Três compromissos em defesa da internet livre, colaborativa e diversa
Com base na experiência de mais de vinte anos da Wikipédia no desenvolvimento de sistemas abertos para a criação e o compartilhamento de conteúdos educacionais e fontes de informação livres, propomos três compromissos principais em defesa da internet livre, colaborativa e diversa
O Brasil está no centro das negociações globais sobre a governança digital. Organiza neste mês, em São Paulo, o NETmundial+10, um encontro internacional para a construção coletiva das prioridades sobre a internet, e atua na discussão sobre o Pacto Digital Global, uma iniciativa das Nações Unidas para promover um ambiente digital seguro e inclusivo. A ONU publicou no início de abril uma primeira versão desse pacto, estabelecendo uma série de princípios e compromissos para uma agenda comum internacional sobre a internet. A formalização do Pacto Digital Global deve acontecer em setembro deste ano, e pode ser o marco que influenciará na elaboração e revisão de marcos regulatórios nacionais e regionais.
As medidas regulatórias sobre a internet estão normalmente centradas nas chamadas plataformas comerciais, associadas a diversas formas de desinformação e violação de direitos humanos. Supostamente em nome da liberdade de expressão, essas plataformas permitem práticas que são acusadas de desrespeitar a lei e desestabilizar a ordem social. No entanto, a internet é um ambiente diverso, e ignorar essa diversidade pode resultar em normas inadequadas, com consequências indesejáveis para projetos digitais livres e de interesse público. Esses projetos incluem repositórios científicos, culturais e cartográficos, ambientes de compartilhamento de códigos, além da enciclopédia digital multilíngue Wikipédia, um dos dez sites mais acessados do mundo e o único que não tem finalidade comercial nessa lista.
A Wikipédia e os outros projetos da Wikimedia garantem acesso gratuito a informações neutras e bem fundamentadas sobre ciência, cultura, história e outros temas de relevância educacional. As informações são adicionadas, organizadas e editadas por uma comunidade descentralizada de pessoas voluntárias, que se envolvem em debates abertos para chegar a um consenso em torno de decisões de conteúdo e políticas. Essas pessoas lidam com a maioria dos problemas diários de conteúdo nos projetos da Wikimedia, como vandalismo ou edições que não atendem aos padrões de confiabilidade e neutralidade da Wikipédia. A governança e a moderação de conteúdo colaborativas, fundamentadas na contribuição de boa-fé, permitiram que esse projeto descentralizado se tornasse um modelo de liberdade de expressão online e um bastião social na luta contra a desinformação.
À medida que as regulamentações para ambientes digitais evoluem, precisamos garantir que promovam uma internet onde projetos de interesse público possam prosperar. Com base na experiência de mais de vinte anos da Wikipédia no desenvolvimento de sistemas abertos para a criação e o compartilhamento de conteúdos educacionais e fontes de informação livres, propomos três compromissos principais em defesa da internet livre, colaborativa e diversa, ainda não suficientemente contemplados no texto preliminar do Pacto Digital Global.
Primeiro, é preciso haver um compromisso com a proteção e o empoderamento de comunidades para a gestão colaborativa de projetos digitais de interesse público. Projetos globais para o conhecimento livre e aberto, como a Wikipédia, não deveriam ser uma exceção na internet e, por isso, a comunidade internacional deve assegurar um ambiente regulatório em que comunidades possam construir e gerir seus projetos de interesse público e no qual novos espaços de troca cultural e educacional possam emergir.
Segundo, é preciso haver um compromisso com a proteção e promoção de bens públicos digitais dos quais todas as pessoas possam se beneficiar. Ambientes digitais livres dependem da consolidação do domínio público e da difusão de conteúdos abertos sob licença livre. Esses ambientes devem ser multilíngues, para que as pessoas possam aprender em sua própria língua, e fundamentar-se em práticas culturais éticas, com respeito às diferenças de visão de mundo sobre a digitalização de saberes.
Terceiro, é preciso haver um compromisso com uma inteligência artificial do bem. A tecnologia deve estar a serviço dos direitos humanos, não ameaçá-los. A IA pode contribuir significativamente para o avanço dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, por exemplo ao auxiliar as pessoas na busca e verificação de conhecimento. No entanto, é crucial que tais ferramentas sejam desenvolvidas em conformidade com padrões internacionais de direitos humanos, garantindo, assim, a participação por meio de processos transparentes e abertos, controlados pelas comunidades que elas buscam atender.
Com base nesses três compromissos e em defesa de uma visão positiva para o futuro da internet, a Wikimedia lança este mês uma carta-aberta à comunidade internacional e em especial aos cofacilitadores do Pacto Digital Global. Nossas recomendações pretendem fortalecer uma visão global da internet que combata a desinformação, proteja os direitos humanos e viabilize a missão de empoderar todas as pessoas para acessar, desenvolver e difundir o conhecimento para todo o mundo.
João Peschanski é diretor executivo do Wiki Movimento Brasil.