A terceira pilhagem do Congo
As eleições gerais poderiam selar o fim das guerras civis e a reconstituição do Estado congolês. Porém, as riquezas minerais atraem empresas que pressionam por lucros máximos e responsabilidade zeroColette Braeckman
Magros, rostos esbranquiçados pela poeira, os mineiros cantam com voz forte “esta é a terra de nossos ancestrais, seu cobre é nosso”. Vociferando, homens e crianças cercam as delegações que se sucedem no sítio mineiro de Ruashi, próximo a Lubumbashi, na República Democrática do Congo (RDC). Mwambe Kataki, Remy Ilunga e Pierre Kalume, homens outrora empregados pela poderosa Gecamines1e que se tornaram escavadores, garantem, em nome de seus colegas, que não serão desalojados. Eles pretendem barrar a entrada das grandes companhias que, após os anos de guerra, retornam ao Katanga graças às privatizações incentivadas pelo governo de Joseph Kabila. Da mesma forma, no Kivu, antigos trabalhadores de Kamituga ameaçam a companhia canadense Banro de impedir a retomada da produção. Distúrbios inflamam a mina de Kilo Moto, em Ituri. As grandes companhias contratarão apenas um pequeno número de trabalhadores qualificados, e as novas condições de investimentos as desobrigam de todos os encargos sociais. O Estado congolês certamente não terá meios para reaproveitar os trabalhadores que não foram admitidos.
Enquanto aguarda que a Ruashi Mining, companhia sul-africana, instale-se no sítio de Ruashi e o cerque de guardas e de arame farpado, a mina a céu aberto apresenta uma paisagem lunar, crivada de buracos e de crateras. Armados apenas com picaretas, os homens talharam galerias pelas quais penetram as crianças. Uns cavam, outros separam o minério, enfiando-o nos sacos. Um pouco mais longe, semirreboques preparam-se para atingir a fronteira zambiense com seus carregamentos de matéria-prima. Uma parte da heterogenita, minério misto, composto de cobre e cobalto, é tratada localmente por pequenas companhias, que exploram os fornos artesanais. Após uma primeira refinação, o cobalto e o cobre seguirão, sempre de caminhão, para a África do Sul ou para o porto de Dar es Salaam (Tanzânia), onde os esperam os cargueiros chineses…
O prefeito de Lubumbashi, Floribert Kaseba, salienta que, ao contrário do que se passa na capital, Kinshasa, no local não se encontram mendigos ou crianças de rua. Todo mundo trabalha… Com certeza, mas em que condições! A maioria dos 70 mil escavadores do Katanga não ganha US$ 1 por dia… E se os mineiros agrupam-se em sociedades mutualistas, a Emak (Empresa Mineira Artesanal do Katanga) serve principalmente para financiar as despesas de funeral, pois os desabamentos fazem inúmeras vítimas. A exploração mineira representa 74% das exportações da RDC e emprega, informalmente, 950 mil trabalhadores (apenas 35 mil formais).
Privatização “modernizadora”
Para entender os atuais temores dos mineiros congoleses, precisamos lembrar que o Zaire [antigo nome do país] do marechal Joseph Mobutu herdou estruturas coloniais, nas quais as grandes empresas estatais, como a Gecamines ou a Mineradora de Bakwanga (Miba), em Kasai, geravam o essencial das divisas do país. Mas, no Zaire pós-colonial, essas grandes firmas herdaram também uma tradição paternalista. Eram obrigadas a garantir a seus trabalhadores e respectivas famílias alojamento e acesso gratuito aos tratamentos de saúde, vantagens que reforçavam o sentimento de ligação com a empresa. A privatização veio revolucionar tudo: as grandes empresas estatais foram desmanteladas e suas sucessoras desejam fazer tábua rasa do passado e de suas obrigações.
O que foi chamado de “carnaval mineiro” do Congo desenvolveu-se em várias etapas, e a última não será, talvez, a menos cruel. Nos anos 1990, quase no final do reinado de Joseph Mobutu, o primeiro-ministro Kengo wa Dondo, empenhado em se conformar às determinações do Banco Mundial, começara a privatizar, mais particularmente, as empresas mineiras. O objetivo era recuperar os cofres do Estado e permitir que ele pagasse sua dívida. Em maio de 1995, quando teve início o desmantelamento da Gecamines e a privatização de outras companhias estatais, grandes empresas mineradoras chegaram: as canadenses Lundin, Banro, Mindev; a belgo-canadense Barrick Gold; a australiana Anvil Mining; as sul-africanas Genscor e Iscor. Entretanto, como o país estava instável, os “grandes” preferiram manter-se na retaguarda: desde que a guerra se iniciou, em 1996 (ocasionando, sete meses depois, a queda do regime Mobutu), os “pequenos” ocuparam o terreno, negociando diretamente com os movimentos rebeldes e aguardando a possibilidade de revender seus títulos. Foi assim que Laurent Désiré Kabila obteve da American Mineral Fields (da empresa australiana Russel Ressources e da zimbabuense Ridgepointe Overseas) os recursos para financiar sua guerra e depois relançar a máquina político-administrativa. Ofereceu em troca acordos relativos aos três sítios da Gecamines, às jazidas mineiras de Mongwalu,2no distrito de Ituri, e ao comércio de diamantes em Kisangani.
A euforia durou pouco: no dia seguinte de sua chegada ao poder, em maio de 1997, Kabila não se contentou em se distanciar de seus aliados ugandenses e ruandeses, que retiravam diretamente sua parte. Ele expressou a vontade de questionar os contratos mineiros, desejando que, como no passado, os recém-chegados se isentassem dos encargos sociais relativos a seus trabalhadores. Somando-se a considerações sobre segurança, essa atitude, tida como ingrata e radical, está na origem da “segunda guerra”, iniciada em 1998. Com a aprovação dos ocidentais, Ruanda e Uganda tentam expulsar seu antigo aliado. Enfrentam não somente a resistência da população, mas, sobretudo, a intervenção de Angola e do Zimbábue, cujos exércitos defendem Kabila.
O território congolês acabou dividido em quatro territórios autônomos, administrados pelo governo central e por três grupos rebeldes, sendo os mais importantes a Reunião Congolesa pela Democracia (RCD-Goma), apoiada por Ruanda, e o Movimento pela Libertação do Congo (MLC), criado com o apoio do exército ugandense. O governo central e os rebeldes devem financiar suas operações militares e retribuir as intervenções dos países aliados. As quatro regiões, agora separadas, transformaram-se então em self-services nos quais se cruzam redes mafiosas de todas as origens, que exploram o ouro, o cobre, o coltan [combinação de columbita e tantalita], a madeira e o diamante.3
Da pirataria à exploração “civilizada”
Esses predadores contentam-se em pagar impostos aos senhores da guerra, que detêm o poder de fato, e, se necessário, os abastecem de armas. Escândalo humanitário (3,5 milhões de vítimas civis) e político,4esse drama, que inicialmente não interessa a muita gente, é também um desperdício econômico. A partir do início dos anos 2000, embora a demanda de columbita-tantalita (que entra na composição dos telefones celulares) tenha começado a enfraquecer e o rastreamento (que garante a autenticidade) do diamante tenha passado pouco a pouco a se impor, aumenta a demanda mundial de cobre, cobalto e até mesmo urânio, cujos preços são estimulados pelo crescimento chinês e pelas necessidades da Índia. A exploração desses minerais exige investimentos pesados e a longo prazo, o que supõe um ambiente político relativamente estável. Em suma, a época da pirataria terminou. A indústria da mineração sul-africana (composta de muitos novos capitalistas negros) considera que a África Central, particularmente o cinturão de cobre do Katanga, é sua área de expansão natural.
As pressões internacionais acentuam-se sobre os beligerantes congoleses e seus respectivos aliados, que se reuniram na cidade sul-africana de Sun City e assinaram, em 2003, acordos prevendo a saída dos exércitos estrangeiros, a reunificação do país e um período de transição de dois anos, prorrogado por mais três, para encerrar-se em 30 de junho de 2006. Para a “comunidade internacional” (ou seja, os grandes países ocidentais mais a África do Sul), muito presente, trata-se sobretudo de legitimar e estabilizar o poder vigente, a fim de permitir a retomada da economia e a reconstrução do país. Para a população congolesa, que tem diante de si a proposta de realização das primeiras eleições realmente livres depois de 46 anos, trata-se de sair de um sistema de cooptação das elites…
Embora as eleições legislativas e o primeiro turno da eleição presidencial sejam anunciados para meados do verão (no hemisfério Sul) de 2006, o balanço da transação começa a ser feito. Inúmeros relatórios elaborados por associações internacionais sublinham até que ponto a pilhagem de recursos continuou após o fim oficial das hostilidades em 2003.5Essa constatação, apesar de pertinente, negligencia uma evidência: a despeito das afirmações de princípio, os acordos de Sun City não tinham como objetivo principal democratizar a gestão de recursos, mas sim acabar com a guerra, incitar as tropas estrangeiras a deixar o território e permitir a substituição dos circuitos mafiosos, que operavam a curto prazo, por operadores econômicos mais estáveis, mas não necessariamente menos ávidos.
Estranha democracia em construção
Como a lógica política não se confunde com a moral, o acordo de Sun City concedeu aos senhores da guerra um quinhão maior que o oferecido à sociedade civil e à antiga classe política. Desprezada pela população, que via nela um prêmio à impunidade, a fórmula “um mais quatro” foi adotada: o presidente Joseph Kabila, que sucedeu a seu pai após o assassinato deste em janeiro de 2001, aceitou dividir o poder com quatro vice-presidentes, provenientes de facções rebeldes, da oposição política e da sociedade civil. Foi assim que vimos o vice-presidente Jean-Pierre Bemba, um ex-homem de negócios acusado pelos especialistas das Nações Unidas de ter pilhado os bancos e as coletas de café da região equatorial, tornar-se presidente da Comissão de Economia e Finanças. Outro ex-rebelde, Azarias Ruberwa, cujas tropas aliadas ao exército ruandês cometeram, no Leste do país, massacres em grande escala, viu-se responsável pelo setor da Defesa e da Segurança…
A reunificação rápida do Congo demonstra até que ponto a guerra foi impulsionada pelo exterior e até que ponto o sentimento de identidade nacional se tornou uma realidade. Entretanto, o sucesso poderia ser apenas superficial. Todos mantiveram suas melhores forças na reserva. As tropas do novo exército nacional são pouco ou mal pagas (pois os soldos são desviados) e vivem muitas vezes à custa da população. A fim de conter eventuais excessos, as Nações Unidas solicitaram e posteriormente autorizaram o reforço de uma força europeia de 1.250 homens, que deveria auxiliar os 17,5 mil capacetes azuis já convocados.
Após a reunificação, o Estado restaurado é encarregado de garantir um mínimo de segurança física e jurídica para os investidores no setor mineiro. Mas esse Estado, saído de uma guerra e permeado de contradições, também está muito enfraquecido. Durante a transição, não tem força para recusar as cláusulas leoninas impostas pelas mineradoras. A liquidação dos recursos naturais não se encerrou, portanto, com o fim da guerra − apenas mudou de natureza. Os membros (não eleitos) da Assembleia Nacional foram intimados a redigir um Código Mineiro e um Código Florestal, cujos termos muito liberais foram ditados pelo Banco Mundial. Os textos oferecem muitas vantagens aos interesses privados, ao mesmo tempo que reduzem ao máximo suas obrigações. Foi assim, por exemplo, que o Banco Mundial comandou a reestruturação da Gecamines. Antes que a empresa fosse “vendida por compartimentos”, os 10,5 mil trabalhadores foram demitidos e receberam indenizações quer variaram entre US$ 1,9 e 30 mil. Mas essas quantias foram destinadas ao reembolso das dívidas, ou absorvidas pelas despesas a curto prazo. Esses trabalhadores, agora privados de qualquer proteção da seguridade social, estão no setor informal. As firmas procuram substituí-los por máquinas, contratando apenas um mínimo de trabalhadores qualificados.
O Estado congolês concedeu grandes isenções fiscais a várias sociedades mistas, por períodos de quinze a trinta anos. A soma dos impostos pagos pela maioria não ultrapassou, em 2004, os US$ 400 mil… No setor de diamantes, a situação não é melhor. A Miba foi despojada de 45% de seus ativos, em benefício da Sengamines, uma empresa mista do Congo-Zimbábue. Além disso, se a aprovação da nova Constituição, em novembro de 2005, por 85% dos eleitores é uma proeza, num país privado de estradas e meios de comunicação, ela representa também um sucesso para todos os que pretendem limitar as prerrogativas do Estado. Divide o país em 26 províncias e distribui os recursos na proporção de 60% para as autoridades de Kinshasa e de 40% para as autoridades provinciais. Visa à descentralização dos recursos, mas a autonomia concedida aos governos provinciais pode também aumentar a corrupção em nível local. O novo poder, a partir de então legitimado e fortalecido pelo sufrágio popular, terá coragem de se libertar dos mais duvidosos elementos de seu círculo, dos conselhos nada desinteressados da “comunidade internacional”? Terá ele a audácia de questionar os acordos mineiros, a fim de que o povo congolês, depois de ter reencontrado sua voz no plano político, possa enfim – pela primeira vez em sua história – assumir o controle de suas riquezas?
Colette Braeckman é jornalista, Le Soir (Bruxelas).