A grave política de segurança pública na Maré
As guerras que se travam no mundo, que destroem vidas, podem não estar ao nosso alcance, não tão diretamente, mas as que ocorrem no Brasil estão e essas podem ser estancadas, temos soberania para isso
Há muitas guerras e conflitos acontecendo no mundo, que parecem estar fora de nosso alcance. A ONU e o Conselho de Segurança, atualmente presidido pelo Brasil, buscam soluções diplomáticas. A atenção neste momento é sobre a Palestina e Israel e uma fórmula que retome o acordo de Oslo (1993), fazendo cessar a violência.
Entretanto, muito mais perto de nós, nas nossas mãos, no seio de nossa nação, também temos guerras e conflitos, também temos as nossas “faixas de Gaza”.
Eis uma delas: a Maré!
Foi por meio da Redes da Maré, organização da sociedade civil, antirracista, nascida da mobilização comunitária nos anos 1980, que em um dia ensolarado e abafado conheci a Maré. Aprendi, logo nos primeiros passos adentro, que ali a atmosfera era sufocada por construções, em um terreno plano e onde até o céu era difícil de enxergar. A ventilação pelas vielas quase não acontecia e o ar se tornava um dos menos puros do Rio de Janeiro.
Essa visita aconteceu já faz alguns meses. Entre tantas atividades, não pensei mais tanto no lá vivenciado. Contudo, hoje, a Maré me voltou à memória. Tomei conhecimento, por notícias de jornal, de que há uma articulação para intervenção da Força Nacional de Segurança Pública e Polícias do estado do Rio de Janeiro na região.
Não posso ter a pretensão de analisar o contexto histórico, social e econômico da Maré, afinal estive lá por apenas um dia. Entretanto, conheço os movimentos populares e, em contato direto com o sistema de justiça criminal e penitenciário, sei da seletividade e necropolítica que permeia a segurança pública do país. Na Maré não é diferente, na Maré talvez seja até mais grave.
A região abrange um conjunto de dezesseis favelas, espremidas entre três vias de circulação da cidade: Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela. Sua consolidação começou por volta de 1940, quando a vegetação de manguezal passou a ser ocupada por palafitas, seguidas de aterros e entulhos. Hoje o número de habitantes em seu território é de cerca de 140 mil.
Para mim, no dia da visita, quando me foram apresentadas as belezas do povo da Maré, o abafamento que sentira no começo logo se dissipou. Lá a vida pulsa com muita intensidade, há uma poesia viva em cada gesto, em cada sorriso, em cada olhar. A marca, porém, como a que identifica todas as favelas, está na omissão do Estado em políticas públicas cidadãs. A presença do Estado restringe-se na maioria das vezes a órgãos de segurança, a causar insegurança e medo. Diante dessa omissão e do temor da violência, as pessoas que moram nessas regiões vulnerabilizadas não conseguem perceber no governo algo bom, que existe por e para elas, não se sentem pertencentes.
E, no caso da Maré, há uma tensão maior. Seus moradores sabem melhor do que ninguém o que é viver sob o julgo das forças policiais do Estado brasileiro. Confrontos entre essas forças e facções resultam em mortes de inocentes, bem como perseguições a defensores e defensoras dos direitos humanos, entre outras violações.
Enquanto perambulava aqui e acolá pela favela, integrantes da Redes da Maré relatavam as frequentes intervenções da polícia, a partir das 6h da manhã, com helicóptero e “caverão”. Nessas ocasiões, todo mundo tinha que ficar em casa, crianças e adolescentes não podiam ir para a aula, doentes não podiam se tratar, trabalhadores não podiam se dirigir ao emprego. Como se fosse a Palestina, os moradores se escondiam, na espera do conflito passar. Depois da intervenção, era hora de socorrer as vítimas, trabalho que a Redes da Maré também procurava fazer.
Porque sei o que vi na Maré, porque sei das consequências nefastas de uma intervenção desse tipo, é que muito me preocupa a intenção do Estado nesse sentido. Essas ações policiais baseiam-se em uma política muito equivocada. A polícia tem o direito de se defender e, acima de tudo, o dever de defender a população. Porém, em confrontos como os que se veem nas favelas, quando dessas intervenções, morrem também pessoas desarmadas e rendidas ou que não tinham nada a ver com a história, em geral, morrem pessoas negras. Há um esquecimento da missão constitucional dos órgãos de segurança, de proteção e defesa da vida, incondicionalmente. O irracional é que, depois, tudo volta a ser como era antes, ou seja, a população volta à normalidade, à dura normalidade da miséria e do abandono.
As guerras que se travam no mundo, que destroem vidas, podem não estar ao nosso alcance, não tão diretamente, mas as que ocorrem no Brasil estão e essas podem ser estancadas, temos soberania para isso. Basta abandonar a fórmula da guerra contra as drogas, do aumento de penas, da privatização de presídios, das intervenções policiais em favelas. É hora do governo democrático que se instalou em 2023 conduzir uma discussão profunda sobre a refundação da área de segurança pública, entendendo que a superação da violência se faz especialmente com educação pública, saúde pública, saneamento público, cultura pública, com cidadania.
Quando fui embora da Maré, já era início da noite. Do táxi olhei para as luzes distantes da favela. Senti tristeza, apreensão e vontade de lutar mais ainda pela humanidade. Hoje, ao testemunhar a violência que assola o Oriente Médio e o mundo, o sentimento que então tive me toma novamente. A real necessidade do povo da Maré é antes de tudo um direito, o direito de ser respeitado. Ou a Palestina é aqui?
João Marcos Buch é desembargador substituto do TJSC.