Uma oportunidade de reaproximação
Na visita ao Brasil sobrará pauta e faltará tempo. Uma vez que se trata de uma reaproximação, os dois países darão prioridade a temas menos “espinhosos” e que possam gerar mais consenso. A aposta é que serão discutidos o crescimento global, o desenvolvimento de energias renováveis e a reconstrução do Haiti.Raphael Neves
Em seu discurso do Estado da União no início do ano, o presidente norte-americano Barack Obama anunciou que faria uma visita ao Brasil em março. Segundo ele, essa primeira visita à América do Sul servirá para “forjar novas alianças para o progresso nas Américas”. Foi um sinal claro de que os Estados Unidos pretendem, de alguma forma, dar atenção especial à região. A mudança de governo e os sinais de que a presidente Dilma Rousseff seria mais sensível a uma política internacional de direitos humanos permitem a Washington virar a página do acordo com o Irã. Ao mesmo tempo, a crise econômica diminuiu o discurso belicista dos norte-americanos que ocupava sua agenda desde o 11 de Setembro. Aos poucos, os interesses de ambos os países podem apontar para uma possível convergência.
Há certo tempo, como descreveu um artigo no jornal espanhol El País, Washington dorme enquanto a América Latina é a região que mais cresce no mundo, depois da Ásia.1 Não só o Brasil, mas países como Colômbia, Chile e Peru têm apresentado bom desempenho econômico. Além disso, a situação política do continente nem de longe lembra a instabilidade de décadas passadas. Mas por que a política externa norte-americana para a região parece tão incipiente? Em primeiro lugar, houve certo descompasso entre a fala do presidente Obama, de romper com o unilateralismo de seu antecessor, e a prática de sua administração. Ainda que represente uma alteração significativa, o lema da “mudança” que marcou sua campanha eleitoral certamente criou expectativas que acabaram não atendidas, o não fechamento de Guantánamo talvez a mais simbólica delas. Nesse sentido, boa parte da atenção de sua política externa ainda permaneceu voltada para questões de segurança ou, em se tratando de questões econômicas, para os atritos com a China no tocante à desvalorização cambial.
Ao que parece, porém, esse cenário vem se transformando, como reconhece o principal responsável pela política externa norte-americana para a América Latina em um balanço do ano de 2010: “Nossas políticas nas Américas refletem importantes mudanças conceituais, já a caminho, sobre a forma como interagimos com nossos vizinhos”,2 destaca Arturo Valenzuela, chileno de cidadania americana e professor da Universidade Georgetown, atual secretário de Estado adjunto para Assuntos do Hemisfério Ocidental. Sua indicação pela secretária de Estado, Hillary Clinton, foi vetada pelos republicanos e aprovada só após longa negociação, que incluiu compromisso do governo em reconhecer o resultado das eleições hondurenhas após o golpe que derrubou o presidente Manuel Zelaya. Valenzuela substituiu o atual embaixador americano no Brasil, Thomas Shannon, nessa função quase um ano após a posse de Obama. É claro que as incertezas quanto à sua confirmação pelo Senado também colaboraram para a letargia norte-americana na América Latina.
A viagem de Obama inclui, além do Brasil, Chile e El Salvador. A Colômbia, principal parceiro dos EUA na região em questões de segurança, fica de fora, mas deve receber o presidente em 2012, por ocasião da VI Cúpula das Américas, em Cartagena. Outro país que não entra na agenda da visita é a Argentina. A justificativa do governo americano é que Obama prefere não viajar para países durante processos eleitorais, e a Argentina terá eleições presidenciais em outubro. Porém, isso pode ser um indicativo de que os EUA querem manter diálogo privilegiado com Brasil e Chile. O fato é que na visita ao Brasil sobrará pauta e faltará tempo. Uma vez que se trata de uma reaproximação, os dois países darão prioridade a temas menos “espinhosos” e que possam gerar mais consenso. A aposta é que serão discutidos o crescimento global, o desenvolvimento de energias renováveis e a reconstrução do Haiti.
Crescimento global
No início de fevereiro, o secretário do Tesouro, Timothy Geithner, veio ao Brasil buscar apoio para pressionar os chineses na reunião do G 20, que aconteceu no final do mês. Essa conversa pode ser considerada uma “prévia” do que se espera que Obama diga por aqui.
A missão de Geithner foi buscar um alinhamento, qualquer que fosse, do Brasil com os EUA em relação à desvalorização do câmbio chinês. Os americanos alegam que os chineses desvalorizam artificialmente sua moeda – o renminbi – a fim de tornar suas exportações mais competitivas. O presidente Lula, ao contrário, sempre deixou claro que a culpa pela guerra cambial era de ambos, EUA e China. Na reunião do G 20 em Paris, o Brasil manteve essa postura ambígua de não apoiar claramente os Estados Unidos nem de se alinhar automaticamente à China. Mas ao menos um dos (poucos) frutos da reunião, fortemente rejeitado pela China, agradou tanto a brasileiros quanto a norte-americanos: a inclusão das taxas de câmbio entre os parâmetros macroeconômicos para medir a situação de desequilíbrio da economia global. Isso provavelmente não irá gerar resultados em curto ou médio prazo, mas a postura americana de buscar parceiros para solucionar a questão do câmbio com os chineses aponta sua opção pelo caminho multilateral, em vez da mera troca de acusações.
O encontro com Geithner serviu também para ensaiar o discurso que Obama terá de ouvir no Brasil. Na ocasião, a presidente Dilma Rousseff externalizou sua preocupação com a queda das exportações brasileiras paras os Estados Unidos. Para se ter uma ideia, as exportações para a China, em 2002, representavam 4,2% do total de nossas exportações, enquanto em relação aos EUA essa proporção era de 25,4% 3. Isso se inverteu, e a China passou a ser o maior destino de nossos produtos, representando, em 2010, 15,3% do destino do total das exportações, e os EUA, 9,6% 4.
Dentro do mercado norte-americano, perdemos espaço, sobretudo, para as manufaturas chinesas. Entre 2005 e 2006, dos setores que perderam o market sharecom a China destacam-se o de aeronaves, ferro fundido, equipamentos elétricos, automóveis e tratores, e o de calçados. Em contrapartida, alguns dos setores que conquistaram espaço no mercado norte-americano, em detrimento dos produtos chineses, foram o de etanol (sozinho representou mais de 40% dos ganhos), combustíveis minerais, papel e cartão. Nesse período, o total de perdas brasileiras para os chineses foi 11 vezes maior que os ganhos, gerando um saldo negativo de US$ 923 milhões.5
Precisamos melhorar nossas exportações para os EUA, aumentando não somente os números, mas também recuperando parte da fatia de mercado perdida. Uma tarefa difícil, sem dúvida. Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), em 2010 as exportações de bens básicos totalizaram US$ 90 bilhões, o que representa 44,6% de nossas exportações. A dependência que nossa balança comercial tem hoje de produtos primários preocupa o governo Dilma, e não é para menos. Em relação ao mercado chinês, os números também são alarmantes. Em 2010, o Brasil conseguiu um superávit com a China de US$ 5,2 bilhões. Mas, se analisarmos essa conta, veremos que ela só é positiva por causa da venda de commodities. Considerando apenas os produtos manufaturados, tivemos um déficit de US$ 23,5 bilhões, um saldo negativo 60% maior que o de 2009. Em 2003, esse déficit em manufaturados chegava apenas a US$ 600 milhões.6
Para azedar um pouco a conversa com Obama, a Casa Branca entregou recentemente à Organização Mundial do Comércio (OMC) uma carta pedindo esclarecimentos sobre a suspeita de subsídios ilegais que o Brasil concede em matéria de política industrial. Além de questionar algumas isenções de tributos e a Zona Franca de Manaus, os americanos incluíram os empréstimos do BNDES, que em geral têm juros mais baixos, em programas de incentivo. Se a conversa sobre a OMC engrenar, Dilma pode questionar Obama sobre o plano do deputado democrata, Ron Kind, de incluir uma emenda no orçamento para eliminar os pagamentos concedidos ao Brasil a título de compensação por subsídios americanos à produção de algodão. Apesar de já ter sido derrotada por 246 votos a 183, a proposta de emenda mostra que o “ânimo” dentro do Congresso americano é buscar austeridade, algo não muito diferente do que se vê por aqui.
Biocombustíveis
Desde o desastre ambiental no Golfo do México, o presidente Obama tem enfatizado a necessidade de ampliar o uso de fontes alternativas de energia. Isso sem dúvida faz parte de sua agenda política, e não poderia ficar de fora da visita ao país. Os EUA são hoje o maior produtor mundial de etanol, seguidos pelo Brasil, que é o maior exportador. A diferença é que os norte-americanos produzem seu combustível a partir do milho, e não da cana-de-açúcar, e isso tem gerado muitas críticas. Em primeiro lugar, por causa do aumento do preço do milho e o consequente impacto disso no preço de outros alimentos (o milho é usado também como ração animal). Em segundo lugar, porque a produção do milho destinada à alimentação vem sendo substituída pela produção para gerar combustível. Hoje, os estoques de milho são os menores em 15 anos. Em 2001, apenas 7% do milho produzido nos EUA era destinado à produção de etanol. Em 2010, esse número chegou a quase 40%.
Essa mudança é o resultado de uma forte política de incentivos. No final do ano passado, o Senado aprovou a manutenção de subsídios implantados ainda no governo George W. Bush. Isso significa, por galão, um crédito de US$ 0,45, além de um imposto de importação de US$ 0,54. Mais recentemente, a Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA) autorizou um aumento de 10% para 15% da proporção de etanol que pode ser adicionada à gasolina. O novo orçamento divulgado pelo governo Obama prevê cortes de subsídios, principalmente para a produção de energia “suja” derivada de combustíveis fósseis, como petróleo e carvão. Ao mesmo tempo, o governo procura assegurar o apoio a fontes limpas, como a eólica e a solar. A grande dificuldade, porém, é fazer esse pacote de subsídios passar pela Câmara, controlada agora pelos republicanos. No último dia 19, a Câmara derrubou, por 285 a 136, o aumento do percentual do etanol na gasolina e impediu os repasses do orçamento destinados à EPA para subsidiar o etanol. Mas o presidente Obama ainda pode vetar a decisão.
Confirmado esse cenário de redução dos subsídios, é possível que o governo americano, a fim de alcançar o objetivo de substituir os combustíveis fósseis por energia verde, abra mais o mercado interno para o etanol brasileiro. Some-se a isso o interesse em assinar acordos sobre energia e pesquisa de biocombustíveis.
Reconstrução do Haiti
O Haiti já causou alguns atritos entre os dois países. Logo após o terremoto que devastou o país, há um ano, o presidente haitiano passou o controle do aeroporto de Porto Príncipe para as mãos dos americanos, o que gerou mal-estar no Brasil e na França. Posteriormente chegou-se a um acordo segundo o qual caberiam ao Brasil as operações de segurança, e aos EUA a ajuda humanitária. De acordo com a última resolução do Conselho de Segurança, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) conta com 8.940 militares e 4.391 policiais, que são comandados pelo Brasil. De modo geral, a atuação brasileira na pacificação de áreas como Cité Soleil é vista como algo positivo e Obama deve acertar com Dilma os preparativos para a sucessão presidencial no Haiti, uma vez que o segundo turno das eleições acontece no dia 20 de março.
Tudo indica que Obama tem interesse em discutir outras experiências de pacificação. Já se sabe, por exemplo, que ele pretende visitar uma das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro. No início do ano, seu oponente republicano na corrida presidencial, senador John McCain, visitou a UPP do Santa Marta e disse ter ficado impressionado com os resultados. Quase uma década depois da invasão, a Casa Branca ainda busca uma forma de estabilizar o Afeganistão e sair do país. Os norte-americanos veem muitas semelhanças entre a ação da polícia carioca com as táticas de contrainsurgência dos generais no Iraque e no Afeganistão. Para eles, de nada adianta ocupar um território, é preciso também conquistar o apoio da população e montar uma estratégia de reconstrução em longo prazo, legitimada nesse apoio.
É importante que o Brasil insista em sua visão sobre segurança internacional, bem diferente do que tem sido a prática norte-americana. Ao assumir a presidência rotativa do Conselho de Segurança, em fevereiro, o ministro das relações exteriores, Antônio Patriota, deixou claro que para o Brasil as missões de paz do organismo devem integrar não só questões de segurança, mas também de desenvolvimento. Na ocasião, o ministro lembrou que é preciso dar um tratamento multidimensional abrangente que leve em conta as causas do conflito. E, no caso haitiano, não há como falar em consolidação da paz sem combate à pobreza.
Por fim, muito do que deve ficar de fora indica a velocidade gradual da reaproximação entre os dois países e a forma que a diplomacia americana vem encontrando para lidar com a região. Não se espera que Obama apresente apoio à candidatura do Brasil a um assento permanente no Conselho de Segurança, ao contrário do que fez em sua visita à Índia ano passado. Dilma deve evitar também falar sobre a compra dos caças pela força aérea, uma vez que o governo já anunciou cortes no orçamento e avalia a atual conjuntura como um momento que requer austeridade econômica. Talvez não seja também o momento mais adequado para voltar a falar no Irã.
É certo que os americanos buscam uma aproximação e entenderam o recado de que um alinhamento absoluto não é mais possível. Seja durante a Guerra Fria ou durante a “Guerra ao Terror”, Washington sempre buscou dar tudo aos que estavam ao seu lado e nada (na melhor das hipóteses) aos que contrariavam seus interesses. A crise econômica talvez tenha tornado os americanos ainda mais pragmáticos e aumentado sua percepção de que o Brasil, hoje, está em um patamar diferente de décadas atrás.
O Brasil, por sua vez, parece adotar, no governo Dilma, uma postura também mais pragmática, que se traduz em costurar alianças não prioritariamente no âmbito Sul-Sul, mas também com países desenvolvidos, quando e se for o caso de atender a nossos interesses. Aos poucos vamos aprendendo como atuar com maior autonomia no cenário internacional, com toda a responsabilidade que isso implica. Nesse sentido, a visita de Obama é um bom teste, para eles e para nós.
Raphael Neves é Bacharel em Direito e mestre em ciência política, ambos pela USP, é PhD candidate em ciência política da New School for Social Research, em Nova York. Foi bolsista Capes/Fulbright.