Inteligência Artificial para ação climática: o novo elefante na sala da COP28
Durante as duas semanas da COP28, a IA foi tema de eventos na programação oficial e paralelos, de anúncios de iniciativas e parcerias e ainda citada de forma reiterada pela delegação dos EUA como extremamente relevante para aparecer no documento final
A aplicação da Inteligência Artificial (IA) para o combate à mudança do clima é a grande novidade no âmbito das negociações que ocorreram na COP28, em Dubai. Apesar disso, o tema não ganhou até agora o merecido destaque na mídia e nas análises. Os combustíveis fósseis deixaram de ser o elefante na sala e foram trazidos para o centro do debate nas últimas semanas, culminando na decisão histórica que se refere à transição energética. Agora, o posto incômodo tem outro dono: a IA. Embora a agenda de tecnologia não seja novidade neste espaço, Dubai marca a chegada do assunto a outro patamar.
Durante as duas semanas da COP28, a IA foi onipresente. Foi tema de eventos de alto perfil, de anúncios de iniciativas e parcerias, tópico de vários eventos paralelos e ainda citada de forma reiterada pela delegação dos EUA como extremamente relevante para aparecer no documento final.
A menção ao assunto constou nas sucessivas versões de redação do texto final e garantiu sua presença nominal em um parágrafo específico no principal texto político desta COP, o Balanço Geral do Acordo de Paris (Global Stocktake, GST), além das referências indiretas sobre o tema feitas ao longo do texto e em decisões de outros itens de agenda.
IA onipresente no espaço das negociações
No saguão principal entre as salas de reuniões, uma tela gigantesca projetava em looping uma série de vídeos que exemplificam as aplicações da IA do Google Sustentabilidade, combinando a capacidade de pesquisa do Google Research com Google Maps e Google Crisis Response, entre outras unidades da gigante de tecnologia em parceria com outras empresas.
Entre os exemplos está a associação de IA e imagem de satélite para redução dos impactos causados pela queima do combustível de aviação, visíveis nos comtrails, rastros brancos de fumaça nos céus. Em parceria com a American Airlines e a Breakthrough, o Google Research avalia imagens de satélite, dados meteorológicos e trajetória de voo para desenvolver mapas de previsão e testar rotas alternativas em função de densidades e composições atmosféricas. Estes comprovam e contabilizam os esforços de mitigação da empresa aérea.
Várias outras possibilidades são exploradas nos vídeos promocionais, algumas experimentais, outras já em fase piloto e diferentes graus de implementação ao redor do mundo, como recálculo de rotas de comércio marítimo para economia de combustível; restauração florestal; gerenciamento de qualidade do ar e alergias sazonais; monitoramento do nível dos rios e chuvas para previsão de enchentes; monitoramento de incêndios florestais; melhoria da avaliação e planejamento para ações pós-desastres climáticos; descarbonização da transmissão de energia elétrica com distribuição inteligente da energia gerada por consumidores-produtores, entre muitas outras aplicações.
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As iniciativas combinam o Google com outras empresas, organizações humanitárias e governos e antecipam o que toma forma como uma nova indústria de serviços e produtos climáticos. Diante disso, várias novas questões se colocam. Na perspectiva de monetização dessas atividades e no horizonte de consolidação dos mercados de carbono, como as empresas de tecnologia e suas IAs entram nas parcerias com os governos locais, regionais e nacionais? Como esta agenda se relaciona com os mecanismos de financiamento climático? Diante de ferramentas tão poderosas e que oferecem onisciência ambiental e planetária, qual lugar ocuparão tecnologia, indústria e mercado de serviços nacionais?
UNFCCC e Microsoft
No dia da abertura da COP28, o secretariado da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (UNFCCC) e a Microsoft comunicaram publicamente uma parceria que permitirá a criação de uma nova plataforma alimentada por IA e um centro de dados climáticos globais para medir e analisar o progresso global na redução de emissões. A Microsoft será a empresa responsável por fornecer suporte digital à Estrutura de Transparência Aprimorada da UNFCCC (Enhanced Transparency Framework, ETF), espinha dorsal do Acordo de Paris.
Na prática, a Microsoft vai consolidar a interface digital na qual os objetivos do esforço multilateral para combater a mudança do clima aparecerão objetivamente medidos e visualizados. Afinal, nas palavras de Simon Stiell, secretário da UNFCCC, “não se pode corrigir o que não se pode medir”. A parceria com a empresa colocará à disposição dos países ferramentas para “planejar estratégias de redução de carbono usando simulações, benchmarks e visualizações de dados para ajudar a informar ações específicas, economizando tempo e dinheiro”. Isso inclui rastrear transporte, agricultura, processos industriais e outras fontes de emissões de carbono.
A etapa seguinte será operacionalizar a plataforma de registro e transparência para a fase das transferências das unidades que representam resultados de mitigação de emissões. Sem entrar em detalhes, este operativo, relativo ao Artigo 6 do Acordo de Paris, envolve uma plêiade de questões extremamente complexas, técnicas e políticas na consolidação de um mercado global de carbono.
Do ponto de vista de infraestrutura, a implementação da nova economia global do carbono depende da interface para a transparência e integridade dos números submetidos pelos países (a ETF) e também para registrar e acompanhar o progresso dos compromissos submetidos por atores não-estatais, segundo outra iniciativa tocada pelo secretariado, o “Recognition and Accountability Framework”. E a Microsoft será a empresa responsável por construir este espaço que garantirá, no futuro, a essencial interoperabilidade entre os registros nacionais e a “nave mãe” no âmbito da UNFCCC.
Clima, IA e governança multilateral
Na COP 28, durante as negociações do texto do GST, o Brasil foi o único país a fazer ressalvas importantes. Primeiro, observou que a digitalização pode ter aportes importantes para a questão do clima, mas é preciso levar em conta seus trade offs, ou seja, o aumento de demanda por energia e de minerais críticos para as baterias. Já no início da segunda semana, o Brasil fez referência ao marco de proteção dos direitos humanos quando da consideração da aplicação da IA para ação climática.
A União Europeia tem a primeira tentativa de propor uma regulação da IA e aprovou o seu AI ACT em 9 de dezembro, após um processo de discussão iniciado em abril de 2021. Como o primeiro legislador do mundo a tentar estabelecer uma lei sobre IA, busca criar um padrão global para a regulamentação da tecnologia em outras jurisdições, promovendo a abordagem europeia no cenário mundial.
Iniciativas concorrentes para a governança da IA
O secretário-geral da ONU, António Guterres, lançou uma iniciativa que conta com um conselho consultivo de 39 membros e irá analisar opções para a governança da IA. O conselho teve sua primeira reunião no final de outubro e deve lançar um relatório até agosto de 2024, seguido por uma cúpula para apresentação dos resultados. A China lançou, também em outubro, uma iniciativa para Governança Global da IA centrada nas pessoas e com participação dos países do Sul.
Nos próximos anos, a agenda em torno da utilização massiva da IA tem tudo para se equiparar à preocupação com a agenda do clima. Aproveitando seu papel na presidência do G20 e de anfitrião da Cúpula dos Brics, em 2024, e da COP30, em 2025, e sendo palco de experiências pioneiras como a criação do Marco Civil da Internet, o Brasil poderia assumir protagonismo neste debate, não apenas por conta dos vastos impactos sociais da aplicação da IA em processos massivos de automação e pelo papel monopólico das empresas norte-americanas de BigTech neste processo, mas sobretudo pelas implicações civilizacionais que ele encerra. Para que, no bojo de uma transição justa rumo a um futuro de baixo carbono e em nome do combate à mudança do clima, possamos também garantir soberania na era digital sem cair em um panóptico distópico.
Camila Moreno é pesquisadora, acompanha as negociações da UNFCCC desde 2008 e membro do Grupo Carta de Belém.