Uma política das águas para o século 21 passa pela reestatização
Graças à narrativa neoliberal, naturalizaram-se concepções estritamente econômicas sobre o meio ambiente e os recursos naturais essenciais. Com a água não foi diferente
A redução da disponibilidade de água irá intensificar ainda mais a disputa pela água por seus usuários, incluindo a agricultura, a manutenção de ecossistemas, assentamentos humanos, a indústria e a produção de energia. Isso afetará os recursos hídricos regionais, a segurança energética e alimentar, e potencialmente a segurança geopolítica, provocando migrações em várias escalas. Os potenciais impactos nas atividades econômicas e no mercado de trabalho são reais e possivelmente graves.
Muitos países em desenvolvimento estão localizados em pontos críticos de tensões relacionadas à água, particularmente na África, na Ásia, na América Latina e no Oriente Médio.
Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, 2016.
A política de redução das funções públicas do Estado, estabelecida no final dos anos 1980 pelo Consenso de Washington, acentuou desigualdades sociais, quebrou economias na América Latina e na Ásia e serviu para atrasar o desenvolvimento, devido às barreiras fiscais e ao protecionismo dos países ricos. Apesar de seu reconhecido fracasso, o programa criado pelo Banco Mundial para instalar e fortalecer políticas neoliberais continuou na agenda política de diversos países, até hoje, inclusive no Brasil.
Graças à narrativa neoliberal, naturalizaram-se concepções estritamente econômicas, utilitaristas e mercantis sobre o meio ambiente e os recursos naturais essenciais. Com a água não foi diferente. Emitido pelo Banco Mundial em 1993, o documento Integrated Water Resources Management estabeleceu que a água deve ser considerada um bem econômico, subordinado às regras do mercado. Essa concepção transforma cidadãos em simples consumidores, cujo acesso a água e a serviços de saneamento fica circunscrita à possibilidade de pagar o preço definido pelo mercado.
No contexto do aumento da temperatura global, além dos lugares que já sofriam com escassez de recursos hídricos, locais antes bem abastecidos começam a sofrer com a redução da água para consumo. A este cenário, somam-se a poluição e a contaminação dos corpos hídricos por falta de saneamento. A Organização Mundial da Saúde (OMS), estima que, até 2050, dois terços da população do planeta vão sofrer com escassez de água.
Portanto, além de essencial, a água é recurso estratégico para qualquer comunidade, cidade, estado ou país, sendo a garantia de seu controle pela gestão pública uma questão central. Alguns países já vivem conflitos entre comunidades tradicionais e grandes multinacionais pelo controle e uso de água doce. Em 2020, a Bolsa do Wall Street tornou a água, pela primeira vez na história, uma commodity, a ser negociada nos termos do mercado. A busca pelo domínio sobre o “mercado da água” não é apenas pelo seu uso como matéria-prima, mas sobretudo para explorar seu valor como um produto básico qualquer, a exemplo dos minérios.
O processo de privatização da água não se dá exclusivamente pelo fim da exploração do recurso pelos Estados e sua transferência para a iniciativa privada no meio urbano. O modelo agrícola das grandes monoculturas e o estímulo ao consumo de carne bovina têm contribuído enormemente para a redução e a contaminação de grandes volumes hídricos, além de motivar a expansão das lavouras e pastagens sobre áreas de preservação e de mananciais, com um rastro de destruição sem precedentes. O desmatamento recorde da Amazônia, além da destruição imediata da biodiversidade, afeta todo o sistema climático do continente e ameaça a continuidade da produção agrícola, devido ao desequilíbrio do regime de chuvas, que passa a se tornar excessivo ou insuficiente, por períodos cada vez maiores.
Água privatizada: um péssimo negócio
Um estudo do Centro de Estudos em Democracia e Sustentabilidade do Transnational Institute (TNI) mapeou serviços privatizados e depois devolvidos ao controle público no mundo todo entre 2000 e 2017. Eles encontraram a mesma realidade em 36 países: uma série de concessões não renovadas, contratos rompidos e, nesses casos, empresas compradas de volta. A maior parte dos casos de reestatização acontece em serviços essenciais como água, energia, transporte coletivo e coleta de lixo. 312 cidades reverteram o processo de venda dos serviços de distribuição de água tratada e esgoto. O motivo apontado pelo instituto holandês é o fato de empresas privadas priorizarem o lucro, gerando serviços caros e ruins.
Um dos casos mais emblemáticos de privatização da água, a Inglaterra teve seu serviço de saneamento entregue à iniciativa privada em 1989, pelo governo neoliberal da primeira-ministra Margaret Thatcher, quando a estrutura de tratamento da água estava defasada e sem investimentos há mais 10 anos. Passadas três décadas, a Water Services Regulation Authority (Ofwat) – instituição de controle e fiscalização do setor privatizado dos serviços de água e esgoto em todo o Reino Unido – alertou para o alto nível de poluição da água e a baixa qualidade no tratamento. Em resumo, a população lida com água poluída nas torneiras, inundação de esgoto nas casas e praias impróprias para banho, enquanto o lucro dos acionistas privados se mantém intacto e crescendo. No caso inglês, como ocorre na maioria dos casos de privatização, as promessas de entrega de bons serviços, geração de economia para o governo e mais investimentos jamais se concretizaram.
Com alta concentração de países menos desenvolvidos economicamente, o Hemisfério Sul é o preferido de programas conhecidos pelo eufemismo de ajuste estrutural, o que na prática significa operar a substituição das funções públicas do Estado e abrir mercado para a iniciativa privada. Talvez um efeito colateral desse modelo foi demonstrar que o neoliberalismo não prospera sem recursos públicos para vampirizar. Em todas as grandes crises financeiras mundiais dos últimos 30 anos – e podemos lembrar facilmente da mais recente, a pandemia – foi sempre o Estado que proporcionou o amparo e evitou o colapso.
O Brasil tem em seu território quase 14% de todo o volume de água doce do planeta, dividido em doze grandes bacias hidrográficas, quase todas localizadas na Mata Atlântica, junto com a maior área úmida continental do mundo no Pantanal mato-grossense e a mais extensa floresta alagada do mundo, a Amazônia. Ainda assim, o país lida com problemas hídricos. A soma de fatores como exploração desregrada, despreocupação com os mananciais, má distribuição, poluição e desmatamento sabota a disponibilidade hídrica e não garante água potável, tampouco o saneamento básico.
Fixado pela Lei nº 14.026/2020, o Marco Legal do Saneamento foi estabelecido para atrair capital privado para explorar o então aberto mercado do saneamento no Brasil. A justificativa é de que, atualmente, o setor público detém aproximadamente 94% das empresas de tratamento de água e esgoto no país e não dá conta. Também há uma estimativa de que seriam necessários cerca de R$ 500 bilhões para que se atingisse a universalização do sistema.
Entretanto, não nada garantindo que a transferência dos serviços para a iniciativa privada traga solução, principalmente para as comunidades periféricas e de menor renda. Se é bom negócio para o empreendedor privado, essas vantagens não se traduzem em benefícios diretos à população, que passa a pagar mais caro e receber tratamento diferenciado conforme sua localização na cidade. Para piorar, as chamadas agências de regulação têm se mostrado mecanismos ineficientes na hora de fiscalizar, sobretudo no que diz respeito à aplicação de multas por má-prestação dos serviços. As parcerias público-privadas (PPPs) têm repassado mais os riscos dos empreendimentos e das concessões do que as vantagens para a população. O grande problema é que o esse lucro – que é sempre garantido – pode representar a falta de acesso por um grande número de pessoas a um elemento essencial à sobrevivência.
Outra consequência da privatização dos serviços de água e esgoto são os problemas de saúde agravados pela falta de investimento e pelo preço da tarifa. Se a água tratada não chega, as pessoas vão em busca de qualquer água que eles puderem ter acesso. Isso acontece nos Campos Elíseos, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, onde a comunidade utiliza água de uma adutora construída para uso industrial, que não é tratada para o consumo humano. Quem vai arcar com os custos para tratar surtos de doenças infecciosas é o sistema de saúde pública, não é a empresa que comprou a concessão para distribuição de água tratada e não aportou o serviço.
Os dados parecem demonstrar, no entanto, uma reversão no quadro de privatização dos serviços essenciais, dada a péssima experiência com a iniciativa privada. Porém, bolsões anacrônicos ainda apostam em soluções dogmáticas para ocupar o lugar o estado, mesmo sem responder a altura.
Corsan: o caso do Rio Grande do Sul
Ainda que estudos demonstrem o fracasso absoluto da privatização dos serviços de distribuição de água tratada e esgoto, sobrevivem regiões orientadas pela lógica neoliberal ditada no final da década de 1980. É o caso do RS, onde essa agenda foi responsável por quadruplicar a dívida pública, além de reduzir drasticamente a presença do Estado no aporte de serviços e a infraestrutura estratégica para atração de investimentos privados. Mesmo com essa péssima experiência doméstica, sucessivos governos de direita têm concentrado mais esforços em negociar patrimônio público do que em desenvolver uma política de desenvolvimento capaz de tirar o Estado da depressão econômica.
Criada em 1965, pelo governado conservador de Ildo Meneghetti, a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) é uma sociedade de economia mista sob o controle estatal, que presta serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário em 317 municípios, atende cerca de 97% da população, fatura mais de R$ 3,3 bilhões por ano e possui 5.995 trabalhadores e trabalhadoras em seus quadros.
A companhia está na agenda de privatização há quase 30 anos, tendo efetivamente encaminhado o início do seu processo de venda de capital a partir de 2021, quando o governador Eduardo Leite (PSDB), eleito prometendo não vender a estatal, descumpriu sua própria palavra e realizou a primeira tentativa de alienar seu controle. Com maioria na Assembleia Legislativa, Leite garantiu a venda via Lei estadual 15.708/2021. Sem comprador para ações, o governador decidiu colocar 100% do capital da empresa à venda. O leilão vencido pelo consórcio de empresas que formam a Aegea – uma das maiores empresas de saneamento do segmento privado no país – adquiriu a Companhia em lote único em valores que somam R$ 4,1 bilhões. Desde o início, o próprio valor negociado foi alvo de questionamentos pelo Sindicato dos trabalhadores e trabalhadoras das Indústrias de Purificação e Distribuição de Água e Serviços de Esgoto do RS (Sindiágua). O leilão das ações foi contestado e o processo de alienação das ações do governo foi suspenso por decisão do Tribunal de Contas do Estado (TCE/RS). Segundo informações dos próprios trabalhadores da estatal, a Aegea já estava prestando serviços à Corsan e, portanto, teve acesso a informações privilegiadas que podem ter beneficiado o consórcio na operação de compra.
O processo de privatização continua cercado de incertezas e irregularidades. O Tribunal de Contas segue exigindo documentos que comprovem prejuízos aos cofres públicos e provas de danos aos 317 municípios que contrataram a Corsan, bem como aos usuários dos serviços. A representante do Tribunal determinou ainda, sob pena de instalação de um novo processo, que o Executivo gaúcho e a estatal “se abstenham de praticar atos de comunicação com a empresa adquirente que possam caracterizar antecipação da transferência do controle à iniciativa privada. Desde o início de 2023, os órgãos de fiscalização têm apontado problemas no negócio. O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4), exigiu, via liminar, a elaboração de um estudo sobre impacto socioeconômico, trabalhista, previdenciário e social, como premissa para a assinatura do contrato de privatização da estatal.
O Ministério Público de Contas (MPC) reconheceu a possibilidade de informação privilegiada para um único participante, caracterizando concorrência desleal. O alerta foi feito pelo próprio Sindiágua e pelo Sindicato dos Engenheiros do RS (Senge/RS), que apresentou um Relatório de Avaliação Econômico-Financeira onde demonstra, além da informação privilegiada, o subfaturamento da empresa para venda, onde “o valor econômico da Companhia atinge a cifra de R$ 7,26 bilhões em função do fluxo de caixa projetado para o futuro e trazido a valor presente”, descontado o fluxo de caixa. No parecer, o procurador-geral do MPC, Geraldo Da Camino, solicitou retirada dos sigilos do processo de privatização da estatal. Também houve uso indevido de documentos preliminares do TCE e do Tribunal de Justiça do RS para antecipar decisões que dariam continuidade da venda da Companhia, mesmo com as ações judiciais em curso. Deputados da oposição denunciaram que a Aegea foi autorizada pelo presidente da Corsan, Roberto Barbuti a atuar dentro da estatal como se já fosse a dona da Companhia, ignorando as liminares da Justiça e do TCE.
O pedido de demissão do presidente da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (AGERGS), sob alegação de desmonte da agência que controla a qualidade dos serviços privatizados no Estado, acrescentou mais um elemento que corrobora com o ambiente sombrio e nada transparente que cercou a venda da estatal.
Porto Alegre na mira da privatização da água
Se nas experiências de desestatização registradas até agora a iniciativa privada se mostrou adversa à transparência em suas operações, ao assumir a gestão, uma de suas primeiras medidas é a troca de servidores de carreira por trabalhadores terceirizados – em geral, menos qualificados. Na sequência, os investimentos previamente anunciados não são cumpridos e finalmente, o custo final ao usuário fica mais alto. Os serviços quando públicos, ao contrário, têm gestão social para garantir acesso universal, revertem o lucro em investimentos, assumem a responsabilidade diante das demandas e garantem tarifa módica.
É o caso do Departamento Municipal de Águas e Esgoto (DMAE), autarquia pública que há 61 anos leva água a todas as regiões da capital gaúcha. Porto Alegre trata 80% do esgoto graças à capacidade técnica e financeira do departamento. Só não avançou mais por decisão política do grupo que administra a cidade há 18 anos e concentra esforços exclusivamente em abrir mercado à iniciativa privada. Com uma política de bloqueio de investimentos, o DMAE, que já foi premiado internacionalmente por seu papel social e humanitário, perdeu 887 servidores nos últimos 12 anos, cujas funções foram substituídas por contratos de terceirização. A autonomia do órgão também foi abolida, o que deixou evidente a intenção de vender a estatal.
A disposição do prefeito Sebastião Melo (MDB) em abrir mão, por 30 anos, da coleta e tratamento de esgoto, distribuição de água e gestão comercial, mantendo apenas a coleta e o tratamento da água públicos, tem como argumento o Marco Legal do Saneamento. Na prática, era o elemento que faltava para autorizar o prefeito a entregar a gestão da água tratada e do saneamento em Porto Alegre.
Talvez a capital gaúcha seja, ironicamente, o último bastião das políticas neoliberais ortodoxas, que não deram certo em lugar nenhum. Um exemplo disso é que o DMAE, mesmo esfacelado e com os recursos para investimentos bloqueados ou desviados para outras funções, ainda é superavitário. Mesmo assim, sua venda é mantida.
Se a preocupação central do mundo hoje é o cuidado com o meio ambiente e os recursos naturais, não há espaço para impor a Porto Alegre ou ao Rio Grande do Sul tamanho retrocesso.
Sofia Cavedon é deputada estadual do PT e presidenta da Comissão de Educação, Cultura, Desporto e Tecnologia da Assembleia Legislativa/RS