A escolha sobre o corpo
No campo dos direitos reprodutivos, enfrentamos uma situação grave: de um lado, está uma parte da sociedade e do governo sensível ao sofrimento de milhares de mulheres obrigadas a recorrer a abortos clandestinos; e de outro lado, setores religiosos fundamentalistas que atuam em nome de uma defesa abstrata da vida
Acreditamos que essa foi a visão que norteou o trabalho da Secretaria Especial dos Direitos Humanos durante o processo de elaboração do III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), publicado em dezembro do ano passado. O texto, entre outras coisas, procurou dar respostas a duas perguntas fundamentais: Quem são os que precisam ser protegido em seus direitos? E quais direitos devem ser garantidos?
A primeira indagação teoricamente é fácil de ser respondida: todo ser humano merece a proteção do Estado. No entanto, a história nos mostra outra realidade. Basta examinarmos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, sem deixar de significar um avanço, não foi escrita pensando em todos e sim nos homens, brancos, heterossexuais e adultos.
Com o tempo, essa declaração,tão importante para a história dos direitos humanos, revelou-se insuficiente em seus enunciados, porque foi construída a partir de uma visão única do ser humano. As particularidades ficaram invisibilizadas e apenas um modelo foi universalizado. Várias iniciativas das Nações Unidas, por meio de conferências e tratados internacionais – que são pactuados por um número expressivo de países – têm mostrado que é preciso também trabalhar pelos direitos humanos de outros sujeitos históricos, como por exemplo, as mulheres, os jovens, as crianças e os idosos, os negros, os deficientes físicos, os homossexuais, bissexuais, transexuais, transgêneros, enfim, contemplar toda a multiplicidade de manifestações do humano.
Como sustenta Boaventura de Sousa Santos1 “temos o direito a sermos iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a sermos diferentes quando nossa igualdade nos descaracteriza. Por isso, é necessária uma igualdade que reconheça as diferenças, e uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.
As mulheres historicamente foram inferiorizadas e uma das principais conquistas do feminismo em todo o mundo tem sido o reconhecimento – por parte dos defensores de direitos humanos, das instituições, de esferas governamentais, da academia – que, sem elas os direitos não são humanos. Se é assim torna-se de fundamental importância ouvir o que as mulheres têm a dizer sobre seus direitos.
Quais direitos devem ser garantidos?
A tônica da proteção geral e abstrata em relação aos seres humanos foi a que prevaleceu no século XIX e boa parte do século XX, baseada em uma noção de igualdade formal, que expressa o temor à diferença. Com o passar do tempo, novos direitos vão sendo construídos e reconhecidos, tais como aqueles que se referem às questões de justiça social, proibição da tortura, direito à cidadania e tantos outros fundamentais para a dignidade humana.
Com o reconhecimento das particularidades, nas décadas do final do século XX e em tempos atuais, conteúdos que foram historicamente desvalorizados, silenciados e naturalizados ganham expressão. Novos sujeitos políticos aparecem atuantes na história e ocupam os debates públicos.
As mulheres são as primeiras a afirmar que “os direitos sexuais e os direitos reprodutivos são direitos humanos. São universais, porque abarcam todos os seres humanos desde o seu nascimento; são interdependentes, porque se conectam com todos os demais direitos humanos. E são indivisíveis, porque são vividos e atuam de um modo conjunto e integral”2.
Se os direitos sexuais e os direitos reprodutivos não são respeitados, então os direitos humanos não estão sendo respeitados. Os direitos reprodutivos concernem a autonomia para o exercício da própria capacidade reprodutiva. Estão relacionados à decisão de quantos filhos se quer ou não ter, à escolha do momento da reprodução e da forma como esta se dará. São direitos que afetam principalmente a vida das mulheres.Esses direitos são violados tanto quando as mulheres são esterilizadas sem consentimento, como quando são criminalizadas por interromper uma gravidez.
No campo dos direitos reprodutivos, o Brasil enfrenta uma grave situação: de um lado, temos uma parte expressiva da sociedade e do governo sensível ao sofrimento de milhares de mulheres que se veem obrigadas a recorrer a práticas clandestinas de interrupção da gravidez – porque não são atendidas pelo serviço público; e de outro lado, setores religiosos fundamentalistas que em nome de uma defesa abstrata da vida, se empenham na luta contra os direitos dessas mulheres.
Continuar criminalizando o aborto em nada diminuirá o número de interrupções voluntárias de gravidez. Pelo contrário: a clandestinidade fomenta práticas inseguras e favorece a criação de estabelecimentos que buscam lucrar com a difícil situação que uma mulher enfrenta caso não queira ou não possa levar adiante uma gravidez. Aqui, a maioria das mulheres que aborta é católica, mas elas não podem dizer publicamente que o fizeram, sob pena de serem criminalizadas pelo Estado e excomungadas pela Igreja. Convivem então com um duradouro sentimento de culpa, pois desconhecem que na doutrina católica há argumentos que validam a decisão das mulheres por um aborto e que existem teólogos que defendem a validade dessa escolha. Não sabem também que os países que legalizaram a prática do aborto reduziram a incidência do mesmo, uma vez que passaram a oferecer educação sexual desde a infância, serviços mais qualificados de acesso a anticonceptivos e um atendimento digno.
Há várias pesquisas nacionais que mostram a discordância da população brasileira – inclusive católica – sobre a legislação vigente nessa área, bem como expressam o desejo de que o governo implemente políticas públicas para minimização do problema3.
Em São Paulo, no dia 19 de janeiro foi divulgada uma pesquisa4, cujos resultados apontam que a maioria dos paulistanos é contra a proibição do aborto. A pesquisa foi feitacom mais de 1,5 mil moradores da capital paulista, com idade superior a 16 anos. Os resultados mostram que mais de 60% da população é contrária a proibição do aborto e que apenas 6% está satisfeita com as políticas públicas em relação ao tema.
O que fez o III Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH)não foi mais do que ouvir a voz do povo brasileiro, sobretudo das mulheres. No entanto, os setores mais conservadores do Brasil – hierarquia católica, militares e ruralistas – manifestaram seu descontentamento e pressionaram o governo para que retrocedesse em aspectos importantes do programa. A Igreja Católica se sente atingida, porque o plano anuncia a proposição de ações coordenadas de governo que apoiem a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto. Reage também à retirada de símbolos religiosos de espaços públicos, proposta que significa uma manifestação clara de respeito à pluralidade religiosa e aos não adeptos a nenhuma religião.
Caberá aos nossos governantes manterem firmes suas decisões e não cederem frente às pressões religiosas. Também será responsabilidade do Estado efetivar o PNDH por meio de políticas públicas. Afinal vivemos em um país laico que não deve governar a partir de nenhuma doutrina religiosa. Ao contrário, sua missão é garantir os direitos de todas as pessoas, religiosas ou não. Lembramos que oferecer serviços de atendimento ao aborto não significa obrigar nenhuma mulher a praticá-lo, mesmo em casos de anencefalia, nos quais se sabe que o feto não terá vida consciente e duradoura após o nascimento. A legislação apenas vai garantir o direito daquelas mulheres que hoje desejam ou precisam abortar e estão recorrendo a parteiras e clínicas clandestinas. Defender os princípios de laicidade do Estado é fundamental para garantir um Brasil de fato para todos e verdadeiramente democrático.
*Regina Soares Jurkewicz é membro da equipe de coordenação de Católicas pelo Direito de Decidir – Brasil; doutora em Ciências da Religião, formada pela PUC-SP.
1 Manifesto por uma Convenção Interamericana pelos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, Segunda Versão, novembro de 2006.
2 Idem.
3 Visite o site www.catolicasonline.org
4 Disponível em https://noticias.uol.com.br/ultnot/cienciaesaude/ultnot/2010/01/19/maioria-dos-paulistanos-e-contra-a-proibicao-do-aborto-diz-pesquisa.jhtm?utm_source=uau&utm_medium=twitter&utm_campaign=uau-news