AmarElo - É tudo Pra ontem - sem esquecer o que é o Brasil de hoje!

Documentário

AmarElo – É tudo Pra ontem – sem esquecer o que é o Brasil de hoje!

por Weber Lopes Góes
21 de dezembro de 2020
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Este artigo deseja destacar, por meio de rápidas pinceladas, qual é a contribuição que AmarElo – É Tudo Pra Ontem pode nos deixar para enriquecer e fortalecer as mobilizações contra o racismo à brasileira

No dia 8 de dezembro do ano corrente estreou na Netflix o filme do rapper Emicida, intitulado AmarElo – É tudo Pra Ontem. De fato, a adesão pela produção em tela tem despertado tamanhas repercussões, no seio do próprio movimento hip-hop e por aqueles que têm uma certa simpatia pelo referido movimento. Alguns diriam que o sucesso do documentário tem a ver com o respeito que o rapper ganhou por parte de uma classe média “esclarecida”, que não compactua com esta forma de sociedade ressecada na qual estamos inseridos; outros podem dizer que apenas serviu para “arrancar lágrimas” da classe média branca ressentida. Outros dirão que o sucesso do AmarElo é fruto da relação do Emicida com os artistas e personalidades de gêneros musicais, especialmente, da MPB. Por fim, o documentário pode até aflorar lastimações no sentido de afirmar que o agrado dessa produção vem ocorrendo porque o rapper teria uma forma de atuação no interior do chamado “mercado” empreendedor da cena do hip-hop contemporâneo. Ação esta que propiciou o rapper a estar onde chegou.

Dispenso entrar nessa seara, pois, não me ocuparei em apresentar a ficha técnica e outros fatores que despertariam o estímulo para o leitor correr para conferir a qualidade ou não do documentário. Esta função, os meios de comunicação convencionais já estão cumprindo. Além disso, não é preciso desdobrar o feitio, as músicas e o local onde é o centro do documentário – Theatro Municipal de São Paulo – para avaliar se a produção é digna de apreciação, até porque, não se pretende contribuir para desgastar, ainda mais, uma categoria tão importante da arte (a Estética). Porém, o que se deseja destacar, por meio de rápidas pinceladas, seria qual a contribuição que o AmarElo – É Tudo Pra Ontem pode nos deixar para enriquecer e fortalecer as mobilizações contra o racismo à brasileira.

 

Luta negra

O primeiro aspecto que se pode extrair do documentário é a sua contribuição para o entendimento daquilo que Clóvis Moura (1925-2003) denominou de “a luta negra” no Brasil. Ou seja, os africanos desde quando pisaram em terras brasileiras, capturados e trazidos compulsoriamente, a fim de alavancar o modo de produção capitalista, construíram uma gama de lutas e estratégias de combate ao escravismo. O documentário AmarElo demonstra que os negros e as negras não eram passivos, mas, protagonistas da sua história, ao consolidar mecanismos para assegurar a sua emancipação, como por exemplo, os Quilombos, as Irmandades Pretas – mencionada no documentário; além do mais, os africanos no Brasil encamparam insurreições e guerrilhas, ao ponto de provocar o “medo branco” das classes dominantes, estas que temiam (e ainda temem) uma “haitianização” do país.

O documentário traz à lume as várias organizações negras e resistências criadas pelos descendentes de africanos escravizados no pós-abolição, tais como os Clubes, as Associações Negras, as religiões de matriz africana e registra o papel da Frente Negra Brasileira contra o racismo no país. Na mesma direção, explicita a importância do samba enquanto um instrumento de resistência, ao citar Candeia, Ivone Lara, Leci Brandão e tantas outras personalidades que, dentro da sua realidade, denunciaram e combateram as políticas racistas encampadas pelas classes dominantes.

Para aqueles que não estão familiarizados com o lastro das lutas negras, o AmarElo – É Tudo Pra Ontem destaca a biografia e o protagonismo do renomado intelectual e ativista do movimento negro Abdias do Nascimento (1914-2011), não só por ele ser o responsável em difundir o conceito de “Negritute” para o Brasil – termo cunhado pelo poeta e ativista martinicano – Aimmé Cesare (1913-2008), mas também, em virtude de ter criado o Teatro Experimental do Negro (TEN), com a finalidade de inserir os favelados, mulheres, negros e negras, em suma, a classe trabalhadora em geral para o universo do teatro brasileiro.

O documentário também recupera a criação, do Movimento Negro Contra a Discriminação Racial (MUCDR), em 1978, nas escadarias do Theatro Munidipal de São Paulo e que depois, ao incorporar o nome “Negro” resultou no MNU – Movimento Negro Unificado. O rapper não titubeou em explicitar ao público, no momento da sua performance, que lá estavam algumas referências e responsáveis pela fundação do MNU – Milton Barbosa, José Adão de Oliveira, Wilson Roberto Levy e Regina Lucia Santos, que se inseriu na referida organização em 1996.

Personalidades negras

Outras pessoas importantes que tiveram um papel fundamental pela eliminação do racismo e das desigualdades sociais no Brasil são lembradas no documentário, a exemplo da militante do MNU e filósofa Lélia Gonzalez (1935-1994), que nos legou importantes contribuições para repensar as lutas das mulheres a partir do feminismo negro, propiciando o melhor entendimento do africanos na diáspora e produziu qualificadas pesquisas com a perspectiva de comprovar a relação entre racismo e desigualdade de classes.  Por fim, o rapper da zona norte concatena o papel do movimento hip-hop com a luta negra, por meio das rimas, intervenções nas favelas, o combate ao racismo e a violência do Estado brasileiro.

Muito embora o subtítulo do documentário reivindique resultados para “ontem”, se faz necessário não esquecer o que é o Brasil de hoje! Peguemos alguns elementos a fim de embasar a nossa argumentação.

Quem se lembra do projeto do genocídio do negro brasileiro, tema caro para o Brasil e que foi denunciado pela primeira vez pelo então citado no documentário, Abdias do Nascimento? Ainda, é de bom tom não esquecer que o fundador da cadeira de medicina legal Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), defendia a tese, segundo a qual, o Brasil deveria construir um Código Penal específico para a população negra, pois, segundo a sua crença, os negros e as negras, considerando o processo do desenvolvimento civilizatório, se estagnaram na infância da humanidade, assim, seria necessário criminalizá-los, cabendo o Estado criar condições para tal.

Projeto de embraquecimento da população

Não é por acaso que as elites brasileiras apostaram na dizimação dos descendentes de africanos no Brasil, obsessão esta que em Londres, no ano de 1911, foi defendida pelo médico Batista de Lacerda (1846-1915), no Congresso Universal das Raças, ao calcular que em cem anos os negros seriam extintos do país através da mistura de “raças”.

Visitemos as ideias eugênicas, disseminadas pelos médicos e intelectuais que se posicionavam em favor da eliminação dos descendentes de africanos escravizados a partir de políticas baseadas na eugenia, como por exemplo, Oliveira Vianna (1883-1951), Azevedo Amaral (1881-1942) e Renato Kehl (1889-1974). Todos participaram, de alguma maneira, do governo do então presidente Getúlio Vargas (1882-1954), este que garantiu na Constituição Federal de 1934 a inserção da eugenia na parte dedicada à educação pública.

Neste diapasão, o documentário do Emicida, não é para arrancar somente aplausos ou para realizar aquilo que o cantor e compositor Tom Zé trabalhou muito bem em sua música intitulada “O Sândalo”, o qual faz a seguinte menção:

Faça suas orações uma vez por dia

e depois mande a consciência

junto com os lençóis

Pra lavanderia.

 

Isto não significa propor que se deve isentar da sensibilidade e de refletir sobre os dramas humanos, considerando que é função da arte colocar o indivíduo em contato com o gênero humano. Assim, o documentário em questão, também, pode ser utilizado para que seja apontado quais os projetos genocidas adotados pelo estado brasileiro.

A este respeito, basta recordar o papel da Fundação Rockefeller ao financiar as políticas de esterilização de mulheres negras e pobres, na década de 70 do século passado, prática esta que foi denunciada no Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, em 1993, destinada a examinar a incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil. O referido relatório constatou que no país havia, em 1986, 5.900.238 mulheres assoladas para evitar filhos, correspondendo um percentual de 15,8% das mulheres brasileiras de 15 a 54 anos. A CPMI constatou que tais medidas colocaram o Brasil recordista em esterilizar mulheres, a partir de meados da década de 1960 até os anos de 1980, em comparação com os países desenvolvidos ou em desenvolvimento.

O rapper Emicida estimula, por meio do documentário a cavar, ainda mais, a história do Brasil, pois é preciso lembrar que após a instituição do golpe de 1964, sobretudo, por meio do Ato Institucional Nº 5, aqueles que se opuseram a este regime eram presos, torturados, exilados e assassinados. Neste mesmo contexto, conforme aponta o AmarElo, os integrantes do movimento negro eram associados ao comunismo e empurrados para as cadeias, criminalizados, vítimas do esquadrão da morte e outras atrocidades promovidas pelo estado brasileiro.

Cena do show no Theatro Municipal de São Paulo do documentário AmarElo – É pra ontem (Crédito: Divulgação)

 

Elites e o esvaziamento do conceito de racismo estrutural

Neste caso, se faz necessário lembrar que o AmarElo do Emicida pode ser um meio de denunciar o “Pato Amarelo” da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Sim, esta instituição que atualmente, na pessoa de Paulo Skaff, tem posado e se orgulhado em dizer que é contrário ao racismo, mas já é sabido que foi a Fiesp financiou os setores alinhavados com o projeto que tirou João Goulart da presidência, em nome de uma gestão entreguista de uma burguesia azeda e subordinada ao capital norte-americano. Poder-se-ia indicar outras ações da Fiesp, instituição que propiciou o alargamento das desigualdades sociais e do racismo à brasileira. Contudo, nunca é demais mencionar qual foi o seu papel concernente ao financiamento dos centros de repressão e tortura no Brasil, conhecido como Operação Bandeirantes (Oban).

Desse modo, o documentário que tem provocado inúmeras controvérsias por parte daqueles que o apreciaram – gostando ou não – chega a público num cenário onde o país vivencia um contexto de pandemia, responsável por matar até agora mais de 180 mil brasileiras e brasileiros, devido a gestão do governo federal, tudo em nome chamada “economia”; num momento em que no Brasil, nos últimos três anos, a polícia matou mais de 2.215 mil crianças e adolescentes, sendo que 75% desses óbitos são de crianças negras. Soma-se a isto o assassinato de João Alberto no Carrefour, para ficarmos apenas nesta ação atroz.

Tais eventos têm despertado tamanhas discussões acerca do conceito “racismo estrutural” no Brasil. Inclusive, Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, se comprometeu a despender energias para superá-lo, embora tenha celebrado a aprovação da reforma trabalhista, medida esta que aprofundou a exploração, precarização e a extorsão de direitos dos trabalhadores, além de alargar o racismo estrutural.

O mesmo pode ser direcionado ao prefeito da capital de São Paulo, Bruno Covas, que na sua campanha para reeleição garantiu combater o racismo estrutural, embora o seu antecessor tenha acabado com as Secretarias de Promoção da Igualdade Racial e de Política para Mulheres e, ao assumir o governo municipal, Covas sancionou a reforma da previdência dos servidores municipais, fechou os serviços de assistência social, diminuiu o orçamento desta área, além de  encampar ações truculentas contra as populações que vivem na região denominada de cracolândia.

Assim, essas figuras que hoje vem utilizando o conceito de racismo estrutural, deveriam “lavar a boca”, pois o documentário AmarElo – É tudo Pra Ontem, está combatendo justamente estes mentecaptos, que atuam nas estrutura de poder para contemplar os interesses das classes burguesas brasileiras, esta que, mesmo reconhecendo a existência do “racismo estrutural”, não podem abrir mão de seus privilégios de classes.

Nesta direção, tal alegação pode ser encaminhada aos meios de comunicação, especialmente à Rede Globo de Televisão, que na pessoa do Roberto Marinho apoiou o Golpe Militar de 1964 e, por meio de suas telenovelas contribuiu para robustecer o racismo estrutural, basta lembrar o clássico documentário “A negação do Brasil” do cineasta Joel Zito Araújo. Não nos esqueçamos que o famoso livro Não Somos Racistas (2006), do jornalista Ali Kamel, atual diretor geral de jornalismo desta mesma emissora, faz apologia contra as políticas de ações afirmativas e defendeu a tese da não existência do racismo no Brasil, além de argumentar que as políticas de cotas nas universidades criaria uma sociedade “birracial”.

Por fim, o documentário em mira deve engendrar meios de conclamar aqueles que estão descontentes com essa sociedade desigual, racista, cuja prática de criminalizar pobres se encontra no gene da formação social brasileira. Logo, o AmarElo pode despertar ações de combate a estas mazelas, pois a luta de hoje também é a luta contra ontem e, para tanto, é necessário não esquecer o Brasil de hoje.

 

Weber Lopes Góes é pesquisador do Centro de Estudos Periféricos (CEP) e doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC).



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