A dialética marxista entre a asfixia e a ressuscitação
Nos textos anteriores que compõem a reflexão geral acerca da crise do pensamento crítico em geral, e marxista em particular, trabalhamos: 1) O difícil ato de estudar em tempos de intensificação do roubo do tempo; e 2) A falta de oxigênio do materialismo histórico dialético na atualidade. Nesta última parte, pretendemos dialogar sobre algumas possíveis saídas para esta situação que, esperamos, seja conjuntural e não estrutural
O estudo da dialética de Marx vive à beira do precipício, resultado de uma crise civilizatória sem precedentes. Produzir conhecimento torna-se difícil em uma sociedade cujos resultados quantitativos apaga o caráter qualitativo das perguntas. Ao longo da história do nosso capitalismo sui generis, o tempo de maturação que exige o ato de perguntar, aprender a pesquisar, enquanto se vive, se esvai em meio ao tempo da sobrevivência atual sem direitos.
As perguntas, embaralhadas na própria dinâmica confusa de aprender a desatar o nó que atrofia o fluir do pensamento, apresentam-se primeiro de forma espontânea e vão ganhando, no método, o rigor de um procedimento de investigação e imersão nos estudos, a partir de um sentido de lógica, razão e sensibilidade que não elimina a conflitividade, a processualidade e a historicidade.
É dessa viva condição de uma história cujos laços do passado encontram-se vivos, ora de forma nítida, ora de forma turva, que a investigação ganha corpo. Saber organizar as ideias, com as mediações que ajudam a entrelaçar a trama do processo histórico que se quer apreender, demanda tempo, cuidado e meticulosidade ao longo do processo.
Traçar os diferentes níveis de abstração, entre a vida concreta e a teoria crítica geral sobre um específico modo de produção, ou seja, a relação entre o que se vive e os nexos de produção de sentido categoriais, tem como intenção chegar a uma transformação dos dilemas históricos vividos no tempo presente.
Contudo, como ter tempo em uma sociedade de aceleração do roubo mercantil? Como produzir conhecimento coletivo, em um modo de vida cujo tempo, sempre acelerado, somente é freado em meio às reações do corpo, da mente, dos sentimentos? Tempos de depressões sociais generalizadas.
O método de investigação em Marx está atravessado pela velocidade da miséria humana condicionada pela lógica mercantil. Então, não basta organizar as ideias. É necessário reorganizar a vida em geral, e a vida acadêmica em particular, para que voltem a pulsar, de forma coletiva, o desejo e a possibilidade concreta de produzir algo que transforme a vida de muitos.
Para o estudo da dialética, é preciso de calmaria em meio às turbulentas inquietações. Às vezes o tempo da vida não é compatível com o tempo do estudo. Nada mais dramático que esse desencontro de tempos. E sem tempo tentamos, de forma solitária, captar o movimento da dialética das ruas.
São muitos os desafios mediados por pouco tempo e muitas dores. Ou reorganizamos nossos espaços de trabalho intelectual para revigorar o cultivo temporal da dialética, ou a morte anunciada do pensamento crítico marxista dentro das universidades se apresenta como fato. Caso não revigoremos nossos espaços, seremos, no máximo, bons críticos do sistema, mas jamais trabalharemos conscientemente fincados no método de Marx, para uma transformação societária que começa no próprio sentido que damos ao encontro na sala de aula.
Isso requer uma autocrítica [1] que seja capaz de nos trazer de volta como campo alternativo. Quem sabe, assim, a beleza e a verdade tragam a dialética de volta do coma que por ora a temos submetido. Protagonistas do campo crítico em geral, e do pensamento marxista em particular, precisamos – voltando à imagem de Aurora Reyes da primeira parte desse texto –, nos perguntar quem nos arrasta – e quem arrastamos – para a morte anunciada em vida? Mais do que isso, como dito por Brecht, quem são os esmagados que necessitam se levantar? E aqueles/as que olham temerosos, conseguirão, nos tempos atuais, juntar-se a nós no levante?
Alguns passos possíveis no âmbito individual e coletivo
Quanto mais difícil for encontrar o tempo e o desejo para estudar, tanto mais necessário será enraizar nosso engajamento e objetivos em processos coletivos que deem sentido ao esforço a ser realizado. Uma primeira potencialidade a ser retomada é o vigor dos grupos. Mas grupos que verdadeiramente estudem para atuar e atuem refletindo. A pesquisa participativa (ação) torna-se uma chave importante para a problematização a partir de vários âmbitos.
Além disso, reverter, no âmbito da educação formal, o papel que as experiências de vida possuem na produção de um conhecimento cujo sentido científico não é o de isolar a vida cotidiana de um futuro viver diferenciado, torna-se vital. No caso específico da universidade brasileira, entendemos que a extensão, quando associada à investigação, torna o sentido educativo e o sujeito investigador pontos norteadores da esperança renovada.
Em meio a esses dilemas, é preciso redobrar a sensibilidade e assegurar que a nossa razão não nos torne tão doentes quanto a sociedade que criticamos. Para isso, ter tempo de ouvir, conhecer os sujeitos e reconhecer suas histórias é tão importante quanto ensinar os conteúdos. Sem a aposta no tempo do encontro, não é possível o desenfreado apreço pelo conteúdo que, mesmo quando alguns de nós o conheça, devemos reconhecer as dificuldades atuais, do acesso de muitos. Saber ouvir é saber colher processos comuns possíveis para o curto tempo de trabalho coletivo em que ocorre um semestre letivo.
Se tivéssemos tempo de reconhecimento das nossas histórias, talvez não fosse tão difícil nos respeitarmos. Mas é da velocidade de resposta às pautas hegemônicas que nossos tempos brotam. E não da necessidade de cultivar outros tempos em meio aos tempos dos venenos. Na falta de tempo, será cada vez mais necessário fazermos escolhas. Escolhas que não passam pelo universo do desejo e sim da responsabilidade com o fazer educativo. É um contínuo viver na corda bamba, tamanha a precarização das condições de trabalho.
Na atual conjuntura da relação capital-trabalho, é passada a hora de refletirmos se o excesso de conteúdo crítico não está desajustado com o excesso do roubo do tempo. E esse descompasso entre a necessidade de muito tempo para estudar (que não é o mesmo que ler) e muito tempo para sobreviver tem gerado altos índices de evasão, repetência e desmotivação. Um conteúdo que não acompanha a dinâmica da própria vida, torna-se obrigação e não desejo. E a aprendizagem de estudar nos ensina que sem desejo as portas para o novo conhecimento sequer se abrem.
A sociedade capitalista é conformada por uma lógica de direitos e deveres e não de belezas e quereres. Nada mais triste que uma formação continuada em que estudar deixou de fazer sentido, afinal, o rigor não pode estar em desafeto com a beleza.
Portanto, do que se trata é de encontrar sentido não somente nas perguntas, mas nos caminhos traçados para elucidá-las como possibilidade humanista de revogação da barbárie atual. Retomar a história das experiências que dão sentido às perguntas talvez seja o único caminho promissor na reconvocação da dialética como método, processo científico e concreção política.
A pedagogia da alternância [2]
A pedagogia da alternância é uma experiência potente de aprendizagem sobre o tempo de estudo e o tempo comunidade, alicerçada na gestão participativa do processo educativo. A pedagogia da alternância é uma das principais referências de coesão entre o tempo do cultivo de estudo e o tempo da experimentação desse cultivo na relação social estabelecida entre os sujeitos que produzem relações sociais em um determinado local. Portanto, o tempo curricular é refeito a partir do tempo da produção e da reflexão técnica e científica sobre os ciclos produtivos e seus desafios.
Em uma sociedade do roubo do tempo e da ausência de direitos para a maioria, a alternância é uma reversão estratégica e tática sobre como atuar em um ambiente com predominância da classe trabalhadora. Conhecer essa experiência nos permite repensar nosso quefazer educativo à luz da dialética marxiana com vistas à superação do quadro difícil atual.
Além da pedagogia alternância, que coloca em pé de igualdade a teoria e a ação vinculada a ela, é necessário um olhar rigoroso sobre a história da sobrevivência dos nossos povos e o conhecimento científico abrigado nessa história. No que diz respeito à América Latina e ao Caribe, quanto mais achados arqueológicos ocorrem, mais intensa e urgente a necessidade de reconhecer aquilo que a ciência ocidental aniquilou: os diversos modos de produção existentes e suas características próprias no que diz respeito à economia, à política e à cultura.
A dialética de Marx está na fronteira entre um conhecimento científico cada vez mais empobrecido e uma vida cotidiana cada vez mais adoecida/enraivecida. Ante isso, repensar as experiências do popular [3] em uma sociedade que o relegou às margens, ampliando-as quantitativamente, significa abrir as janelas e respirar/antever, para além das poluções, na busca de possibilidades metodológicas de um cotidiano contínuo em revanches.
As experiências populares
Entendemos que nos povos ribeirinhos, das florestas, camponeses e quilombolas, e no abrigo histórico destes a partir da experiência de sobrevivência do popular presente nas periferias das nossas cidades, habitam histórias de resistências e revoluções à ordem mercantil, mesmo que sob a hegemonia desta. E, quanto mais nos acercamos ao popular que integra a classe trabalhadora mas é maior que ela, mais entendemos que a história das resistências, desde baixo, tem muito a nos dizer sobre como viver em comunidade, coletividade, não sem conflitividade. É a dialética como lógica e como vida cotidiana captada por meio das mediações.
Aprender com o diverso e o plural entendendo suas histórias e colocando-as em movimento junto com o pensamento crítico, nos remete a uma reoxigenação necessária para retomarmos, no bom combate marxista, nosso posicionamento engajado, rigoroso e belo. Pois, se a dialética e o ímpeto de voltar a fazer perguntas e pautar objetivos comuns não estiverem mediados pela beleza, sua ressuscitação corre risco. E a beleza exige que a cultura popular própria de um mundo repleto de experiências africanas, indígenas e camponesas volte a florescer em pé de igualdade com a vida acadêmica e as formações políticas diversas do Brasil.
É urgente reaprendermos a não saquear as perguntas, a não sequestrar os desejos e a não assassinar as experiências históricas que caminham lado a lado conosco. Um marxismo vivo em perguntas, em descobertas coletivas e, também, em indignação contra as injustiças e desigualdades conformadas pelo tipo nefasto de propriedade aprisionadora que demarca o modo de produção capitalista.
Para que a educação formal tenha sentido, é necessário refundarmos nossos projetos nas histórias advindas do popular uma vez que esse universo, pouco re-conhecido por nós dentro do campo crítico, abriga existências deixadas de fora, ao longo do tempo. E isso cobra um preço alto quando se trata de disputa de projetos.
A beleza é um meio e uma mediação, mas é também ponto de chegada e de partida do atual abandono e orfandade que nos encontramos como pensadores e pensadoras críticos. Na linha de bell hooks, é hora de ensinar e aprender a transgredir. E não há maior transgressão do que ensinar a perguntar, frente à histórica condição de submissão que vivenciamos como classe trabalhadora.
Por meio da beleza e do desejo advindos do popular, nossos projetos de pesquisa tendem a resgatar os educadores e os educandos, cuja orfandade atual é a da ausência de um projeto societário alternativo que supere a ordem vigente.
Retomar as perguntas conectadas com as experiências históricas de vida dos povos torna-se um elemento constitutivo para revigorarmos o sentido da dialética na atualidade. Os bairros, as rodas de samba, as cotidianas redes de cuidado dos bairros, a economia subterrânea, entre outros, nos dão a dimensão do que ainda há para reconhecer de nossas existências como revanche.
Muitos outros pontos acerca da retomada do ato de estudar como fundamento da beleza requerem uma análise coletiva. Os círculos de estudos, os programas de formação, os tempos de aprendizagens das experiências populares, a renovação do tempo de trabalho dentro da universidade e fora dela. Tudo isso implica uma força tarefa coletiva para voltarmos a pensar, juntos, em meio à vitória de uma sociedade ensimesmada.
O ato educativo, mesmo quando individual, não precisa e não deve ser solitário. Emanado da solidariedade de saber-se junto na problematização, a retomada individual das perguntas ganha outros sentidos. Realmente é a fusão entre o eu-tu (nós) o que dá sentido à pergunta e às suas possíveis resoluções.
Ficam em aberto outros tantos pontos sobre a produção individual e coletiva que refunde nosso existir juntos como pensadores/educadores vinculados ao conhecimento crítico em geral, e pensamento marxista em particular.
Há uma colcha de retalhos advinda das experiências históricas de sobrevivência para além da ordem do capital que necessitamos tecer entre várias mãos e modos de conhecimento. A dialética é esse movimento de tecer processos, revigorando os pontos de partida e de chegada dessa tessitura no âmbito da práxis. Nesse tecer como devir, convoco os autores iniciais trabalhados deste texto – Brecht, Saramago e Aurora Reyes [4] – e coloco em movimento dialógico a seguinte questão: para reverter a escuridão da caverna e a violência contra a professora rural, é possível outro meio/modo como pensamento crítico, que não seja o do elogio à dialética? Se sim, qual seria? Mas, se não, onde nos encontramos para refundar nossos sentires/sentidos juntas/juntos?
Roberta Traspadini é pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia e professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Relações Internacionais na Unila.
[1] Como asseverava Mao Tsé-Tung no enfrentamento aos desvios no interior do Partido Comunista Chinês, vale o que ele sustenta para o partido, aquilo que deve versar na produção do conhecimento científico: “A prática conscienciosa da autocrítica é uma das características marcantes que distinguem o nosso Partido dos demais partidos políticos. Como temos dito, uma casa deve ser varrida regularmente, de contrário, a poeira vai-se acumulando; as nossas caras devem ser lavadas regularmente, pois doutro modo, acabam por ficar cheias de poeira. A mente dos nossos camaradas e o trabalho do nosso Partido igualmente podem ficar cobertos de poeira, razão por que devem ser varridos e lavados também. (…) Verificar constantemente o nosso trabalho e, durante esse processo de verificação, desenvolver um estilo democrático, não temer a crítica nem a autocrítica e aplicar essas valiosas máximas populares chinesas que dizem: “Não cales o que sabes nem guardes para ti aquilo que tens a dizer (…) Ninguém tem culpa pelo facto de ter falado, é ao que escuta que incumbe tirar todo o proveito disso (…) e se tiveres cometido erros, corrige-os, mas se os não tiveres cometido, guarda-te de vir a cometê-lo”, eis a única via eficaz para evitar que a poeira e os micróbios políticos infectem a mente dos nossos camaradas e o corpo do nosso Partido. Discurso de 1945, Obras escolhidas, tomo III.
[2] A pedagogia da alternância surgiu em 1968 no Espírito Santo, a partir da constituição do Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo (MEPES), potencializada pelo pioneirismo do educador italiano Padre Pietrogrande. Ver: https://www.mepes.org.br/humberto-pietrogrande/.
[3] Por popular entendemos – na linha de MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Editora da UFRJ, 1987 – esse universo diverso e plural de pessoas que integram a classe mas que no entanto não têm suas experiências e histórias conformadas com centralidade pelos diferentes campos da política como sujeitos diretos da ação reflexiva. Nesse grupo que não integra diretamente a produção de valor mercantil, encontram-se ribeirinhos, quilombolas, camponeses, indígenas e um amplo grupo que vive no âmbito urbano (periferias), e revela, no cotidiano, experiências de sobrevivência para além do capital, mas não sem contradições e conflitividades.
[4] Ver início da parte 1.
Ao final, um respiro de esperança ap retomarmos (como a dialética nos convida), a nos conectamos com a beleza, o original, o simples, o popular. Simplesmente, não esquecemos, nos distraímos, nos perdemos…Obrigada pela reflexão!