Um retrato sobre a fome no Brasil e a força motriz da solidariedade social
Os dados são alarmantes e deveriam partir nossos corações – 125,2 milhões de brasileiros estão em situação de insegurança alimentar (correspondendo a 58,7% da população), destes, 33,1 milhões estão em estado de fome (15,5% da população brasileira)
Era noite de Natal. As pessoas estavam contentes e felizes em suas casas. Na véspera, foram às suas igrejas e em comunidade rezaram em memória ao nascimento do menino Jesus. Nas casas, mesas fartas esperavam estas pessoas acompanhadas dos mais variados pratos. As receitas novas aprendidas durante o ano iam sendo reveladas aos parentes e enquanto isso, do lado de fora, algo incomum acontecia: o lixo estava sendo revirado. Alguns talvez pensassem que eram gatos ou cachorros, mas a cena trazia outro tipo de bicho: o bicho gente. Pessoas vasculhando o lixo atrás do resto de alguma sobra das mesas fartas da noite anterior. Essas cenas, que se tornaram mais frequentes nos últimos dois anos, são apenas um exemplo das desigualdades sociais que assolam o Brasil.
No início de 2023, a ministra do meio ambiente, Marina Silva, e o ministro da economia, Fernando Haddad, representaram o Brasil no Fórum Econômico de Davos, na Suíça. Durante sua participação, a ministra Marina Silva destacou a desigualdade do mundo e alertou para o fato de que, no Brasil, 120 milhões de pessoas passam fome, e 33 milhões vivem com menos de um dólar por dia. O leitor/ouvinte da notícia que fosse mais atento às questões sociais poderia pensar que a mídia brasileira deu atenção significativa à denúncia feita pela ministra. Lamentavelmente não foi o que aconteceu. Ao invés de dar enfoque para o crítico cenário da fome no país, a mídia se concentrou em um suposto “erro” da ministra ao não diferenciar os graus de insegurança alimentar vividos pela população brasileira. O apego moralista à literalidade da fala pouco se preocupou em lamentar e “rasgar as vestes e o coração”, diante de tantos famintos pelo país. Talvez porque para muita gente a norma seja mais importante que a vida, lamentavelmente.
Durante o final de 2021 e início de 2022 a Rede PENSSAN (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar) produziu uma pesquisa sobre a realidade da fome no país. Nesta, verificou-se a situação da segurança alimentar no Brasil e se obteve dados chocantes. As informações foram agrupadas em duas categorias – a de pessoas que vivem em situação de segurança alimentar, ou seja, possuem alimentação regular e a de pessoas que vivem em insegurança alimentar. Esta última consiste em pessoas que não têm a nutrição básica diária, seja pela ausência de alimentos, seja pela regularidade que tomam refeições ou pela falta de valor nutritivo no que ingerem. Neste quadro, as pessoas ainda são categorizadas entre as que apresentam grau leve, moderado e grave – a fome em sentido pleno.
Os dados são alarmantes e deveriam partir nossos corações – 125,2 milhões de brasileiros estão em situação de insegurança alimentar (correspondendo a 58,7% da população), destes, 33,1 milhões estão em estado de fome (15,5% da população brasileira).
Segundo a perspectiva adotada pelos estudos históricos e antropológicos, é cabível afirmar que com a chegada dos colonizadores europeus, a história da fome no Brasil teve início a partir da implantação das monoculturas, além da escravização de negros e indígenas. A produção de açúcar, algodão e café no Brasil, América e Caribe provocou grande devastação ambiental e morte de milhares de seres, incluindo povos indígenas, africanos escravizados e a fauna- flora de Abya-yala. O sistema agrícola e econômico estabelecido nas colônias enriqueceu os colonizadores por meio de formas perversas de exploração ambiental, trabalho escravo e má nutrição. Tanta crueldade transformou terras prósperas e férteis em locais habitados por pessoas frágeis e famintas. Esta tem sido a nossa história: a história da colonização andando de mãos dadas com o capitalismo.
Então, se concordamos ser a fome um fruto da concentração de renda e da má distribuição de recursos, – dentre outras razões – ela indubitavelmente revelará a desigualdade social de uma nação. Assim, estatisticamente, as regiões do país mais afetadas pela fome são a Norte e Nordeste, com o grave recorte de famílias que têm mulheres como responsáveis e/ou que a pessoa de referência (chefe/mantenedor) se denomina de cor preta ou parda, como as mais atingidas.
Os parágrafos já expostos acima são o retrato do mesmo país que se coloca na economia global como um dos 5 maiores exportadores agrícolas. Segundo a CONAB – Companhia Nacional de Abastecimento, a safra brasileira de 2022/2023 está prevista em 310,6 milhões de toneladas de grãos, com destaque para a produção de milho, soja, arroz e feijão. É recorrente e repetida a questão: como conceber que um país recordista em produção agrícola possui milhares de pessoas em situação de insegurança alimentar e fome? É uma conta fácil de fazer até para quem não tem tanta afinidade com as ciências exatas. A resposta mais simples deveria ser – “não é possível”. A prática, entretanto, é diferente até mesmo da lógica matemática. Assim o é por se tratar de injustiça e desigualdade social. Não funciona a lógica matemática ou humana, mas sim a lógica financeira e a do lucro.
A contar do ano de criação do Indicador de Prevalência de Subalimentação da ONU, em 1974, o Brasil sempre foi identificado como um dos países com maior índice de fome no mundo. Somente em 2014, segundo relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), o Brasil conseguiu sair dessa condição. Os dados obtidos através de vários levantamentos, mostraram que entre 2002 e 2013, houve uma queda de 82% na população de brasileiros em situação de subalimentação. Além disso, a organização aponta que, entre 1990 e 2014, o percentual de queda foi de 84,7%. Ou seja, finalmente, o Brasil conseguiu ter menos de 5% da população em condição de subalimentação! A conquista foi resultado de mais de dez anos de implementação, acompanhamento e aprimoramento de políticas públicas destinadas a promover o direito constitucional à alimentação. Isso incluiu os 20 programas que fazem parte do guarda-chuva do Programa Fome Zero, que foram posteriormente utilizados pela FAO para promover a segurança alimentar em outros países.
Tal conquista infelizmente não perdurou tanto, uma vez que desde o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, em 2016, os lares brasileiros voltaram a ser assombrados pelos fantasmas da fome e da miséria. O governo de Michel Temer adotou uma postura de corte em programas e políticas de proteção social e optou por reduzir benefícios e subvenções dos programas sociais. Essa abordagem revelou que o golpe foi direcionado contra os mais pobres e os trabalhadores e a fome tornou-se uma das manifestações mais cruéis e evidentes do “Novo Brasil”. Quando aprovada pelo Congresso, a “terceirização irrestrita” permitiu que empresas terceirizassem inclusive suas atividades-fim. Pouco depois, em julho do mesmo ano, foi aprovada a reforma trabalhista, que introduziu mais de 200 modificações na legislação, sendo 130 só na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Nenhuma dessas alterações ampliou os direitos dos empregados em relação aos empregadores. Como resultado, os trabalhadores sem carteira assinada e “por conta própria”, que se tornaram maioria em 2017, foram os mais afetados pela redução de direitos.
Durante a pandemia causada pelo Coronavírus, período em que a fome se intensificou no país, enquanto o mundo político debatia sobre o auxílio emergencial, incluindo seu valor, formato, duração e continuidade, vários movimentos da sociedade civil e grupos religiosos se mobilizaram para prestar assistência aos necessitados. Lutamos por vacinas e por alimentos em nossos pratos, enquanto o medo do vírus e da morte iminente caminhavam conosco diariamente.
Exemplos dessas iniciativas não faltam: o projeto “Mãos Solidárias”, do MST – Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores Rurais Sem Terra – levou toneladas de alimentos para as famílias no período mais grave da pandemia. Alimentos estes produzidos pela agricultura familiar, pelas mãos de pequenas e pequenos lavradores, de maneira orgânica, sem agressão à Terra ou aos seres humanos com uso de agrotóxicos.
Outro exemplo, foi a campanha “Tem gente com fome”, encabeçada pelo Movimento Negro Unificado, que reuniu pessoas no país todo realizando lives e postagens na internet buscando arrecadar alimentos para distribuição aos principais afetados pela pandemia – pretos e pobres. Ainda, as campanhas realizadas pelo MTST – Movimento de Trabalhadores Sem Teto – igualmente foram sinais desta mobilização e organização popular.
Esta é a realidade que está posta diante de nós. A partir disto, tendo sensibilidade com o que acontece à nossa volta, podemos nos questionar: o que fazer? A Igreja Católica, em mais uma Campanha da Fraternidade, convoca fiéis a pensar sobre a fraternidade humana a partir do olhar do irmão que passa fome e nos convida para a transformação dessa realidade. O que essas e outras comunidades, religiosas ou não, podem fazer mais neste sentido? Já temos as experiências relatadas acima como sinais de que há um caminho possível para pôr fim ao cenário desolador da fome.
Urge cultivarmos a justiça social através da identificação e denúncia das estruturas da indústria da fome. No âmbito civil, é necessário que cultivemos os valores da organização popular e comunitária; da relação de afeto e respeito no cultivo e guarda da Terra; e da solidariedade como forma de mitigação dos impactos das mudanças climáticas na alimentação. No âmbito político, é imprescindível que haja pressão mediante os governantes para que as pautas da Reforma Agrária e das atividades agroflorestais sejam inseridas nas agendas como meios diretos de ampliação da resiliência da oferta alimentar.
Não podemos sossegar enquanto houver fome em nosso país. Que as lágrimas caídas dos rostos famintos tirem nosso sono e nos façam lutar por dignidade e comida, de qualidade, no prato de todos.
Esther Souza é pós-graduanda em Psicologia da Educação; graduada em História pela Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisadora da fome no Recife sob a ótica de Josué de Castro. Ativista antirracista e climática em busca de formas de adiar o fim do mundo.
Paulo Sampaio é bacharel em Direito pela Faculdade integrada do Sertão, educador popular, ativista ambiental, membro da equipe Fé no Clima do ISER (Instituto de Estudos da Religião)