Um país infestado por agrotóxicos
O Brasil é hoje o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, como consequência de uma política que vem sendo construída desde meados da década de 1970 e que se intensifica pelo modelo agrícola monocultor extensivo e concentrador de terrasLia Giraldo
A utilização de agrotóxicos no Brasil tem trazido graves problemas para a saúde do trabalhador rural, para aqueles que consomem produtos contaminados, para os que trabalham nas fábricas produtoras e para o meio ambiente.
Para os camponeses, os problemas relacionados a situações de risco de exposição, adoecimento e acidentes com agrotóxicos são decorrentes principalmente da toxicidade desses produtos, da precariedade dos mecanismos de fiscalização e vigilância da saúde, da inadequada informação para aqueles que com eles entram em contato no trabalho ou no ambiente, da falta de medidas de proteção coletiva e/ou de equipamentos adequados de proteção individual, das irregularidades trabalhistas, das desigualdades sociais e injustiças ambientais, além da pouca instrução dos trabalhadores que os manipulam.
Triste recorde
O Brasil é hoje o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, como consequência de uma política que vem sendo construída desde meados da década de 1970 – quando o Plano Nacional de Defensivos Agrícolas foi lançado, condicionando o crédito rural à compra obrigatória de agrotóxicos pelos agricultores – e vem se intensificando pelo modelo agrícola monocultor extensivo e concentrador de terras.
O Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), criado pela Anvisa em 2001, revela, ano após ano, que muitos agrotóxicos excedem os limites máximos de resíduos (LMR) autorizados pela legislação. A iniciativa também detecta a presença de agrotóxicos proibidos para diversas culturas analisadas e que são produtos de mesa do consumidor, mostrando assim o franco desrespeito à legislação e as sérias implicações para a saúde pública.
Os efeitos adversos da exposição aos agrotóxicos em populações humanas e em outras espécies animais são estudados conforme os diversos grupos químicos. Os organofosforados são os agrotóxicos mais utilizados em variedades de culturas, e entre seus diversos efeitos tóxicos estão a neurotoxicidade, a imunotoxicidade, a carcinogenicidade, a desregulação endócrina e alterações no desenvolvimento do indivíduo.
Crianças, idosos e mulheres em idade fértil constituem grupos populacionais de especial risco, além dos trabalhadores rurais que de modo geral ficam submetidos continuamente à exposição aos agrotóxicos.
Em regiões menos desenvolvidas, como América Latina, África e Ásia, onde há sérios problemas sociais e de políticas públicas, o uso de agrotóxicos na agricultura é induzido e desregrado.
São diversos os estudos que mostram uma correlação direta entre as curvas de crescimento de venda e consumo de agrotóxicos com as de registros de intoxicações em seres humanos. Uma vulnerabilidade bem identificada é a grande subnotificação de casos de intoxicação por agrotóxicos no Brasil. Os profissionais de saúde não são capacitados em sua graduação nem nos serviços de saúde para promover, proteger e cuidar de pessoas sujeitas a intoxicações por agrotóxicos.
A Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) estima que para cada caso registrado de intoxicação por agrotóxico ocorrem cerca de cinquenta outros sem notificação ou com notificação errada. Esse dado permite inferir a gravidade desse problema. Obviamente, se não há notificação, provavelmente não há diagnóstico, fazendo supor que as pessoas adoecem envenenadas sem saber os fatores causadores e, muitas vezes, são submetidas a tratamentos equivocados que custam sacrifícios e sofrimentos.
O Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas é uma das fontes de informação de casos de intoxicação por agentes químicos. Embora apenas tangencie o problema, ele revela que os principais agentes químicos responsáveis por intoxicações atendidas nas emergências dos serviços de saúde estão relacionados à exposição aos agrotóxicos.
Tal exposição e a intoxicação ocupacional por eles têm o maior percentual do total de casos, evidenciando que os trabalhadores rurais são os mais afetados pelos agrotóxicos, situação agravada pelos contextos de produção e de vida e pelas precárias relações de trabalho.
Em estudos epidemiológicos de intoxicação por agrotóxicos no Brasil foram destacados diversos problemas na aplicação dessas substâncias. A tabela 1 mostra alguns desses estudos e os condicionantes que agravam a situação de risco dos agrotóxicos.
Todas essas situações revelam a complexidade da utilização dos agrotóxicos na atividade agrícola e estão diretamente associadas à toxicidade desses compostos.
Intoxicação generalizada
Um estudo por nós realizado em seis propriedades produtoras de tomate em Camocim de São Félix (PE 1997) revelou que 13,2% (de um total de 159) dos trabalhadores entrevistados informavam ter sofrido algum tipo de intoxicação. Além disso, 45 pessoas referiram mal-estar durante a aplicação de produtos, 70% das mulheres citaram problemas na gestação acarretando perda do feto e ainda 39,4% fizeram referência à perda de um filho no primeiro ano de vida.
Em Minas Gerais, entre 1991 e 2001, um estudo feito com 1.064 trabalhadores encontrou 50% deles moderadamente intoxicados, revelando alto grau de risco para a saúde. Jefferson José Oliveira-Silva, após efetuar diversos estudos no Rio de Janeiro, estimou que o número esperado de intoxicações agudas por agrotóxicos entre trabalhadores agrícolas brasileiros seria de 360 mil casos a cada ano somente no meio rural.
Um estudo realizado no Rio Grande do Sul destacou que 75% dos trabalhadores rurais utilizavam agrotóxicos, a maioria organofosforados, de forma intensa durante sete meses do ano, e 12% dos agricultores que usavam esses produtos tiveram ao menos uma vez na vida intoxicação aguda e 36% apresentavam transtornos psiquiátricos.
Sabemos que a exposição aos agrotóxicos não se dá apenas nas áreas rurais, mas a falta de saneamento faz aumentar as pragas urbanas, e com elas há o aumento do consumo de inseticidas, raticidas e outros venenos nos domicílios. A própria saúde pública lança mão de agrotóxicos para tentar controlar vetores de algumas endemias, como a dengue.
Em outras regiões do país, no Amazonas, no Mato Grosso, os estudos mostram o mesmo quadro de correlação entre as intoxicações e o uso de agrotóxicos na agricultura.
Como se sabe, não há agrotóxico que não seja atóxico, e a escala de toxicidade varia entre muito pouco tóxico a altamente tóxico, conforme pode ser visto na tabela 2, de classificação da Organização Mundial da Saúde. Portanto, não há que se minimizar os perigos desses produtos, que não poderiam ser utilizados do jeito que vemos hoje no campo.
Em geral no campo os trabalhadores estão expostos a múltiplos agrotóxicos, uma vez que estes são aplicados em misturas, nem sempre tecnicamente recomendadas. Essa exposição pode se manifestar em uma grande variedade de sintomas e sinais que dificultam o diagnóstico, o tratamento e as medidas de prevenção.
Deve-se lembrar que os agrotóxicos ou seus derivados podem permanecer ativos no ambiente por períodos variados, alguns por longo tempo, afetando todos os seres vivos dos ecossistemas de acordo com a susceptibilidade de cada espécie, incluindo o ser humano. Podem também afetar a qualidade do ar, da água e do solo.
Ao final, a própria agricultura acaba por ser prejudicada em razão dos desequilíbrios ecológicos ocasionados por esses biocidas, piorando a proliferação de pragas que vão exigir novos produtos com maior toxicidade ou então aumentando a quantidade ou ainda ampliando as misturas. Tudo isso traz obviamente um aumento de nocividade, tanto para a saúde humana como para a qualidade do ambiente.
Um exemplo clássico do efeito negativo dos agrotóxicos no solo é o processo de degradação pela eliminação de flora e fauna, a qual exige o uso de fertilizantes químicos − outro problema não devidamente avaliado, especialmente relacionado com a utilização de micronutrientes contaminados por metais pesados, conforme estudos já realizados.
A perda de vitalidade do solo acaba afetando a qualidade das plantas, tornando-as mais sujeitas a pragas e doenças, e mais agrotóxicos são empregados, num ciclo perverso de contaminação que atinge todos os seres vivos.
Lia Giraldo é Pesquisadora do Departamento de Saúde Coletiva do laboratório Saúde, Ambiente e Trabalho, Fiocruz Pernambuco.