A agenda feminista diplomática entre a guerra e as missões de paz
O Itamaraty registra somente 22,6%3 do quadro feminino, tendo suas atuações caracterizadas por relatos de discriminação e dificuldade de avançar na carreira, que denota baixa taxa de ocupação dos postos de chefia na hierarquia do Ministério das Relações Exteriores. Confira mais um artigo do especial Feminismos transnacionais
Após o centenário da admissão da primeira diplomata brasileira no Itamaraty 1 nos encontramos num cenário de tensão premente ao que se refere à entrada de uma agenda feminista, com equiparação e igualdade de gênero, na carreira diplomática. Ainda que tenhamos ganhos históricos no que se refere à ocupação e representatividade feminina nos espaços de poder e negociação entre os Estados, avanços consideráveis são necessários. É bastante incipiente a incorporação do termo feminismo a uma agenda internacional, para que seja base e articulação em transações políticas transnacionais e de conflitos de interesses entre Estados.
A despeito de haver, paulatinamente, uma abertura ao aceite do uso da expressão “igualdade de gênero”, o termo feminismo, em seu vocábulo, não coincide com um percurso histórico formatado pelas relações exteriores. Leva-se em conta, nesse contexto, a tradição masculina das carreiras diplomáticas, como a dos militares em missão de paz. Em seu livro sobre a presença de mulheres militares nas missões de paz e na carreira diplomática, a socióloga Suzeley Kalil Mathias2 nos aponta as dificuldades e resistências das Forças Armadas em levar adiante o projeto de igualdade de gênero nos respectivos contextos nacionais. Trazer para um debate civil e público a questão da paridade de gênero se configura ainda como um “não assunto” nesses meios, sobretudo os que se referem à defesa.
Alguns textos dessa edição trazem, muito bem, a discussão sobre a complexidade inerente à presença da mulher num espaço de guerra. Questões essas que, muitas vezes, não são alcançadas pela lente do feminismo liberal em sua crítica ao militarismo feminino. Contudo, eventos históricos, espaços e trajetórias culturais, territórios políticos devem ser levados em conta na construção dessa crítica. Ao partir dessa perspectiva, fazem parte desse campo de debate: as representações sobre a guerra, o símbolo e presença feminina nas bases do conflito, as ressignificações de seus corpos e as modulações políticas nesse imbricamento. Se, nos textos anteriores, trouxemos o prisma e a contingência da mulher que está no front, aqui será expressa a necessidade delas também nos espaços políticos estratégicos que, além da participação política internacional, também ocorre pela via dos acordos diplomáticos nas missões de paz. Missões essas ainda perpetuadas pela presença masculina que se sustenta por um apelo edênico moral e um corolário cultural de que às mulheres competem assuntos de paz e não de guerra.
Destaco, ainda, que além dessa brecha encontrada no âmbito da defesa, diplomatas brasileiras tem que conviver com um percentual baixo de atuação de mulheres na diplomacia. O Itamaraty registra somente 22,6%3 do quadro feminino, tendo suas atuações caracterizadas por relatos de discriminação e dificuldade de avançar na carreira, que denota baixa taxa de ocupação dos postos de chefia na hierarquia do Ministério das Relações Exteriores.
O fato é que o processo de admissão da mulher na diplomacia brasileira é uma conquista atrelada aos movimentos feministas. O cenário atual é de uma persistente sub-representação num momento em que não existem empecilhos legais à entrada e atuação em suas carreiras. Diplomatas brasileiras vivenciam as objeções que encontram em suas trajetórias profissionais por serem mulheres em espaços de poder de acordos e negociações internacionais. Para isso, leva-se em conta, nesse contexto, que somente após a vigência da Constituição de 1988, as mulheres diplomatas passaram a desempenhar suas atividades sob a égide da igualdade jurídica entre os sexos, embora, na prática, a desejada paridade ainda não tenha sido alcançada.
Parto da premissa de que foram as lutas feministas que possibilitaram (na esfera coletiva) e as encorajaram (na esfera individual) a estarem em cargos de poder e negociação, ainda que essas, muitas vezes, não se auto intitulem feministas. Tampouco nomeiem sua pauta de “agenda feminista” ao lutar pela igualdade de gênero e oportunização feminina nas já engessadas verticalizações hierárquicas, ainda dotadas do ethos da tradição masculina.
Feminismos, gênero e agenda internacional
As assimetrias de cunhos teórico, prático, funcional e técnico não se encerram somente num aumento quantitativo e numa participação qualitativa dessas mulheres na carreira diplomática. Embora a situação formal e legal seja assegurada às mulheres, há que se compreender essa como uma incorporação da agenda feminista entre os Estados no que se refere às suas concepções e planos de ação. Se a pauta feminista não for incorporada aos discursos e práticas nas missões de paz e relações internacionais, o acesso comporá uma engrenagem formal de entrada com a manutenção dos mesmos sistemas de privilégios e ascensão masculina.
Descrevo esse cenário tendo em vista que ferramentas estão sendo criadas para coordenação de políticas. Destaco algumas como ONU Mulheres; o Comitê Gestor de Gênero e Raça, criado em 2014, no Ministério das Relações Exteriores; e inciativas internacionais como da Organização dos Estados Americanos (OEA), que recomenda a ampliação de mulheres nos espaços de poder e decisão. A criação, num âmbito internacional da ONU Mulheres, em 2010, bem como o fortalecimento da Comissão Interamericana de Mulheres (CIM) são alguns exemplos de estratégias e ferramentas para a promoção de direitos das mulheres.
Além disso, a ministra das Relações Exteriores sueca, Margot Wallstrom reafirma regularmente a assertiva de que “os direitos das mulheres são direitos humanos” para que seu discurso não seja dotado de silenciamentos e esvaziamento de transformações. São os direitos humanos e das mulheres que agem para que alcancemos emancipação financeira, luta contra as agressões sexuais, influência nos processos de paz, melhoria na participação política.
Tirar das margens políticas e deixar de tratar a questão da igualdade de gênero e incorporação de uma agenda feminista como uma aporia entre os Estados são formas de encaminhamento dessa temática para a centralidade de operações estatais e governamentais. Deveria ser prioritária num sentido de direitos, já que a diplomacia feminista visa promover a igualdade de gênero e garantir a todas as mulheres seus direitos fundamentais. Nesse sentido, cabe pensarmos o lugar dos feminismos nesses alcances e ganhos e como a carreira diplomática (que une interesses de Estados, discussões sobre segurança, defesa e soberania) continua forte e de pronta relevância como guia para desenvolvimento de outras teorias feministas e estudos de gênero.
Mulheres de paz, homens de guerra?
O argumento da ascensão feminina na carreira diplomática acerca da “dificuldade de se trabalhar em postos de alto risco” continua sendo reiterado (e reificado) atualmente, não se restringindo a uma época e contexto específico de tentativa de encapsulamento das teorias feministas e dos estudos de gênero. Os dados da atuação de mulheres em altos cargos desmentem essa retórica que pretende ser contrastiva entre homens e mulheres ao formular, salientar e reiterar ao longo dos anos o argumento do antagonismo entre “risco e mulheres”. Vistas hoje em sua expansão, esse tema continua a ser negligenciado no que se relaciona aos postos de alto risco.
Mulheres militares nas missões de paz e nas carreiras diplomáticas continuam a ser invisibilizadas devido a seu histórico apagamento na relação entre o feminino e a guerra como instituição e à política exterior. Como apontou a pesquisa da cientista política Loretia Tellería Escobar4, os países andinos contribuem com 1% do total das tropas das missões de paz da ONU. Enquanto a Venezuela conta com 10% de mulheres nas Forças Armadas, os demais países andinos não chegam a ter 3%.
Não obstante aos entraves descritos, as mulheres diplomatas têm buscado maior participação de destaque no tratamento de temas relacionados à paz e à segurança internacionais pelo Itamaraty, inclusive em posições de comando. Desde 2000, duas embaixadoras chefiaram a Subsecretaria-Geral de Assuntos Políticos I, entre elas a primeira mulher a assumir uma Subsecretaria-Geral no Itamaraty. Três mulheres dirigiram o Departamento de Organismos Internacionais e três as divisões responsáveis pelo Conselho de Segurança e pela Comissão de Consolidação da Paz das Nações Unidas. Entre 2007 e 2013, a Missão Permanente do Brasil junto às Nações Unidas, em Nova York, foi chefiada, pela primeira vez, por uma mulher.
Entre 2009 e 2013, período que coincidiu com o mais recente mandato eletivo do Brasil no Conselho de Segurança (2012-2013), também o cargo de Representante Alterno da missão foi ocupado por uma embaixadora. O último mandato do Brasil no Conselho de Segurança também marcou a primeira vez que uma embaixadora brasileira presidiu o órgão das Nações Unidas com a responsabilidade primária pela manutenção da paz e da segurança internacionais A Delegação Permanente do Brasil em Genebra, por sua vez, é chefiada por mulheres desde 2008, com duas embaixadoras sucedendo-se no cargo de Representante Permanentehttp://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/plano-nacional-de-acao-sobre-mulheres-paz-e-seguranca/14063-as-mulheres-na-diplomacia-brasileira.
A presença de mulheres no mercado de trabalho ainda era aceita como um tema a espaços restritos em que, de alguma forma, poderiam de encaixar e adequar a presença feminina, quase todos em consonância com o espaço que lhe era atribuído como natural: o privado. Contudo, o que se referia ao espaço público, ao externo, à seriedade e rigidez estava ancorado e perpetrado ainda pela figura masculina. Por outro lado, essa era uma das temáticas principais que abria para um pensamento feminista que se discutia a emancipação da mulher, o mercado de trabalho convertia-se em potencial transformador dotado de estratégia possível para que a mulher não se conformasse apenas ao lugar de dona de casa e cuidadora da família.
A entrada de Maria Rebello, primeira diplomata brasileira, ainda que não trazida em letras em suas palavras e discursos, estava inaugurando emancipações decisórias mesmo que não mencionadas ou codificadas nos atos brasileiros. Era a mulher não só logrando seu papel social num espaço que não fosse privado, ou que tivesse a conotação de trabalho ligado a seus “dotes naturais”, ao cuidado e atenção, e sim adentrando ao público, ao funcionalismo público. Hoje, num centenário após essas discussões entrarem em vigência, anos a fio depois dos estudos de feminismos e gênero ganharem notoriedade, status científico e autonomia acadêmica e que agências governamentais ajam ativamente em prol dos direitos das mulheres, ainda nos deparamos com afastamentos, renitências e reações negativas para incorporar a agenda diplomática feminista como eixo de ação e prática das relações entre os Estados.
Dessa forma, num sentido de avanço de pautas feministas para se conformar como parte consecutiva dos processos uma agenda feminista permanente, vemos algumas iniciativas marcantes nos cenários brasileiros e internacionais. É o caso da Suécia que apresentou um “Manual de diplomacia feminista” para promover entre ONGs e governos os princípios de sua política externa focada desde 2014 na defesa dos direitos das mulheres. Segundo revela a reportagem em 2016, 40% das embaixadoras suecas eram mulheres, enquanto que vinte anos atrás 90% dos embaixadores suecos eram homens.
Além das iniciativas suecas, a Conferência de Beijing trouxe também inovações expressas em seu Plano de Ação: o conceito de gênero, a noção de empoderamento e o enfoque da transversalidade5. No contexto brasileiro foi possível adentrar em alguns avanços com a atuação do Embaixador Celso Amorim para que mulheres sejam identificadas como atores fundamentais na construção da política externa brasileira, ao assumir posições chave. Muitas das transformações foram também possibilitadas devido ao enfoque no governo Lula que foi marcado por ter a questão da desigualdade de gênero no centro da agenda institucional.
Ainda há muitos desafios a serem firmados nessa esteira, e um deles é a participação central das mulheres na construção da “cultura da paz”. Nesse caso, já pudemos ver o declínio da concepção estadocêntrica, da dicotomia nacional e internacional e do androcentrismo dos estudos sobre defesa e segurança produzidos no âmbito das relações internacionais, a partir da incorporação do discurso feminista na década de 1980.
Trazer essa questão para o centro do debate se mostra cada vez mais necessário por vermos abalos já absorvidos e como a teoria feminista modificou aspectos metodológicos, teóricos e epistemológicos em efeitos práticos. Tal fato nos apodera de substância e certeza de que há muito a ser feito e pode ser mudado. Para isso, que sigamos uma trilha que não fortifique a dicotomia mulheres e paz e homens e guerra, que, mesmo na tentativa de ser desconstruída, ainda serve como discurso legitimador, denotando uma concepção próxima do feminismo da diferença, mais ou menos acentuada.
1 Não à toa, no ano de 2018, momento que se completou 100 anos do ingresso da primeira mulher no Ministério das Relações Exteriores do Brasil, a diplomata Maria José Rebello, produziu o documentário “Exteriores: mulheres brasileiras na diplomacia”: https://vimeo.com/303550770
2 MATHIAS, Suzeley Kalil (Org.). Sob o signo de Atena: gênero na diplomacia e nas Forças Armadas.São Paulo: UNESP; Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, 2009.
3 Em comparação aos anos entre 1919 e 1938 houve apenas 19 mulheres ingressando no Itamaraty, esse número, em 1953 e 2015, subiu para 427 mulheres, com uma correspondência de 20,1% e em 2016 alcançou-se o número de 355 mulheres numa totalidade de 1.571, num aumento de apenas 2%.
4 Presente no livro supracitado: MATHIAS, Suzeley Kalil (Org.). Sob o signo de Atena: gênero na diplomacia e nas Forças Armadas. São Paulo: UNESP; Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, 2009.
5 VIOTTI, Maria Luiza. In Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as mulheres. Instrumentos Internacionais de Direitos das Mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, 2006.
Beatriz Brandão é jornalista e socióloga. Doutora em Ciências Sociais pela PUC-RIO e pós-doutoranda em Sociologia pela USP. É especialista em políticas públicas, estudos diplomáticos e atua como pesquisadora do IPEA. Pesquisa temas transversais ao conflito e à guerra – em sua literalidade ou metáfora – na interface com drogas, refúgio e gênero.