Por que a vida sexual dos Bolsonaro interessa tanto?
Viralizou em 9 de outubro uma entrevista na qual Jair Renan é confrontado com supostas provas de que teria um relacionamento homossexual secreto. Isso foi suficiente para que a internet passasse a especular abertamente sobre uma homossexualidade reprimida
Em 2002, durante uma entrevista para seu documentário biográfico, o filósofo francês Jacques Derrida é atravessado pela diretora Amy Ziering com uma pergunta acerca do que mais gostaria de ver em um filme sobre filósofos como Hegel, Kant ou Heidegger. A isso ele responde: “suas vidas sexuais”. Preocupado com um certo silêncio sobre questões referentes ao sexual, Derrida se volta para tal dimensão subjetiva da vida com a intenção de desafiar a lógica tradicional da construção do pensamento filosófico. A exposição da vida sexual e amorosa de uma pessoa, como nos evidencia Derrida, carrega consigo uma grande força; ela expõe um traço da vida que, apesar de geralmente oculto e privado, carrega profundo significado. Se tivesse conhecido a família Bolsonaro, todavia, talvez o filósofo francês teria optado por uma manutenção desse tipo de silêncio.
Faço esse chiste pois é fato que, desde a vitória presidencial nas eleições de 2018, a sexualidade dos Bolsonaro se tornou tema frequente de debate nas redes sociais. É claro, o frisson não parte apenas do público, já faz algumas décadas que o próprio Bolsonaro vem desavergonhadamente falando sobre sexo. De uma auto nomeação em rede nacional como “imbrochável”, passando por declarações de que fazia uso de dinheiro público para “comer putas”, não podemos nos esquecer das inúmeras piadas sobre atos sexuais que envolveram não só a esposa Michelle, como até mesmo o ex-juiz e atual senador Sergio Moro. Bolsonaro parece não ter pretensões de qualquer silêncio sobre sua vida sexual. E o mesmo não poderia ser diferente com seus filhos. Ou poderia?

Bom, no que diz respeito aos filhos, há sim uma certa diferença. No debate público e na mídia vem circulando já há algum tempo um tipo muito específico e popular de fofoca sexual. Por motivos óbvios esse tipo não é propagado pela própria família Bolsonaro. Vez e outra surgem repetidos rumores de que um dos filhos de Bolsonaro é gay. Ou melhor, de que um dos Bolsonaro é um gay não assumido, reprimido, no armário e que vive uma vida depravada às escondidas da família e do público. Se durante o mandato presidencial de Jair, o filho Carlos Bolsonaro foi o alvo principal das acusações de homossexualidade reprimida (especulava-se sobre amizade de Carlos com Léo Índio), após o fim do mandato e a vitória de Lula a mira se voltou para Jair Renan, o filho homem mais jovem de Bolsonaro.
Viralizou em 9 de outubro uma entrevista publicada no Youtube na qual o repórter Leo Dias confronta Jair Renan com supostas provas de que o mesmo teria um relacionamento homossexual secreto com um antigo amigo e assessor. A evidência seria um print, “lavrado em cartório”, contendo uma mensagem de WhatsApp na qual o filho de Bolsonaro se declara de forma amorosa e sexual para o outro homem. Pois bem, isso foi suficiente para que a internet passasse a especular abertamente sobre uma homossexualidade reprimida.
Na verdade, sejamos francos, não foi bem uma especulação, foi mais uma espécie de comprovação. O print, imbuído do selo de autenticidade do cartório, operou como uma prova cabal sobre a existência de um desejo homossexual reprimido em Jair Renan. A partir disso foi-se montando um banquete de delírio social cujo prato principal era a saborosa fantasia de um gay entre os Bolsonaro. Delírio, pois, é importante lembrar que, mesmo após ser pessoalmente confrontado, Jair Renan Bolsonaro nunca fez qualquer aceno na direção de confirmar um desejo ou relação homossexual. E sabor pois, é de extrema conveniência política que exista um gay não assumido dentro da família Bolsonaro. Quer dizer, o filho reprimido, envergonhado, preso no armário e relegado a viver sua sexualidade da maneira mais degradante e humilhante possível representaria o desvelamento de um enorme caroço de hipocrisia no seio de uma das famílias mais homofóbicas do Brasil. Nessa mistura de tragédia e comédia, com pitadas generosas de sadismo, forma-se um grande espetáculo político.
Contudo, vejam bem, por mais divertido que seja gozar desse sonho pueril, é por meio dele que se reifica uma das teses mais ignorantes a cerca da homossexualidade, isto é, a ideia de que por trás do mais violento dos homofóbicos estaria sempre o mais reprimido dos homossexuais. Constantemente mobilizada e reforçada por atores localizados no campo da esquerda, o raciocínio dessa teoria funciona da seguinte maneira: qualquer homem que demonstre comportamentos exagerados e abertamente homofóbicos, o faz porque no fundo possui desejos homossexuais reprimidos. Esse pensamento enclausura e restringe a homofobia dentro da própria homossexualidade. Explico melhor. Trata-se de um círculo fechado no qual recria-se, inscrevendo em um segundo nível, a antiga e conhecida paranoia homossexual, isto é, o medo de ser acusado de homossexualidade. Em sua versão “politicamente correta” e 2.0 acusa-se um homem não de ser abertamente homossexual, mas de sê-lo ser de forma reprimida, inconsciente, recalcada etc. Ou seja, mantêm-se presente a velha acusação de homossexualidade.
Nesse sentido, o caso de Jair Renan nos oferece uma oportunidade única de cair na real. Conjecturar se o filho de Bolsonaro é ou não é homossexual ou heterossexual é apenas uma tentativa tosca de escapar à realidade de que a sexualidade, independente do sexo anatômico de seu objeto de escolha, é atravessada, não só, mas também, por uma série de afetos imorais. Não há homofóbico gay o suficiente, ou se quiserem o inverso, não há homossexual orgulhoso o suficiente para nos salvar do abjeto da sexualidade humana, ele sempre estará presente, seja na homossexualidade seja na heterossexualidade. Relegar o abjeto e o imoral do sexual para o campo da extrema direita é um tiro no próprio pé.
Não estou dizendo que não podemos rir da situação, não é o caso de negar a tragicomédia da coisa toda, mas é preciso ser capaz de desfrutá-la sem investi-la de moralismo. Se me permitem ir mais longe, esse é um problema que surgiu, em grande parte, a partir da mobilização da sexualidade como uma identidade política fixa e estável. A ideia do orgulho gay, apesar de ter cumprido e ainda cumprir importantíssimo papel político, quando tomada de forma acrítica e principalmente quando investida de demasiada identificação, acaba por produzir um perigoso moralismo, a saber a ideia de que existem bons gays e maus gays. Os assumidos e orgulhosos são bons e os não assumidos ou menos orgulhosos são os maus. É óbvio que a homofobia não é, de forma alguma, um comportamento louvável, moralmente correto ou que deva ser incentivado, definitivamente não é sobre isso. Trata-se apenas de reivindicar o cultivo de um distanciamento irônico e subjetivo da própria identidade gay, inclusive para que ela possa ser desfrutada em seu aspecto mais erótico: o inútil.
Punir e humilhar publicamente o gay que não corresponde às expectativas e imperativos contemporâneos com relação ao gay pride é uma atitude correta apenas para quem a sexualidade é tida como algo coerente, estável, limpo, organizado e útil. Abrir mão de um investimento demasiado sério na identidade sexual é também romper com os pressupostos morais sobre os quais a conservadora fantasia de que Jair Renan seria um homossexual homofóbico e reprimido se sustenta. Nesse sentido, voltamos à pergunta que dá título a este texto: por que tanto interesse na vida sexual dos Bolsonaro? Mais especificamente, porque tanto interesse na vida homossexual dos Bolsonaro? Respondo, grande parte desse fascínio vem justamente do wishful thinking de que, se de fato transam, os Bolsonaro só podem fazê-lo de forma marcadamente hipócrita, imoral, abjeta e humilhante. Essa cegueira voluntária que insiste em moralizar o sexo não é só um alimento rico para o ressentimento, como também é de profundo mau gosto. Imaginar-se como detentor de uma superioridade moral sexual é a coisa menos sexy do mundo. Se a esquerda deseja voltar a ser sexy ela deveria abrir mão desse tipo de moralismo, voltando a reinvindicar para si o inútil e o imoral do sexual.
Renato Duarte Caetano é cientista político e doutorando no Departamento de Ciência Política da UFMG. Atualmente atua como pesquisador visitante no Center for Latin American and Caribbean Studies da University of California Irvine, com apoio da Fulbright. É pesquisador do MARGEM/UFMG.
A propósito desta bela matéria sugerimos: ” https://saudepublicada.wordpress.com/2017/02/07/a-verdadeira-homofobia-nao-e-o-odio-aos-homossexuais/ “. Tema incluído no “Projeto Discriminação da Associação de Psiquiatria do RGS – APRS”