Trump ressuscita o imperialismo: o retorno da guerra total
Enquanto os Estados Unidos anunciam o maior orçamento militar de sua história e impõem novas barreiras comerciais a dezenas de países, cresce o alerta sobre a reconfiguração do imperialismo em escala global. Inspirado na obra da revolucionária Rosa Luxemburgo, Antonio Mota, analisa como o tripé formado por militarismo, protecionismo e repressão social — central no expansionismo alemão do fim do século 19 — reaparece com força nos governos de Donald Trump. Entre navios de guerra e caças de última geração, o imperialismo se atualiza, mas segue operando em favor dos interesses da burguesia global.
Imperialismo, passado e presente
Ao longo de sua vida e obra, Rosa Luxemburgo acompanhou de perto o desenvolvimento de uma nova era do capitalismo, o imperialismo. Em A acumulação do capital, livro escrito de 1912 e publicado em 1913, Luxemburgo desenvolve sua interpretação mais articulada sobre o tema, mas desde o fim do século XIX é possível encontrar em seus textos recorrentes menções à “política mundial” (Weltpolitik), expressão então utilizada como um sinônimo de imperialismo.

Longe de ser uma questão superada, o imperialismo segue sendo uma característica das relações internacionais. A recente eleição de Donald Trump e a formulação de uma política de guerra total, composta por uma guerra social, comercial e militar, indica a atualidade daquele conceito. O objetivo desse texto é traçar paralelos entre a análise de Rosa Luxemburgo sobre o imperialismo e o contexto internacional atual. Na primeira seção, descrevemos como Luxemburgo analisa o militarismo no contexto da Alemanha do fim do século XIX e início do século XX. Na segunda, analisamos o papel do protecionismo na competição das burguesias nacionais pelo controle da economia mundial. Por fim, vemos como ambas as questões aparecem no contexto atual.
O militarismo
O militarismo é um dos componentes mais visíveis do imperialismo. Luxemburgo analisou em diferentes momentos como esse fenômeno se desenvolveu no Império Alemão. Até o período da unificação, a marinha alemã era basicamente uma força de defesa costeira. Pouco depois de sua ascensão como Imperador, em 1888, Guilherme II iniciou uma cruzada pessoal para expandir o poderio naval alemão. Uma das questões discutidas por ele foi a necessidade de proteger as recém-conquistadas colônias de outras potências europeias, como o Reino Unido.
Em 1889, a pedido do Imperador, o parlamento (Reichstag) aprovou a construção de quatro navios de guerra. Em 1895, o Imperador exigiu trinta e seis cruzadores, o Reichstag, no entanto, aprovou apenas quatro; no ano seguinte, todas as exigências para novos cruzadores foram rejeitadas completamente. O fracasso em conseguir o aval do parlamento para a expansão da marinha fez com que o monarca buscasse uma ampla reformulação da política naval.
Em 1897, foi levada ao parlamento a primeira lei naval, que previa a construção, até 1905, de uma frota com dezenove navios de guerra de alto-mar e oito navios de guerra costeira; doze grandes cruzadores; trinta pequenos cruzadores; e doze divisões de torpedeiros. O custo da expansão naval foi orçado em 58 milhões de marcos por ano. Pouco tempo após sua aprovação, ocorrida em abril de 1898, foram convocadas novas eleições legislativas. Em 1900, já com a nova composição do parlamento, foi proposta e aprovada uma segunda lei naval, que previa a expansão da frota para trinta e oito navios de guerra, catorze cruzadores grandes e trinta e oito pequenos.
O “navalismo” (Marinismus), termo usado pelo Partido Social-Democrata Alemão (SPD) para descrever a expansão da frota de guerra, foi analisado de perto por Rosa Luxemburgo, que havia se instalado na Alemanha poucos dias antes da votação da primeira lei naval. No artigo Para a apresentação da frota, publicado dia 03 de novembro de 1899 no jornal Leipziger Volkszeitung, Rosa aponta que o investimento na construção de navios de guerra não representava apenas um esforço militar, mas uma oportunidade lucrativa para os capitalistas alemães. Ela observa que, enquanto alguns navios mercantes eram construídos no exterior, os navios de guerra eram sempre produzidos nos estaleiros nacionais, transformando-se em “uma mina de ouro para os lucros capitalistas”. Assim, a política naval aparece como um meio de transferência de recursos públicos para empresários envolvidos na indústria naval, mascarada pelo discurso nacionalista.
Vale ressaltar que o desenvolvimento industrial da Alemanha esteve amplamente baseado na estruturação de grandes oligopólios, muitos dos quais, vinculados à indústria siderúrgica, metalúrgica e também militar. É o caso, por exemplo, das indústrias Thyssen e Krupp. A título de curiosidade, os armamentos produzidos na Alemanha nesse período chegaram a ser exportados para o Brasil e foram utilizados, por exemplo, na campanha contra o Arraial de Canudos, ocorrida entre 1896 e 1897[1].
A guerra Hispano-Americana, ocorrida em 1898, foi usada como parte da justificativa do governo alemão para solicitar a ampliação da frota de guerra. Tendo sido derrotada pelos Estados Unidos, a Espanha acabou perdendo as suas últimas colônias. De acordo com o governo, uma frota maior impediria que o mesmo ocorresse com o Império Alemão. No artigo A segunda declaração oficial sobre a questão da frota, também publicado no Leipziger Volkszeitung, em 4 de novembro de 1899, Luxemburgo denuncia a fragilidade desse argumento ao ressaltar que a guerra entre os Estados Unidos e a Espanha não justificava de forma plausível os gastos crescentes com armamentos navais. A retórica oficial, segundo ela, procurava legitimar um projeto expansionista que visava consolidar o poder político e econômico da burguesia imperialista alemã.
É importante ressaltar que, para nossa revolucionária teuto-polonesa, o militarismo não era algo que se restringia à ação do Estado e ao desenvolvimento da sua política externa. As implicações do militarismo também se davam no âmbito nacional. Por um lado, os setores da burguesia que se beneficiavam da venda de insumos para a expansão militar ampliavam seus lucros; por outro, o chauvinismo nacionalista podia produzir impactos na consciência da classe trabalhadora. Ao mobilizar a ideia de uma identidade nacional homogênea, o militarismo e, junto dele, o nacionalismo, deslocam o foco das desigualdades sociais para “inimigos externos”, fragmentando a luta da classe trabalhadora. O militarismo também abria espaço para um maior controle e repressão da classe trabalhadora e de suas organizações.

O protecionismo
No artigo Aumento da frota e política comercial, publicado dia 10 de novembro de 1899, no mesmo jornal, a crítica se aprofunda com a exposição da contradição entre o discurso liberal e a prática protecionista da Alemanha. Rosa Luxemburgo ironiza a justificativa apresentada pela revista Der Deutsche Oekonomist, que via na ampliação da frota um meio de promover o livre comércio global. Ela expõe a incoerência ao apontar que, se a Alemanha quisesse realmente lutar contra o protecionismo, deveria começar desmantelando suas próprias barreiras tarifárias, especialmente contra a importação de cereais. Ao invés disso, o governo mantinha políticas protecionistas internas enquanto promovia uma expansão naval supostamente liberalizante, revelando a aliança entre militarismo, imperialismo e um nacionalismo distorcido.
Esse artigo é particularmente relevante pois, nele, Luxemburgo indica que o desenvolvimento do capitalismo, sobretudo no seu formato imperialista, é marcado pela conjugação de diferentes guerras. O militarismo e a preparação para guerra em seu aspecto bélico estão intimamente vinculados à guerra comercial e à guerra social contra a classe trabalhadora. Como indica a autora: “Uma política mundial agressiva anda de mãos dadas com uma política comercial agressiva, assim como ambas andam de mãos dadas com uma política social reacionária dentro da vida do Estado. Entre essas três coisas – política mundial, política comercial, política social – existe uma ligação lógica impossível de quebrar”.
A crítica ao protecionismo alfandegário é uma marca recorrente não apenas na obra de Luxemburgo, mas do socialismo daquele período. Ainda que no início do capitalismo o protecionismo pudesse ter ajudado o desenvolvimento da grande indústria, no momento retratado, a proteção servia apenas para manter artificialmente certas formas de produção ultrapassadas. As tarifas alfandegárias aumentavam o preço das mercadorias importadas, impedindo o progresso da indústria. O protecionismo só fazia sentido para a burguesia, que precisava de barreiras artificiais para proteger o mercado. Tratava-se, portanto, de uma arma da burguesia de um país contra as burguesias do resto do mundo.
Além disso, o protecionismo contribuía para o financiamento da expansão das despesas militares. Sendo os impostos alfandegários um tipo de tributo indireto e, portanto, regressivo, o peso do financiamento do militarismo recaía sobre a classe trabalhadora, a que menos se beneficiaria do militarismo.
Nós e o imperialismo hoje
No dia 08 de novembro de 2016, o mundo assistia incrédulo à eleição de Donald Trump. Ainda que tivesse conseguido cerca de três milhões de votos a mais que Trump, a candidata democrata Hillary Clinton perdeu devido ao formato indireto de eleição, cujo resultado é determinado pelo colégio eleitoral.
Logo nos primeiros dias de seu mandato, Trump publicou uma série de medidas que visavam aplicar o programa conservador que defendera durante a campanha. Era evidente que seu governo punha em prática uma ampla guerra social contra o “andar de baixo” da sociedade americana: trabalhadores, mulheres, povos originários, negros, a população LGBTQIA+ e imigrantes.
Em novembro de 2020, ainda sob o impacto da pandemia de Covid-19 e da gestão catastrófica do governo federal, ocorreu nova eleição presidencial, que opôs Trump a Joe Biden. Não é difícil lembrar a dramaticidade daquele pleito. Ao contrário do que ocorrera em 2016, Biden obteve tanto a maioria do voto popular quanto dos delegados no colégio eleitoral. Fato não menos importante foi o aumento dos votos obtidos por Trump, que passou de cerca de 63 milhões, em 2016, a 74 milhões.
As seguidas tentativas do governo federal de interromper a contagem de votos, o questionamento sistemático do resultado eleitoral, culminando com a invasão do Congresso dos Estados Unidos no dia da validação da eleição de Biden, pareciam indicar o encerramento da era Trump. Os dois processos de impeachment aprovados na Câmara dos Deputados e as dezenas de processos cíveis e criminais de que foi réu seriam a última nota do dobrado de finados da sua carreira política. Sabidamente, não foi o que ocorreu.
Nas eleições de 2024, Trump foi novamente eleito, garantindo uma grande vitória ao Partido Republicano, que também alcançou a maioria nas duas casas do Legislativo. Contando com o apoio aberto das grandes empresas de tecnologia e com maior experiência administrativa, o segundo mandato de Trump se anuncia como um revés ainda mais duro contra a maioria da população estadunidense, com evidentes repercussões para a situação política mundial.
Passados os primeiros cem dias do seu novo governo, a guerra total aparece como a tônica política. A guerra social foi ampliada, entre outras decisões, com o fim dos programas de diversidade, equidade e inclusão, a ameaça de fechamento do Departamento de Educação, autoridade federal do âmbito educacional, da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, responsável pelo envio de ajuda humanitária a diferentes países do mundo, e com os seguidos ataques à pesquisa universitária. No âmbito internacional, o anúncio de taxas de importação contra a maior parte do resto mundo indica o início de uma guerra comercial, a qual tende a reduzir o crescimento da economia mundial, aumentar a inflação e o desemprego[2].
Quanto ao aspecto militar e estratégico, a Casa Branca anunciou um contrato de cerca de US$ 20 bilhões com a Boeing para o desenvolvimento e construção do F-47, caça de guerra de sexta geração, descrito por Trump como “o mais letal já criado”. Poucas semanas antes desse anúncio, o visto pela primeira vez o protótipo do caça chinês de sexta geração, o J-36. No projeto inicial de orçamento federal para 2026, a Casa Branca propôs um corte de US$163 bilhões em despesas do governo, muitas delas classificadas como uma “agenda marxista”, combinado a um aumento de US$119 bilhões em gastos militares, que chegarão a US$1,01 trilhão. A título de comparação, o PIB do Brasil, em 2024, foi de cerca de US$2,1 trilhões de dólares.
Tabela 1 – Gastos militares por região em bilhões de dólares (preços constantes de 2023)
2017 | 2018 | 2019 | 2020 | 2021 | 2022 | 2023 | 2024 | |
Mundo | 1980,4 | 2038,9 | 2124,5 | 2200,4 | 2222,6 | 2294,5 | 2447,4 | 2676,5 |
África | 44,0 | 40,6 | 41,1 | 42,3 | 44,4 | 42,5 | 50,2 | 51,7 |
Américas | 893,4 | 919,6 | 966,4 | 1010,6 | 999,1 | 987,1 | 1009,6 | 1068,4 |
Ásia e Oceania | 476,5 | 495,2 | 520,0 | 538,3 | 554,1 | 566,7 | 595,0 | 632,2 |
Europa | 375,6 | 384,8 | 405,1 | 427,4 | 441,2 | 505,0 | 581,5 | 680,7 |
Oriente Médio | 190,9 | 198,7 | 191,8 | 181,7 | 183,8 | 193,3 | 211,2 | 243,5 |
Fonte: SIPRI
É importante ressaltar que a ampliação do gasto militar não é uma exclusividade dos Estados Unidos. Como se nota na tabela 1, em todas as regiões do mundo, as despesas militares aumentaram ao longo dos últimos anos, em particular a partir de 2022 e após a invasão da Ucrânia pela Rússia. Entre 2017 e 2024, as despesas militares mundiais aumentaram em 35%, chegando a US$2,67 trilhões de dólares. Certo, essa despesa está concentrada nos Estados Unidos, mas não se pode desprezar o aumento percentual das despesas militares na Europa, que aumentaram em mais de 80% no mesmo período. A ampliação do orçamento militar fez com que a Europa ultrapassasse a Ásia como segunda região com maiores gastos desse tipo. De acordo com a base de dados do Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), a China, país com o segundo maior orçamento militar do mundo, gastou, em 2024, cerca de US$317 bilhões, valor 42% superior ao de 2017[3].
Conclusão
A análise de Rosa Luxemburgo sobre o imperialismo e suas características estruturais permanece relevante no contexto contemporâneo, marcado pela intensificação das disputas econômicas, sociais e militares em escala global. A expansão militar promovida pela Alemanha no fim do século XIX e início do século XX, impulsionada por interesses capitalistas e legitimada por discursos nacionalistas, ecoa na atual política externa de potências como os Estados Unidos, que, sob o governo Trump, ampliaram os investimentos militares enquanto adotavam políticas comerciais protecionistas e promoviam ataques a direitos sociais. Assim como Luxemburgo identificou a articulação entre militarismo, protecionismo e controle social no contexto imperialista de seu tempo, é possível observar a persistência dessa lógica na contemporaneidade, especialmente no que diz respeito à instrumentalização do poder militar para garantir a hegemonia econômica e política.
Além disso, a convergência entre aumento dos gastos militares e políticas sociais regressivas não se limita ao contexto norte-americano. A expansão dos orçamentos de defesa na Europa, impulsionada por tensões geopolíticas e pela busca de autonomia estratégica, reforça a correlação entre militarismo e políticas comerciais agressivas, evidenciada também pelo aumento das despesas militares mundiais nas últimas décadas. Dessa forma, a crítica ‘luxemburguista’ ao imperialismo não apenas ilumina as raízes históricas desse fenômeno, mas também contribui para a compreensão crítica dos desafios atuais, indicando que o aprofundamento das contradições sociais e econômicas não pode ser dissociado das estratégias imperialistas que, em última instância, servem aos interesses da burguesia internacional.
Antonio Mota é professor do curso “O Legado Revolucionário de Rosa Luxemburgo”. Professor de Economia Política Internacional do Departamento de Relações Internacionais da EPPEN-UNIFESP. Doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (2022), mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo (2017) e graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Ceará (2012). Realizou um período de pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros (USP) e na École des hautes études en sciences sociales (EHESS – Paris). Suas áreas de pesquisa são: teorias do imperialismo; terceiro mundismo; nacionalismos; internacionalismo socialista.
O texto foi editado por Katarine Flor.
Este artigo foi produzido com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo.
[1] No conhecido relato que produziu da campanha de Canudos, Euclides da Cunha menciona que “o comandante do Distrito apelava para o governo federal requisitando, para a aparelhar melhor, quatro metralhadoras Nordenfeldt, dois canhões Krupp, de campanha, e mais duzentos e cinquenta soldados: cem do 26º Batalhão, de Aracaju, e cento e cinquenta do 33º, de Alagoas. Todo este aparato era justificável.” (Da Cunha, 2019, p. 281).
[2] Em abril, o Fundo Monetário Internacional reduziu a projeção de crescimento da economia mundial em 0,8% para o ano de 2025.
[3] Em preços constantes, utilizando como referência o ano de 2023.