A nota da UFBA como acinte: melhor seria o silêncio em vez da promoção de fake news sobre a Lei nº 12.990/2014
Apesar do que diz a lei e o Estatuto da Igualdade Racial, ninguém apresentou uma avaliação sobre os dez anos de vigência da lei de cotas. Nós, negros e negras, não merecemos a verdade? Falta coragem para enfrentar às instituições em que o racismo impera na contratação de docentes?
Mais uma vez, nos deparamos com um escândalo relacionado à Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014 (Lei nº 12.990/2014) que repercute na imprensa nacional. Agora, porém, não se trata apenas de um novo episódio, mas da continuidade de uma tragédia anunciada e, infelizmente, fomentada até mesmo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) pela nota institucional sobre o caso. O Reitor da instituição poderia ter lido a sinopse do relatório “A Implementação da Lei nº 12.990/2014: Um Cenário Devastador de Fraudes”, ou até o Sumário Executivo, e, com interesse e paciência, o relatório completo, que conta com quase mil páginas repletas de evidências sobre como as universidades (incluindo a UFBA), entre outras instituições, enfrentaram o Estado Democrático de Direito, com a condescendência deste último (o que é um paradoxo evidente).
Recentemente, uma candidata da ampla concorrência entrou na justiça para tirar a vaga de uma cotista da Lei nº 12.990/2014. Peticionar, por si só, não reveste de ilegalidade o ato da candidata não cotista. Contudo, a resposta do Estado, sim, demonstra o compromisso, ou falta dele, para com a efetividade de uma política pública de reparação.
Em princípio, não se espera que a Justiça opere injustiças, principalmente quando há elementos de prova, jurisprudência e dispositivo constitucional apontando na direção correta.
Tudo isso ajuda, também, a compreender por que, nos concursos para o magistério superior, o grau de ineficácia foi de 95,5%, conforme relatório do Governo Federal. Ou seja, de cada 1000 potenciais beneficiários da reserva de vagas pela Lei nº 12.990/2014, apenas cinco se tornaram docentes nas universidades. Trata-se de uma vergonha que tais instituições de ensino superior sequer tentam esconder, contando com a complacência de uma sociedade marcada pelo racismo. Agem para proteger os interesses da branquitude.
Em vez de assumir sua responsabilidade, a UFBA escolheu um alvo mais fácil: a lei. A universidade culpa a legislação pelo seu racismo institucional e tenta ocultar a verdade. Vamos às fake news promovidas pela UFBA.
Na nota, está escrito:
“No caso dos concursos para professor do magistério superior das universidades federais, como as vagas por cada área do conhecimento são, em geral, inferiores a três, a aplicação da lei não era possível, inviabilizando, na prática, a política afirmativa de inclusão, objetivo da Lei de Cotas.”
Primeiro, a UFBA, acreditando que não há observadores atentos, tenta induzir o(a) leitor(a) a pensar que a Lei nº 12.990/2014 se refere a áreas de conhecimento, e não a cargos. Essa é a forma como universidades têm fraudado a lei de cotas a uma década. Vamos às evidências. Observemos com cuidado e elevado espírito público o que diz a Lei nº 12.990/2014 em seu art. 1º, caput:
“Art. 1º Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, na forma desta Lei (grifo nosso).”
Ora, a UFBA sabe que a lei trata de cargos efetivos, não de áreas de conhecimento. A UFBA sabe que os cargos na administração pública federal são criados por lei (Art. 3º da Lei 8.112/1990). Também sabe que a lei que cria os cargos do magistério superior é a Lei nº 12.772/2012. Ou seja, a UFBA sempre soube que a forma de não aplicar a lei era criar a ideia de que a reserva de vagas se dá com base na área e não no cargo. Agora, após mais de 10 anos de vigência da lei, a nota revela a intenção deliberada de fraude. Parece que não é só a extrema direita que vive de fake news.
Afirmar que, devido às características dos concursos públicos nas universidades, a lei não era aplicável e que isso inviabilizava a política de cotas é um acinte. Algumas universidades, antes da UFBA, já aplicavam a lei de cotas sem ressalvas.
O penúltimo parágrafo da nota da UFBA começa com “nesta metodologia”. A UFBA elevou sua burla à lei ao status de “metodologia”. Como uma bala perdida que encontra corpos negros…
Reitor, nós, do Observatório das Políticas Afirmativas Raciais (Opará), respeitamos a Ciência. Quantas vezes o senhor já ouviu falar que, em um experimento científico, cuja realização demanda recursos, uma metodologia que não funciona deve ser repetida? Não subestime a inteligência alheia. No terceiro concurso em que a UFBA aplicou uma “metodologia” ineficaz, já seria suficiente para mudá-la. Consideramos o segundo concurso como confirmador da ineficácia.
Reitor, a comunidade negra merece mais respeito e a verdade, algo que insistem em lhe negar. Veja, até agora, apesar do que diz a lei (art. 5º) e o Estatuto da Igualdade Racial (art. 59º), ninguém apresentou uma avaliação sobre os dez anos (isso mesmo: uma década!) de vigência da lei de cotas. Nós, negros e negras, não merecemos a verdade? Não temos direito à história da lei de cotas? Ou, falta coragem para enfrentar às instituições em que o racismo institucional impera na contratação de docentes?
A branquitude só se atreve a reivindicar a ineficácia da Lei nº 12.990/2014 porque as universidades forneceram esse argumento. Se a grande maioria das universidades frauda a lei de cotas, ensinando a branquitude que a lei não se aplica, o senhor precisa enfrentar o silêncio de Omertà da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES). A ANDIFES, que reúne os reitores, foi, e muitas vezes ainda é, fundamental para a retirada de direitos. Seu silêncio é comprometedor.
O Judiciário, que não há razão objetiva para dizermos que é refratário ao racismo, se inspirou nas experiências das universidades para retirar o direito da Prof.ª Dr.ª Lorena Pinheiro Figueiredo, em uma liminar. Estamos certos de que Vossa Magnificência se empenhará em restituir a vaga da docente negra.
Mas, antes, precisa restituir a verdade: os concursos para o magistério superior, segundo a Lei nº 12.990/2014, nunca se trataram de áreas de conhecimento, mas sim de cargos efetivos; e essa “metodologia” tem outro nome: burla ou fraude, como preferir.
Nós, do Opará, estamos atentos às manobras nos concursos e aos discursos racistas. Esperamos mais da UFBA. Esperamos, por exemplo, que repare todas as vagas não implementadas pela ilegalidade dos certames, como fez a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). Essas universidades decidiram recompor a verdade e a memória.
Esperamos da UFBA mais do que uma nota; queremos uma reação contundente contra o racismo institucional. Estamos à disposição para cooperar. Nosso relatório serviu como base para documentos jurídicos importantes. Citamos dois exemplos.
Primeiro, o parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), que autorizou a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) a reparar as vagas não preenchidas pela falta de implementação correta da lei. O documento cita nosso relatório como evidência sólida e segura de que a reserva de vagas não foi implementada corretamente e que, agora, é preciso reparar o prejuízo.
Segundo é a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 7654 (ADI 7654), que garantiu a continuidade das cotas. A ADI 7654 utiliza as evidências do relatório do Opará para justificar continuidade dessa importante política pública, ao reconhecer a ineficácia produzida pelas instituições.
A UFBA deve se inspirar na Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul. O prejuízo causado pelas instituições universitárias precisa ser reparado com a verdade. As fake news só demonstram que o racismo ainda continua vencendo. De que lado a UFBA quer estar na história?
Além do tempo, a UFBA e seus representantes e comunidade acadêmica não devem perder de vista o espaço que lhes circunscreve: o estado da Bahia. Fontes e estatísticas oficiais e confiáveis demonstram, sem sombra de dúvida, a proporção de pessoas negras na população baiana. Ações e omissões que dificultem políticas de reparação às populações negras na Bahia são um desrespeito à imensa maioria das pessoas que vivem em solo baiano. Em que “vizinhança” a UFBA acha se encontrar?
Uma defesa genuína do Estado Democrático de Direito pressupõe a verdade, que nós merecemos.
Edmilson Santos dos Santos é professor doutor na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e pesquisador do Opará. E-mail: [email protected]
Aníbal Livramento da Silva Netto é professor doutor na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e pesquisador do Opará. E-mail: [email protected]