovalho, que também atua politicamente no Distrito Federal, chefe da Sara, está conformado: “Faz parte da política: a Assembleia tem muito mais fiéis”.
Cunha sabe da importância do mundo virtual, do “pastoreio” eletrônico: detém 175 domínios com a palavra Jesus na internet. Um deles tem nome sugestivo: crentecompra.com.br. Investigações da Lava Jato revelaram que outra empresa sua, a Jesus.com, é proprietária, com a C3 Produções, de sua esposa, de automóveis de luxo. Bem distintos do jumentinho emprestado que o Jesus histórico utilizou para sua entrada em Jerusalém, no episódio da festa de Ramos, às vésperas de sua condenação à morte por subversão política e blasfêmia religiosa…
O velho clientelismo – originário dos tempos oligárquicos da República Velha, que teimam em persistir no presente – pavimenta o caminho da representação: “Aqui em Heliópolis, ele ajudou a trazer asfalto para a nossa rua”, diz Dalma Coutinho ao jornal Extra (11 out. 2015). Trata-se de uma humilde confeiteira de 55 anos, da Baixada Fluminense, eleitora do deputado. A “pregação” radiofônica de Cunha reverbera por emissoras FM do Rio de Janeiro, São Paulo, Piauí e Paraná, com a voz diáfana lembrando que “nosso povo merece respeito”.
Sua trajetória política, de mais de um quarto de século, é sintomática: jovem ainda, o tijucano tocava bateria em um grupo de rock do tradicional bairro da Zona Norte carioca. Estudou Economia na Cândido Mendes e, interessado pela política, buscou o Partido da Reconstrução Nacional (PRN) de Fernando Collor. Não ficou muito tempo por ali, embora a filiação lhe tenha rendido a missão de tesouraria da campanha presidencial do ex-governador de Alagoas no Rio de Janeiro e a relação com PC Farias, o poderoso chefão das finanças colloridas. Disputou sua primeira eleição, para deputado estadual, pelo Partido Progressista Brasileiro (o atual PP, de Maluf, Bolsonaro e que tais), obtendo 15 mil votos e ficando como suplente, até assumir o mandato em 2001. No ano seguinte se reelegeu federal, ainda pelo PP, já com mais de 100 mil votos. Depois, nas três disputas sucessivas, em 2006, 2010 e 2014, com arrecadação de campanha e votações crescentes, até os atuais 232.708 votos, foi ascendendo internamente na legenda a que aderira, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).
Ao contrário dos tradicionais caciques peemedebistas, Cunha é “arestoso”, de “difícil trato”, “cheio de vontades”, “imprevisível”, “agressivo” – dizem, com pedido de anonimato, muitos de seus próprios colegas de partido. Outro, que também não quer ser identificado, garante, em reportagem de O Globo (25 out. 2015), que Cunha repete entre amigos, tonitruante, uma espécie de “lema de vida”, aprendido com o doleiro Lúcio Bolonha Funaro: “Há duas coisas que só não resolvem qualquer problema quando poucas: dinheiro ou porrada”. O reconhecimento do seu “tino para negócios” é oposto à confiança nele depositada por seus próprios correligionários. Vide a delação premiada daquele que o lobista e empresário Julio Camargo diz ser seu “sócio oculto”, Fernando “Baiano” Soares: tido como “homem de ferro”, de “fidelidade canina” a Cunha, está aí, a revelar, sem papas na língua, as tenebrosas transações de que seu parceiro seria indutor e beneficiário.
Na administração de empresas públicas, como a Telerj nos tempos de Collor e, por menor período, FHC, e a Cehab, no governo fluminense de Garotinho – com quem agora está rompido e a quem processa por “injúria, calúnia e difamação”, como faz contra diversos jornalistas –, Cunha sofreu acusações por contratos superfaturados e favorecimento de empresas, como a construtora Grande Piso, do Conjunto Nova Sepetiba, e Caci, cujo representante era Jorge La Salvia, ex-procurador de PC Farias.
Os pesados embaraços que agora sofre, objeto de inquéritos no Supremo Tribunal Federal e de Representação no Conselho de Ética na Câmara, por iniciativa do PSOL e da Rede, não são, portanto, um raio em céu azul. Mais parecem o corolário de uma carreira na vida pública emulada por irrefreável ambição, na qual a ação política e os empreendimentos privados estão imbricados. E de forma nada transparente, como se constata. Evidenciam-se também suas “reinações” nas áreas de influência que conquistou, como Furnas Centrais Elétricas e Companhia Estadual de Água e Esgoto do Rio de Janeiro. Articulações com doleiros como Lúcio Bolonha Funaro aterrissam nas mesas de investigadores como os jatinhos que ele utilizou para percorrer o país, atentos aos lucros possíveis. “É do jogo”, diria um entusiasta do “espírito animal” do empresariado, para quem o chamado interesse público é um estorvo… Comer no prato quente da vingança contra quem desvendou o império de desmandos poderá ser o cotidiano da atuação política do controvertido personagem, daqui para a frente. Para tanto, a “fera acuada” contaria com gravações de “conversas impróprias” de figurões que teria em seu poder, desde os tempos da Telerj, e de uma lista em que estariam mais de cem deputados e senadores, a quem “ajudou” em campanhas e outras situações de dificuldade.
Apogeu e queda vivem os impérios. Parece que Cunha sintetiza, em sua trajetória pública individual, o destino de grandes construções políticas na história das sociedades. Líder e articulador, sem dúvida, mas sem o carisma inebriador das massas, chegou à presidência da Câmara dos Deputados com incontrastável vitória, no primeiro turno, por maioria absoluta. Sua campanha foi no melhor estilo da democracia plutocrática vigente: cara, com deslocamentos aéreos por todo o país, promessas corporativistas, almoços e jantares para conquistar um colégio eleitoral de… 513 deputados. O chamado “baixo clero” sentiu-se muito representado por sua candidatura, de “valorização do parlamentar”, como se cada um fosse uma instância própria. Não por acaso, jamais a ideia e a dinâmica de partido foram tão precarizadas, avultando as posições personalistas ou de grupos de interesse. Cunha preside a Câmara dos “partidos” das empreiteiras, dos bancos, das mineradoras, das bancadas de igrejas fundamentalistas. Internamente, montou uma máquina de subserviência, controlando com mão de ferro as direções de órgãos da Casa e determinando, sob pena de exoneração, que fizessem apenas o que ele, monárquico, autorizasse. Nunca como em sua gestão os servidores, inclusive os concursados e permanentes, se sentiram tão humilhados e inibidos em sua atuação.
Sua relação com o governo, com quem seu partido compartilha o poder, tendo a vice-presidência e sete ministérios, é de “pau e prosa”, mais aquele do que esta. O impeachment, ato mais drástico e contundente de nossas previsões constitucionais, revela o intestino grosso da pequena política: virou moeda de troca, peça de chantagem, por mais que Cunha já não tenha condições morais e políticas de se pronunciar sobre ele. Nesse contexto, sob sua direção, o impeachment de Dilma tornou-se instrumento tacanho, menor, rebaixado, manipulado de acordo com interesses inconfessáveis. Governistas estariam sendo orientados a não dar curso à representação contra Cunha no Conselho de Ética. Um dirigente tucano, escondido no anonimato, revelou na coluna Panorama Político (O Globo, 17 out. 2015) a utilidade de Cunha para eles: “Eduardo nos ajudou a desestabilizar o governo Dilma. E, independentemente do que foi aprovado, ele colocou a Câmara para funcionar”. Funciona, diga-se, com uma pauta ultraconservadora, que ele coloca em prática aos atropelos com seu grupo ainda majoritário, tanto no plano dos costumes como no da cristalização de um sistema político elitista, sequestrado pelo poder das grandes corporações.
Pode-se dizer que, nos seus nove meses na presidência da Câmara, suas maiores derrotas vieram de fora: pela decisão do STF de considerar inconstitucional o financiamento empresarial de partidos e campanhas, que Cunha tenta desesperadamente reverter, com apoio do PSDB, do DEM, do PP e do PTB. E pelas alentadas investigações do Ministério Público sobre suposta prática de crimes como corrupção passiva, lavagem de dinheiro e sonegação fiscal. O que se diz é que, não fora seu foro privilegiado, Cunha já teria sido levado à prisão – se mantido, nessa hipótese, o rigor com que o juiz Sérgio Moro tem tratado acusados poderosos.
Aproxima-se o fim: nunca na história deste país um presidente de poder sofreu tantas e tão robustas acusações em tão curto espaço de tempo. Nunca um parlamentar foi tão denunciado – na Lava Jato, é o mais delatado – sem responder ao que lhe é imputado, como se nada lhe dissesse respeito. O deputado Jarbas Vasconcelos, seu colega de partido, é contundente: “Esse cidadão é um debochado, um corrupto comprovado, um cínico, um psicopata” (Folha de S.Paulo, 26 out. 2015). Sem resposta. Cunha, quando fala sobre as tremendas denúncias de que é alvo, torna-se lacônico e repetitivo: só fala sobre “a perseguição política do PGR” e de sua “absoluta tranquilidade diante dos fatos apontados” – lembrando aquele homem da anedota, que despenca de um prédio de 15 andares e, na altura do décimo, diz: “Até aqui tudo bem…”. Nunca os advogados de uma pessoa politicamente exposta ficaram tão anônimos: o principal de Cunha, o ex-procurador-geral da República Antonio Fernando, não responde a telefonemas e jamais concedeu entrevista em defesa de seu cliente, apesar de – supõe-se – regiamente pago. Por outro lado, nunca um deputado com tal grau de desgaste conseguiu tamanha adesão cúmplice de tantos líderes partidários de peso. Esses “arautos do mutismo”, contrariando a tradicional busca de holofotes, até aqui só fugiram da imprensa.
Eduardo Cunha, apesar de sua tenacidade e apego ao poder, será figura fugaz na vida republicana. Luziu enquanto durou: uma luz que nada iluminou, apenas confundiu. Sobrevive dos efeitos reflexos do poder que constituiu, pois os prazos do sistema político paquidérmico, avesso à participação popular, não são os da ansiedade de nossa gente, farta da corrupção e da hipocrisia dos políticos. Cercado, atira a esmo, mesmo sabendo que, a esta altura, suas balas são de festim, pois lhes falta o chumbo da credibilidade. Ainda assim, Cunha sobrevive – aos trancos, barrancos, ameaças e arreganhos autoritários – no vácuo das profundas contradições do governo Dilma. Este só tem em mente resistir até 2018, para tanto até tentando cumprir o programa do adversário derrotado em 2014 e praticando o mais deslavado toma lá dá cá de nossa história recente. Frustrando, mais uma vez, aqueles que apostaram em uma mudança substantiva do país.
No plano da história, mesmo o que está definitivamente falido, em apodrecimento, só é superado quando, no concreto da política e na manifesta vontade das ruas, aparecem alternativas de superação, com a articulação de uma nova hegemonia. A ética da política não resulta de valores morais de “heróis nacionais”, e sim de uma cumulativa consciência coletiva. Ela caminha junto com a constituição de uma democracia mais participativa, com instituições transparentes. E com um sistema eleitoral que equalize as oportunidades de disputa no plano das ideias, dos programas e das causas maiores, e não dos interesses, do pragmatismo e das coisas sonantes, sob o poder dissolvente do dinheiro. Esta é a cunha democrática que precisa ser colocada dentro dos podres poderes. Nesse ambiente, a pequena política, movida a grandes e escusos interesses, ficará ao menos contida.
Chico Alencar é professor de História e deputado federal (Psol-RJ).