A dupla dinâmica migratória não é contemplada pelo governo brasileiro
Paralelamente ao êxodo dos ucranianos, há um movimento considerável e ainda pouco visível dos russos e belarussos saindo de seus países com medo das repressões e da insegurança econômica e política provocada por ações do governo Putin e pelas extensas sanções ocidentais
Enquanto a invasão russa na Ucrânia já gerou 3 milhões de refugiados de guerra na Europa, a legislação repressiva do governo Putin contra ativistas anti-guerra tem provocado o êxodo de milhares de russos. Neste texto faço uma breve análise da dupla dinâmica migratória que surge na Europa com a guerra na Ucrânia, destacando dois movimentos centrais: dos refugiados ucranianos e dos emigrados russos e belarussos. Em seguida, argumento que as medidas adotadas pelo governo brasileiro para acolher os ucranianos precisam ser estendidas também para os russos e belarussos, já que tudo indica que é justamente para estes últimos que o Brasil pode se tornar um destino atraente.
Refugiados ucranianos na Europa
A invasão militar na Ucrânia que o governo Putin iniciou em 24 de fevereiro produz efeitos graves e duradouros na mobilidade humana na Europa. O grupo mais vulnerável e mais visível são os ucranianos fugindo dos ataques russos que atingem as regiões no leste do país.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) avalia o número de refugiados ucranianos em 3 milhões de pessoas. Elas estão fugindo para os países mais próximos à Ucrânia, tanto geográfica como culturalmente. A Polônia já registrou 1,8 milhão de pessoas, seguida por Romênia, Moldova, Hungria e República Checa. Além disso, há cerca de 1,8 milhão de deslocados internos na Ucrânia. Apenas em Lviv, cidade no oeste do país, as autoridades registraram mais de 200 mil deslocados internos, o que corresponde a mais de um quarto da população. Outras cidades importantes da região, como Uzhgorod, e mesmo pequenos vilarejos acolhem os deslocados das regiões atingidas pelo conflito armado, sobrecarregando a sua infraestrutura urbana num contexto de escassez de recursos públicos, destinados ao financiamento da defesa militar e civil.
A rápida mobilização popular nos países da Europa do Leste e Central para acolher os refugiados ucranianos gerou respostas normativas inesperadas considerando a política migratória securitária praticada na região nas últimas décadas. Em 3 de março a Comissão Europeia concedeu aos refugiados da Ucrânia proteção temporária, válida por um ano e prorrogável por mais um. Esse instrumento de regularização migratória garante imediatamente os direitos de moradia e acesso à saúde pública, educação, assistência social e ao mercado de trabalho.
Sendo alternativa à solicitação de asilo, o instrumento da proteção temporária evita as amarras operacionais impostas pela Regulação de Dublin, que estabelece que o processo de refúgio deve ser processado no país europeu de primeiro ingresso. Tal regra tem sido aplicada rigorosamente no caso dos refugiados do Oriente Médio e da África subsaariana. A Regulação gera tensões entre os membros da União Europeia porque sobrecarrega os sistemas de refúgio dos países que estão na rota dos refugiados que atravessam o Mediterrâneo ou tentam cruzar pela fronteira leste da comunidade de nações. Para os refugiados de fora da Europa isso tem reverberado em respostas securitárias e violentas e em confinamento em campos de refugiados precários, situados nos países de ingresso.
Em contraste, a proteção temporária para os ucranianos, visa “evitar sobrecarregar os sistemas de refúgio nacionais e permite aos países da União Europeia administrar melhor os recém-chegados”, como consta no documento que justifica a medida. Destaca-se também o objetivo de “aumentar a solidariedade e a partilha de responsabilidades, promovendo o equilíbrio entre os países da UE no esforço de acolher os recém-chegados da Ucrânia”.
É preciso ressaltar que a comoção popular, a solidariedade real e a ampla ajuda humanitária criam na Europa um precedente concreto para rever as leis migratórias securitárias que objetivam afastar os migrantes e refugiados “extracomunitários” das fronteiras europeias. Esse é o momento político oportuno para reivindicar o tratamento digno e equitativo para todos os solicitantes de asilo na Europa, independentemente de sua cor de pele, origem étnica e nacional, religião e motivos de deslocamento.
Emigrada/os russa/os, reféns do regime global de controle de mobilidade
Paralelamente ao êxodo dos ucranianos, há um movimento considerável e ainda pouco visível dos russos e belarussos saindo de seus países com medo das repressões e da insegurança econômica e política provocada por ações do governo Putin e pelas extensas sanções ocidentais. Além das perseguições já em curso dos ativistas de direitos humanos, da oposição política, dos movimentos sociais feminista e LGBTQIA+ e das minorias religiosas, o governo Putin empreendeu repressão sem precedentes contra os seus cidadãos que se opõem à guerra. O controle sobre a mídia foi reforçado: o governo ameaçou bloquear qualquer veículo de comunicação que se referisse à guerra na Ucrânia como “guerra”; reprimiu com violência os protestos anti-guerra nas ruas e na internet; bloqueou redes sociais como Facebook e Instagram que contavam com 80 milhões de usuários na Rússia. Por fim, em 4 de março, Vladimir Putin assinou, em prazo recorde de dois dias, a lei que traz emendas ao código penal e prevê a punição de até quinze anos de prisão para o crime de “divulgação pública de informações conscientemente falsas sobre o uso das forças armadas da Federação Russa”. Na prática, essa lei visa intimidar ainda mais aquele segmento da sociedade russa que se manifesta contra a guerra na Ucrânia.
No dia 17 de março, Putin, em um discurso transmitido na rede nacional de televisão, anunciou explicitamente que irá reprimir fortemente “a quinta coluna” tanto dentro como fora da Rússia, numa evidente referência aos ativistas anti-guerra e aos emigrados: “o Ocidente tentará confiar na chamada quinta coluna, nos traidores nacionais, naqueles que ganham dinheiro aqui conosco, mas vivem lá. E quero dizer ‘viver lá’ nem mesmo no sentido geográfico da palavra, mas de acordo com seus pensamentos, sua consciência servil”.
Diante dessa insegurança política e socioeconômica, muitos russos tomam a difícil decisão de se exilar e se deparam com uma série de dificuldades. Diferentemente dos ucranianos, os russos precisam de vistos para entrar nos países europeus. Desde o início da guerra, vários países do espaço Shengen suspenderam a emissão de vistos de curta duração para cidadãos russos. Alguns líderes de governo fizeram declarações polêmicas, como o secretário do Estado para migrações e refúgio da Bélgica que ameaçou solicitar à União Europeia cancelar todos os vistos de curta e de longa duração já emitidos para cidadãos russos. Embora medidas dessa natureza não tenham sido adotadas, a sinalização de que os russos não eram mais bem vindos na Europa repercutiu fortemente entre aqueles que pensavam em deixar o país. As restrições de vistos para a Europa e para os Estados Unidos (lembrando que o país cessou atividades consulares de emissão de vistos na Rússia já em abril de 2021, como parte do pacote de sanções contra o país) fizeram com que os russos se dirigissem para os países com menor controle de ingresso. Além disso, o cancelamento de voos diretos para a Europa faz com que os russos busquem destino em função de dois critérios: a possibilidade de ingresso sem visto e a disponibilidade de voos. Assim, inúmeros sites na internet monitoram e atualizam a lista dos países ainda acessíveis para cidadãos russos, dentre os quais Turquia, Geórgia, Armênia, Egito, Emirados Árabes, Israel, Tailândia, Vietnã, entre aqueles que já são destinos tradicionais para os turistas russos.
Geórgia, Armênia e Kyrgyzstan são países da antiga União Soviética que mais têm recebido emigrados russos nas últimas semanas. As autoridades georgianas estimam que mais de 20 mil russos já fugiram para esse país de 3,7 milhões habitantes desde o início da guerra na Ucrânia. Na Armênia, o governo relatou a chegada diária de 6 mil russos, ucranianos e belarussos. Bishkek, a capital de Kyrgyzstan, também recebe voos diários lotados com origem nas cidades russas. Assim como a Turquia, que se mostrou um destino possível, graças ao regime de entrada livre, à existência de voos diretos e à já consolidada comunidade russófona no país.

Qual é o lugar do Brasil?
O êxodo russo e ucraniano não é um fenômeno inédito. Na história recente houve pelo menos dois momentos que levaram os russos, ucranianos, belarussos e outros grupos da região ao exílio: a revolução bolchevique e a guerra civil de 1918-1922 e a Segunda Guerra Mundial. Tendo me dedicado à pesquisa da diáspora russófona histórica no Brasil, quero argumentar que podemos aprender algo com a história. Assim como durante o êxodo dos territórios do ex-Império Russo depois da revolução bolchevique, no primeiro momento as pessoas tendem a emigrar para os países mais próximos de suas regiões de origem. Hoje tal fenômeno é largamente conhecido nos estudos das migrações forçadas e ilustrado nos relatórios anuais das agências internacionais que monitoram os deslocamentos contemporâneos.
Nos anos 1920, a diáspora russófona, originária dos territórios do Império, se formou primeiramente em Constantinopla (hoje Istambul), na República Tcheca, Alemanha, França e Reino da Iugoslávia. Cerca de 2 milhões de emigrados acreditavam que o seu exílio era temporário até a queda do regime bolchevique e por essa razão preferiam se manter perto das fronteiras com o seu país de origem. Assim como hoje, tanto os ucranianos como os russos estão em deslocamento forçado apostando que o seu exílio é de curta duração. Porém, a situação muda quando o exílio se prolonga. No caso dos emigrados do período entre guerras, a crise econômica mundial e a escalada de tensões políticas na Europa motivaram os russos a seguirem suas jornadas para fora do continente. É justamente nesse momento que os países do continente americano se tornaram destinos para esses refugiados. A comunidade russófona que se formou no Brasil e sobretudo em São Paulo na década de 1930 foi reflexo das condições pouco favoráveis que os refugiados do ex-Império Russo encontravam na Europa.
Hoje, aprendendo com os precedentes históricos, precisamos avaliar a duração da guerra na Ucrânia como fator que irá refletir na dinâmica dos deslocamentos dos ucranianos, russos e outras populações afetadas pela guerra para fora do continente europeu. O Brasil, embora possua uma das maiores comunidades ucranianas históricas no mundo (cerca de 600 mil descendentes), ainda não viu um fluxo considerável dos refugiados ucranianos chegando. É de extrema importância que o país tenha se precipitado em oferecer aos ucranianos um instrumento eficaz de regularização migratória, estabelecido pela Portaria Interministerial n. 28 de 3 de março de 2022. Porém, dificilmente veremos nos próximos meses um fluxo importante de ucranianos vindo ao Brasil procurando asilo. Diante da acolhida ágil, ampla e eficiente que eles recebem na União Europeia, sem se distanciar da Ucrânia, onde muitos ainda possuem familiares, parceiros e propriedade, é muito improvável que ucranianos queiram vir para as Américas e para o Brasil.
No entanto, no caso dos russos e belarussos o Brasil tem ressurgido como um destino atraente. Diferentemente dos ucranianos, os russos e belarussos não são tão bem-vindos na Europa. Nos países vizinhos, antigas repúblicas soviéticas, eles estão provocando reações contrárias de certos setores da população, pondo as autoridades em alerta. Nos Estados Unidos e Canadá a sua entrada exige vistos, cada vez mais difíceis de obter. Nesse contexto, o Brasil é um destino acessível: não exige visto de turismo (90 dias de estadia prorrogáveis por mais 90 dias), é um país economicamente estável, possui uma comunidade russófona considerável e ativa nas redes sociais, é acessível por avião com poucas conexões em Istambul ou Dubai e ainda não manifestou posições anti-russas nos espaços públicos. Assim, nas últimas semanas o Brasil (assim como a vizinha Argentina) tem despertado interesse das pessoas que planejam o exílio, gerando discussões nas redes sociais de língua russa e contatos com a comunidade russa residente em diferentes cidades brasileiras.
Embora o primeiro acesso ao Brasil possa parecer fácil, os caminhos para a regularização migratória mais definitiva do que o status de turista ainda são escassos para os russos e belarussos. A autorização de residência é atualmente obtida por meio do instrumento de reunião familiar (por nascimento de filhos brasileiros ou por casamento com cidadã/o brasileira/o), visto de trabalho ou de estudante e ainda visto de investidor (sujeito ao investimento de R$ 500 mil em pessoa jurídica brasileira).
Nas últimas semanas vejo com muita frequência pedidos de socorro dos cidadãos russos no Brasil com vistos de turismo ou de estudante vencidos e que se encontram na situação migratória irregular sem poder retornar para o seu país, temendo represálias do governo. Algumas dessas pessoas são ativistas dos direitos humanos e não veem a possibilidade de retorno na atual situação política na Rússia.
Portanto, é preciso que os cidadãos russos, belarussos e deslocados pela guerra na Ucrânia de outras nacionalidades sejam incluídos com urgência na Portaria de acolhida humanitária restrita hoje apenas para os ucranianos. Sem um instrumento de acolhida humanitária, essas pessoas permanecerão na insegurança e com um status migratório incerto e instável. Ficarão reféns das armadilhas do regime global de vistos e controle de mobilidade.
Svetlana Ruseishvili é professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos.