Unificar as lutas pela democracia em defesa dos direitos sociais
Se o tecido cívico e a cultura política que sustentam a democracia quiserem sobreviver, a educação, mais uma vez, deverá ser prioridade, e necessariamente estar ligada às questões relacionadas à transformação social
A democracia sempre foi muito frágil no continente americano. Do Canadá, mais ao norte, até a Argentina, mais ao sul, nossos países sempre precisaram lutar ativamente para que a população pudesse participar dos processos decisórios que envolvem as disputas de poder por meio da política. Entretanto, nessas primeiras décadas do século XXI, o modo de governo com a participação da maioria passou rapidamente de um sistema imperfeito em processo de construção, para um regime ameaçado de colapso, baixo o discurso de que a organização dos Estados modernos teria fracassado. Com isso, as ameaças autoritárias já não são somente parte da história, e nem são mais um horizonte distante. O medo da implantação de governos em regime de ditadura é real e, cada vez, penetra mais profundamente no imaginário social. Isso acaba desorganizando as instituições democráticas, confundindo os poderes instituídos e colocando em pauta a possibilidade de um futuro desolador, assombrado pelos fantasmas de um passado venenoso.
Os partidos políticos de extrema direita se multiplicam rapidamente na região e assumem posturas deliberadamente autoritárias, muitos inclusive com características fascistas. Por exemplo, nos Estados Unidos, o Partido Republicano não disfarça mais o seu discurso racista, conclama seus eleitores para a subversão da justiça e chega a propor a supressão de direitos democráticos. Até fevereiro de 2021, já havia 253 projetos de lei conduzidos por políticos do Partido Republicano propondo restrições à participação democrática em 43 estados. No Brasil, o governo Bolsonaro tem convocado manifestações pela ditadura militar e, com discurso mentiroso, faz ameaças ao processo eleitoral previsto para 2022, provocando inclusive uma investigação oficial por parte do Tribunal Superior Eleitoral. Entretanto, o avanço do discurso autoritário em nosso continente não fica por aí. No Canadá, o governo da província de Ontário reduziu praticamente pela metade os representantes na câmara de vereadores da cidade de Toronto. No Peru, o presidente escolhido pela maioria, Pedro Castillo, professor de uma região rural do país, teve grandes dificuldades para ser proclamado presidente e, não fossem as caravanas populares vindas de diversas regiões do interior do país lutarem em defesa do seu representante legítimo, provavelmente a direita fujimorista, herdeira da ditadura, teria conseguido concluir o seu golpe. Já na Bolívia, o presidente Evo Morales, reeleito com a maioria dos votos, não conseguiu tomar posse pois os grupos de direita, numa demonstração explícita de racismo contra os povos indígenas, tomaram o poder à força e colocaram em seu lugar uma senadora representante das elites que se autoproclamou presidente. Mais uma vez, a tentativa de golpe fracassou e a luta empreendida pelos povos indígenas exigiu a convocação de novas eleições, que levaram o partido popular de volta à presidência. Na Colômbia, os conflitos estão mais acirrados e as manifestações populares estão sendo reprimidas de forma extremamente violenta, centenas de pessoas já morreram ou ficaram gravemente feridas. Na Venezuela, a ditadura populista de Maduro conseguiu resistir à autoproclamação de um presidente não eleito democraticamente que é apoiado pelas forças do mercado internacional. No Chile, a população foi às ruas e não saiu das praças e espaços públicos enquanto não conseguiu garantir a convocação de uma nova Assembleia Constituinte para substituir a legislação da época da ditadura e, recentemente, uma liderança, mulher, indígena, foi eleita presidente para conduzir o processo de elaboração de uma nova Constituição. Infelizmente, no Paraguai, na Nicarágua, no Haiti e no Brasil, os golpes de Estado foram consumados e a democracia interrompida. Em Cuba, na Argentina e no México, os governos populares continuam no poder, apesar da grande instabilidade social, econômica e política que atinge esses países.
Todos esses exemplos nos permitem afirmar que, realmente, há sim uma apropriação contemporânea de antigas ferramentas autoritárias e, até mesmo fascistas. Tais práticas se tornam ainda mais virulentas pela destruição do discurso sobre o bem-estar comum e sobre as funções sociais do setor público. Com isso, tem sido colocado em prática um modelo incapaz de promover a alfabetização cívica, que se utiliza de diversos dispositivos de censura que limitam a capacidade de crítica sobre as profundas mudanças estruturais, e também subjetivas, que tem sido produzidas pela desregulamentação induzida pelo neoliberalismo. Como consequência, prevalece hegemônico o discurso do mercado, que prega a privatização dos serviços públicos, inclusive daqueles diretamente vinculados aos direitos garantidos pela Constituição Federal como Saúde, Educação e Assistência Social (inclusive a Previdência). A pauta neoliberal de desmonte do Estado de bem-estar rompe assim o contrato social, causando rápida deterioração dos serviços públicos e um forte aumento das desigualdades sociais.
O neoliberalismo, em seu modo contemporâneo, tem assumido valores cada vez mais autoritários e imposto sua visão de mundo por meio de diversas formas de violência, desde o encarceramento em massa da população que vive em situação de pobreza e exclusão social, até aquilo que Alberto Toscano1 conceitua como um racismo característico do capitalismo colonial, baseado na expropriação e na escravidão. Todas essas formas de violência, antes associadas a grupos extremistas marginais, encontraram um lar em partidos políticos de direita e extrema-direita que agora endossam as condições políticas, ideológicas e sociais que deram origem a organizações que defendem uma supremacia masculina, branca e extremamente tóxica. Geralmente são grupos armados, agressivos, ignorantes e replicadores do pensamento neofascista. Todas essas violências atravessam agora a sociedade americana como um fio eletrizado que descarrega energia de alta tensão e provoca choques que agridem a vida social.
Todavia é importante reconhecer que essa política neofascista surge de uma forma de capitalismo, neoliberal, que faz mais do que atuar nos setores econômicos com objetivo de promover a privatização, a desregulamentação e a mercantilização financeira. Essa forma contemporânea do capitalismo se expande para outras dimensões da sociedade e ultrapassa a fronteira econômica para também atuar nas esferas da cultura, da política e da vida cotidiana, buscando moldar novas identidades, valores e subjetividades. Por isso mesmo, um enorme desafio que se coloca para os setores mais progressistas é combater as condições subjacentes que influenciam na consciência coletiva para moldar essa subjetividade neoliberal que incorporou elementos da política fascista. Essa tarefa é crucial para repensar e reivindicar as definições de poder, educação e política que são centrais para a criação de uma “nova sensibilidade”, capaz de envolver o imaginário social para que possa voltar a abraçar e defender os valores democráticos.
Tal desafio significa ser capaz de interrogar o conjunto de instituições, significados, ideologias e práticas pedagógicas que sustentam essa cultura neoliberal, constituída por uma mistura de diversas formas de fundamentalismo que se cruzam. É exatamente nesse emaranhado de fundamentalismos que surge essa formação política que tem sido denominada de fascismo neoliberal. Analisando os trabalhos de Tony Judt2 e Cornel West3 podemos considerar que existem pelo menos três formas de fundamentalismo que moldam o fascismo neoliberal. Elas buscam não só normalizar o bizarro e o impensável, como também criar condições morais para legitimar o compromisso com essa forma violenta de vida. É assim que muitos grupos sociais acabam se tornando cúmplices da feiura dessas formações culturais, imersas em políticas autoritárias que adotam como princípio a descartabilidade de alguns seres humanos. Como veremos a seguir, esses três tipos de fundamentalismo a que estamos nos referindo são: i) fundamentalismo do livre mercado; ii) fundamentalismo religioso; iii) fundamentalismo da ignorância fabricada.
A primeira dessas culturas formativas é o fundamentalismo do livre mercado, que tem a função pedagógica de redefinir a concepção de cidadania. Substitui-se a ideia de cidadania como direito político por um ethos de consumismo, transformando todas as relações sociais em mercadoria, comercializando os bens públicos, como por exemplo as escolas, e separando a atividade econômica de sua real função social. Além disso, os fundamentalistas do livre mercado promovem um ataque ao contrato social baseado no Estado de bem-estar e limitam o escopo da ação política coletiva à uma lógica de meritocracia individual. Sob tais circunstâncias, as pessoas passam sua vida cotidiana numa luta diária por necessidades básicas que, para a grande maioria, não garante nem mesmo o mínimo para uma sobrevivência digna. Desse modo, problemas sociais como a fome, o desemprego e a miséria passam a ser responsabilidade única dos indivíduos. Mas é claro que a verdadeira questão é política, resultado de uma aversão em redistribuir a riqueza e reorganizar as dinâmicas de poder para enfrentar as desigualdades.
Um segundo aspecto que podemos encontrar, enraizado na cultura do fascismo neoliberal, é o fundamentalismo religioso, liderado principalmente por grupos evangélicos ultraconservadores. Essa segunda formação cultural funciona como uma força pedagógica tóxica, muitas vezes descrita como um novo tipo de guerra santa, que turbinou o apoio para a eleição de Donald Trump e Jair Bolsonaro. Composta em grande parte por grupos evangélicos mais radicais, essa forma religiosa de fundamentalismo tornou-se um pilar sólido para as forças antidemocráticas, reforçando uma posição ideológica alinhada aos discursos autoritários, assumindo valores morais conservadores e adotando uma perspectiva de submissão ao poder instituído. No Brasil, a força desse grupo é tão importante para a sustentação do atual governo que foi inclusive criado um Ministério das Famílias, entregue a uma líder da bancada religiosa do Congresso Nacional, a polêmica Damares Alves, que nada mais fez do que fortalecer o estereótipo desse grupo. Entretanto, não se trata apenas de uma caricatura, o que acontece não é não só uma transgressão da linha que separa religião e Estado, mas também a defesa de um modelo teocrático de política, o que Chris Hedges4 classificou como uma forma contemporânea de fascismo. Os elementos mais extremos do fundamentalismo evangélico abraçam uma ideologia militar que é central para a difusão dos grupos radicais que se veem como participantes de um evento sagrado de guerra. Nessa perspectiva, a aliança da Pátria com Deus seria ameaçada pelas transformações culturais da sociedade, desde a crítica à teoria do criacionismo nas aulas de ciências, passando pela discussão sobre o direito das mulheres à legalização do aborto, até o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Esse movimento religioso extremista funciona como uma força pedagógica e política que legitima a intolerância, difunde o negacionismo científico e promove um discurso moralista cuja visão de mundo despreza o pensamento crítico e a educação progressista.
A terceira formação cultural de caráter fundamentalista que podemos identificar é a produção de uma ignorância fabricada com a propagação de um analfabetismo cultural militarizado que funciona por meio de vários registros hierárquicos. Esse maquinário para fabricação da ignorância atua esvaziando a linguagem do seu significado com o objetivo de eliminar padrões socialmente pactuados para se distinguir o certo do errado. Além disso, substitui-se a memória histórica pela amnésia histórica e transforma o compromisso social em irresponsabilidade ética. Como Karen Greenberg5 deixa claro, a supressão da história, da memória e da função simbólica da linguagem abre a porta para o fascismo fazendo com que grupos dissidentes sejam tratados como desconhecidos, desumanos e, portanto, indesejáveis e descartáveis. Debaixo do regime fascista neoliberal, criou-se a cultura da mentira que normalizou um mundo onde a verdade não foi apenas destruída, mas também perdeu a sua legitimidade. Como argumentam Zygmunt Bauman e Leonidas Donskis,6 “numa época em que a verdade é transformada em notícias falsas, tudo o que realmente importa é negado, e tudo o que incorpora a mentira e o mal é reinventado”. Cada vez mais, o conhecimento foi esvaziado de seus referentes críticos e éticos, sendo submetido ao vocabulário dual do mercado e da guerra. Esta é uma linguagem que reduz as pessoas a mercadorias e que alimenta a sociedade do espetáculo por meio de uma ignorância fabricada que perpetua a exclusão e a violência. Também precisamos considerar que, em uma cultura digital dominada por corporações com interesses em obter lucro, o debate político e as convicções tornaram-se um dilema ético. Somos reféns de uma cultura de imediatismo impulsionada pelas redes sociais. O conhecimento agora começa pelo Google, circula pelos grupos de WhatsApp ou por meio de textos curtos no Twitter, avança em postagens no Facebook e se consolida em intermináveis fotografias no Instagram e vídeos no YouTube. Com o domínio do fluxo de dados por parte das corporações, os aparatos das redes sociais muitas vezes deslocam o conhecimento de qualquer contexto substantivo e aceleram o tempo de contato com as informações em um ritmo que impede tanto a contemplação como a experiência. Desse modo, ideias, valores e sentimentos que possibilitam um senso de agência crítica e cívica, capaz de promover a imaginação e criar novas formas de relação social, perdem lugar em uma sociedade onde a razão, a verdade e a ciência têm seu valor original esvaziado.
Por fim, precisamos considerar que as bases para uma formação cultural baseada naqueles fundamentalismos são consolidadas no ataque à escola pública, na censura aos professores e na criminalização da atividade dos sindicatos e do movimento estudantil. Com a educação reduzida a uma visão funcional de formação da mão de obra para o mercado de trabalho, as escolas acabam se tornando centros para adestramento de habilidades e testagem das capacidades dos estudantes. Transformada em uma usina de eficiência e produtividade, a escola, como esfera pública e democrática, é destruída, perpetuando assim uma cultura caracterizada pelos fundamentalismos. À medida que a formação política fica inviabilizada, ocorrem rupturas nos valores compartilhados e se normaliza o abismo da perversidade, da moral depravada e do idiotismo cívico. Para resistir ao fascismo neoliberal, devemos compreender a educação como um elemento central para a política. Precisamos portanto, levantar questões não apenas sobre o conteúdo dos currículos que os sujeitos aprendem em uma determinada sociedade, mas também o que eles precisam desaprender e quais instituições oferecem as condições para isso. Contra a pedagogia fundamentalista, há a necessidade de uma prática pedagógica crítica que valorize uma cultura de questionamento, que promova o exercício concreto da agência crítica como uma condição da vida pública em favor da construção de uma esfera pública democrática e global. Essa pedagogia, crítica, deve rejeitar a visão distópica, anti-intelectual e racista que é difundida pelo autoritarismo com seu desprezo grotesco pela democracia.
A crise que enfrentamos, portanto, também é da imaginação pública e cívica, e esta é uma crise que, em seu cerne, é educacional. Para superá-la, será necessário preencher a lacuna que se formou entre as instituições educacionais e culturais com o público. Para criar novas ideias, mudar narrativas e fortalecer as relações pedagógicas precisaremos reconectar a formação da consciência individual às necessidades do coletivo. Se o tecido cívico e a cultura política que sustentam a democracia quiserem sobreviver, a educação, mais uma vez, deverá ser prioridade, e necessariamente estar ligada às questões relacionadas à transformação social, como a luta contra as desigualdades, pelos direitos humanos, pela possibilidade de se fazer uma nova história e pela construção coletiva do bem público por meio da ação política. A educação, nesse sentido, se liberta das obsessões tecnocráticas e gerencialistas que colocam ênfase na padronização, no treinamento e memorização de conteúdos. Ao contrário, para tornar o ambiente político ainda mais pedagógico, a educação deve ser firme em sua visão de futuro e abraçar a esperança contra a indiferença. Mas para conseguir fazer isso, há uma necessidade urgente de que não só os educadores, mas todos os trabalhadores, também da saúde, e da assistência social, além de todos os demais setores que influenciam na construção de práticas e políticas culturais sejam capazes de unificar a luta em torno de uma proposta que possa fornecer uma nova linguagem, de crítica e também de esperança, como uma condição para repensar as possibilidades do futuro e a sobrevivência da própria democracia. Contra a ditadura da ignorância e a destruição da imaginação, será necessário criar uma política de formação que impeça que as noções de justiça, liberdade e igualdade social morram em nós e passar a imaginar o inimaginável. Qualquer luta contra a ditadura terá que tratar a educação de forma séria, num esforço inspirado em Paulo Freire que seja capaz de renovar a esperança, enfrentar a atual crise de valores e elevar o nível de consciência de nossa sociedade. Para isso, urge reunir os diversos movimentos progressistas em torno de uma agenda comum capaz de formar sujeitos criticamente engajados e dispostos a reconstruir as bases de uma sociedade verdadeiramente democrática.
1 TOSCANO, Alberto. “The Long shadow of racial fascism”. Boston Review, 2020.
2 JUDT, Tony. “The new world order”. The New York review of books 11, no. 12, p: 14-18, 2005.
3 WEST, Cornel. Democracy matters: Winning the fight against imperialism. Penguin Group USA, 2005.
4 HEDGES, Chris. American fascists: The Christian right and the war on America. Simon and Schuster, 2008.
5 GREENBERG, Karen J. Subtle Tools: The Dismantling of American Democracy from the War on Terror to Donald Trump. Princeton University Press, 2021.
6 BAUMAN, Zygmunt; DONSKIS, Leonidas. Mal líquido: vivendo num mundo sem alternativas. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2019.
Henry A. Giroux é doutor em História pela Carnegie-Mellon University e professor titular da Cátedra Paulo Freire de Pedagogia Crítica na McMaster University, Canadá.
Gustavo O. Figueiredo é doutor em Psicologia pela Universitat Autònoma de Barcelona, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador visitante na McMaster University.