A responsabilidade pela anulação de processos da Operação Lava Jato
Durante todo seu trâmite, a Operação Lava Jato sofreu duras críticas pela comunidade jurídica, sobretudo pelos advogados que atuaram diretamente nos processos e testemunharam violações a direitos e ilegalidades na sua condução
No último dia 8 de março, foi proferida decisão monocrática pelo ministro Edson Fachin do Supremo Tribunal Federal, a anular todos os processos da 13ª Vara Federal de Curitiba (PR) movidos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em razão da absoluta incompetência do juízo. No dia seguinte, o ministro Gilmar Mendes pôs em pauta, para continuidade de julgamento, a suspeição do ex-juiz Sergio Moro por parcialidade na condução de ação penal que culminou na condenação de Lula.
A partir desses acontecimentos recentes, conjectura-se estar próximo o fim da Lava Jato. Algumas pessoas, frustradas com a provável ruína dessa operação, especulam nas redes sociais e na mídia de quem seria a responsabilidade pelo desmoronamento desses processos que tramitaram durante anos na justiça brasileira e dos quais sobrevieram condenações por muitos comemoradas.
Como se sabe, a Operação Lava Jato, durante seu avanço, recebeu amplo apoio midiático e popular, comumente identificada como marco nacional da luta contra a corrupção, chegando a ser comparada com a Operação Mãos Limpas, investigação judicial realizada na Itália nos anos 1990.
O ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso, indagado, em 2016, sobre o legado dessa grande operação, afirmou que “produzirá uma transformação cultural importante no Brasil: a valorização dos bons em lugar dos espertos”.
Não obstante, durante todo seu trâmite, a Operação Lava Jato sofreu duras críticas pela comunidade jurídica, sobretudo pelos advogados que atuaram diretamente nos processos e testemunharam violações a direitos e ilegalidades na sua condução. A análise desse contexto não descartou sequer influência no impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, na suspensão dos direitos eleitorais do ex-presidente Lula e na eleição do presidente Jair Bolsonaro.
Observando-se o fenômeno em perspectiva temporal, pode-se afirmar que o potencial efeito positivo dessa grande operação, de mudança cultural, esperado quando deflagrada, não parece ter se concretizado. O escândalo do vazamento de conversas irregulares entre Sergio Moro, Deltan Dellagnol e outros membros da força-tarefa trouxe desconfiança quanto a lisura da operação. Esse fator foi determinante, inclusive, para o declínio da pontuação do Brasil no Índice de Capacidade de Combate à Corrupção (CCC) em 2020, perdendo duas posições em comparação aos demais países da América Latina.
O insucesso das expectativas não tem relação com a eventual decisão judicial de anulação de processos da Operação Lava Jato, pois esta seria apenas a consequência do problema. O que realmente importa são as propaladas ilegalidades supostamente perpetradas pelo Ministério Público, Polícia Federal e Poder Judiciário nas investigações policiais e ações penais.
De fato, não faltou abuso de autoridade, característico de um verdadeiro sistema inquisitorial de justiça: excesso de prisões preventivas; banalização de delação premiada; condução coercitiva descabida; ilegal levantamento de sigilo de depoimentos e de áudios interceptados; desrespeito à inviolabilidade de escritório de advocacia; espetacularização de processos; parcialidade; jurisdição universal, juiz no papel de acusador…
Oportuno lembrar outras grandes operações policiais que tiveram o mesmo destino, como foi o caso da Satiagraha e da Castelo de Areia, anuladas pela tentativa de se obter prova por meios ilícitos e pela falta de motivação razoável para se autorizar meios invasivos de investigação. Os exemplos são deveras preocupantes.
Substancialmente, uma das funções do processo penal é limitar o poder punitivo estatal, por meio das garantias fundamentais, para evitar abusos; para que o Judiciário não seja instrumentalizado para perseguir inimigos ou favorecer aliados políticos. Como afirmou James Goldschmidt, importante jurista alemão, “pode-se dizer que a estrutura do processo penal de uma nação nada mais é do que o termômetro dos elementos corporativos ou autoritários de sua Constituição”¹. E todos sabem que nossa Constituição não padece dessas características.
O ato de desvirtuar a atividade jurisdicional na busca de uma condenação a qualquer custo, seja por motivação pessoal, seja pelo clamor público ou por ambição política, é mais danoso para a sociedade do que o suposto crime que se visava punir. Além disso, consideremos sempre a possibilidade de não ter havido crime algum, haja vista a prevalência da presunção de inocência.
Nesse sentido, o postulado constitucional da presunção de inocência impede que o Estado trate, como se culpado fosse, quem ainda não sofreu condenação penal irrecorrível (art. 5º LVII da Constituição Federal, art. 8.2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e art. 14.2 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos).
A Constituição Federal não pode ser tratada como filigrana. Deve assegurar efetividade aos direitos normativamente proclamados, para não se tornar um mero pedaço de papel, como diz o italiano Luigi Ferrajoli², contendo palavras bonitas rabiscadas sem utilidade prática³.
A decisão de nulidade, em última análise, protege o próprio Estado de Direito contra qualquer insidiosa tentativa de ruptura democrática através da utilização do sistema de justiça como meio de perseguição política ou social.
Ao contrário do que têm sustentado muitas vozes, é sinal de independência e isenção dos magistrados que, não se deixando levar por qualquer pressão externa ou por inclinações pessoais, viabilizam a preservação da ordem democrática, cumprindo sua função de aplicar objetivamente a lei e a Constituição Federal ao anular processos conduzidos de forma ilegal.
O agente estatal que age contra a lei para constituir prova fere os deveres do seu cargo ou função, devendo ser repudiado com a devida reversão de seus atos judiciários e decisórios, coibindo-se qualquer violência institucional, formalizada, na pior das hipóteses, em prisões ou condenações injustas ou ilegítimas. Os magistrados devem agir – e com presteza – para frear qualquer empreitada ilegal em investigações e processos penais.
Nesse contexto, é de suma importância compreender que a responsabilidade por um processo anulado não é do magistrado que decretou a nulidade, mas sim de quem cometeu a ilegalidade processual que foi considerada a causa da anulação, inclusive promotores e magistrados.
É certo que a corrupção sistêmica, no núcleo do exercício do poder público, é um dos principais problemas do Brasil. Por envolver uma relação de confiança pré-estabelecida entre a classe política e o povo, gera intensa reprovação popular, interferindo na solidez do sistema representativo. Os cidadãos passam a desacreditar naqueles que elegeram ou virão a eleger.
Aliás, parece dispensável dizer, mas, convenha-se: criticar os trâmites da Operação Lava Jato não equivale a ser a favor da impunidade. Pelo contrário. As ilegalidades processuais, além de configurarem ameaça à ordem democrática, também prejudicam o combate à criminalidade e particularmente à corrupção. Não adianta combater o crime com crime. A sociedade precisa confiar e sentir segurança na atuação ilibada dos membros do Poder Público para se estabelecer uma cultura honesta no país.
Além disso, as ilegalidades praticadas no processo são, sabidamente, causas de nulidade. São regras bem conhecidas pelos profissionais do Direito. Cometê-las (com exceção dos erros não intencionais) é assumir o alto risco de sacrificar anos gastos em investigações e ações penais, provocando eventualmente a prescrição dos casos, a gerar sensação de impunidade, incentivando a prática de novos crimes.
Ainda que a expectativa de punição seja fundamental para conter a corrupção, jamais o Estado pode agir de forma indecorosa para punir crimes, desrespeitando direitos do acusado, pois isso o tornaria moralmente corrupto.
O bem jurídico tutelado, isto é, o valor que a norma legal pretende proteger, na tipificação dos crimes de corrupção passiva e ativa é a moralidade da Administração Pública. Ora, se o Poder Judiciário, um dos Poderes da República, atropela as garantias fundamentais do devido processo legal, da presunção de inocência, da imparcialidade, da ampla defesa e do contraditório, para alcançar objetivos punitivos, ferirá exatamente a moralidade da sua função pública. E quando essas ilegalidades processuais viram um novo escândalo nas palavras da mídia e alcançam os ouvidos do povo, a moralidade da Administração Pública – o próprio bem jurídico tutelado pela norma que tipifica a atividade que se quis punir – cai por terra.
Assim, ao contrário do que ocorreu na Lava Jato (conforme por ora decidido), o combate à corrupção deve ser, sobretudo, íntegro, cumpridor assíduo da Lei e da Constituição Federal, sem nenhum intuito censurável, como exemplo de retidão do Estado e como estratégia intrínseca à preservação da sua própria credibilidade.
Os ministros do Supremo Tribunal Federal, garantindo direitos pleiteados, afirmam a prevalência do ordenamento jurídico, a primazia da Constituição e a autoridade suprema da Corte.
Nas palavras do ministro Eros Grau, “O intérprete está vinculado pela objetividade do direito. Não a minha ou a sua justiça, porém o direito. Não ao que grita a multidão enfurecida, porretes na mão, mas ao direito”.
Em suma, não se deve esperar que cessem as decisões de anulação, inclusive de processos no âmbito de grandes operações. Não se pode desejar que se faça vista grossa a desvios procedimentais. O que é de esperar é a urgente cessação dos motivos que geram decisões desse gênero, até para que não se perca o foco do que realmente importa para a sociedade: o combate à corrupção.
Fica a grandiosa lição de Celso Antônio Bandeira de Mello. “Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada”.
¹GOLDSCHMIDT, James. Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal. Buenos Aires: EJEA, 1936. Página 67
²FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón – Teoría del garantismo penal. Madri: Trotta, 1995. Página 852.
³Habeas Corpus nº 950094/SP. Relatoria do Ministro Eros Grau. Julgado em 06.11.2008.
Lilian Assumpção Santos é especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduada pela mesma instituição. Advogada Criminalista.