Arte & reconhecimento das identidades latino-americanas
Urge a necessidade de constituir uma unidade sociocultural consciente de interesses comuns e coletivos desejantes de emancipação
A América Latina é uma unidade histórica, territorial, política e social brutal e intencionalmente fragmentada segundo interesses geopolíticos hegemônicos do norte global. Ao observar esse passado colonial, no qual foram cunhadas e conferidas identidades sociais limitantes a indivíduos e coletivos pelos colonizadores europeus – e, posteriormente, euro-estadunidenses –, tais estigmas persistem marcando as gerações posteriores e contemporâneas, afastando-as de uma união potencialmente criativa. Assim, urge a necessidade de constituir uma unidade sociocultural consciente de interesses comuns e coletivos desejantes de emancipação. Sabe-se da existência político-econômica da América Latina, porém ela se afasta de uma convergência cultural identitária. Logo, procuramos contribuir para a continuidade da luta popular e o debate na esfera pública, alcançando diversos grupos, de diversas idades e classes sociais, esperançando que se engajem em sua comunidade cotidiana – reconhecendo sua capacidade de agência no micro, para impactar e criar realidades macrossociais. Tentamos costurar conceitos que facilitem esse reconhecimento identitário por meio das veias abertas da arte e da cultura, almejando ostentar uma história própria, independente e rica que influenciará criações futuras.[1]

Ao pensar em identidade, podemos mobilizar a ideia de identidade nacional e dessa delimitação se desprende que há uma diferença entre o que é exterior à nação e internamente se busca uma unidade por meio da identificação. Pensando, portanto, no que delimita nação e em como se constitui sua identidade, o sociólogo Renato Ortiz[2] pontua que “a identidade nacional está profundamente ligada a uma reinterpretação do popular pelos grupos sociais e à própria construção do Estado brasileiro” (2001, p. 8).
Nesse sentido, dois pontos são cruciais, as muitas expressões de grupos populares e as construções feitas a partir delas. O primeiro ponto nos atenta para os inúmeros processos de reatualização e revivificação que se constroem nos ritos. O ato de manter uma tradição consiste em integrar valores e transmitir conhecimentos de geração em geração, o que leva a reprodução de crenças e práticas ancestrais, possibilitando a encarnação de uma memória coletiva que molda ações futuras dentro de um grupo. É o caso, por exemplo, dos orixás que associados, cada um, a uma parte do universo, possuem gostos e tendências específicas e, ao acompanhar e repetir esses atributos, o neófito[3] é influenciado no seu cotidiano como homem social. É por isso que “a memória coletiva só pode existir enquanto vivência, isto é, enquanto prática que se manifesta no cotidiano das pessoas.” (ibid., p. 133).
Para pensarmos sobre o segundo ponto, que pretende expor a identidade como construção, é importante notar que cada expressão cultural, como aquela previamente exemplificada aqui, é particular, possui suas especificidades, simbologias e importâncias em seu grupo. Já a identidade, que possui como característica a unidade, tem em sua construção a integração de expressões culturais, particulares e diversas, em um todo mais amplo e geral de conhecimento. E essa articulação de uma totalidade só é possível por meio de mediadores que podem reinterpretar simbolicamente esses conhecimentos fragmentados em um todo coerente para um grupo, formulando um conceito, um entendimento.
Portanto, se “A cultura é sempre passível de interpretação, mas em última instância são os interesses que definem os grupos sociais que decidem sobre o sentido da reelaboração simbólica desta ou daquela manifestação” e “Os intelectuais têm neste processo um papel relevante, pois são eles os artífices deste jogo de construção simbólica” (ibid., p. 142), o Estado, inteirado do poder dos artífices, entra nesse jogo político ao tentar construir uma identidade nacional, à sua maneira.
Dois exemplos práticos sobre a ideia de identidade como construção são o da indústria do turismo que tenta vender uma brasilidade forjada, que se sustenta em uma identidade brasileira distorcida e rasa. E também os movimentos sociais que não são as expressões populares “puras”, mas uma seleção de características e pontos para a organização de manifestações políticas em busca de direitos.
Podemos pensar, então, que “não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de identidades, construídas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos históricos” (ibid., p. 8), porém na identificação e construção de uma identidade, pontos em comum se defrontam e forças se unem para um propósito maior.
É sempre oportuno recuperar que apesar das diferenças entre os sujeitos que constroem o cotidiano – nós – e das múltiplas partes que compõem nossa identidade descentrada (Hall, 2022), pode-se encontrar pontos de convergência. Para isso, gostaríamos de destacar três pontos que estão conectados entre si e também com a contemporaneidade: a) formação de Estados-nações; b) o sentido da colonização; e c) racialização. Na modernidade, as culturas nacionais constituem uma das principais fontes de nossa identidade cultural. Isto é, as identidades nacionais não nascem conosco, mas são “formadas e transformadas no interior da representação” (ibid., p. 30), pois é algo que produz sentidos por um sistema de representação cultural que pode gerar um sentimento de reconhecimento, um discurso que constrói sentidos que organizam nossas ações e a concepção que temos de nós (idem).
Costurando os eixos, sobre o sentido da colonização (Prado Jr., 2011), deve ser questionado: o que a América Latina era antes de se tornar independente e, depois, se inserir na periferia do capitalismo global? Éramos colônias, não metrópole. Segundo o geógrafo brasileiro, a colonização tomou o aspecto de uma empresa comercial destinada a explorar os recursos naturais em proveito do comércio europeu, conferindo uma marca – um estigma – que explicaria os desenvolvimentos sociais dos trópicos americanos. Claro que muita coisa mudou ao longo do tempo, mas por diversas razões envolvendo as burguesias nacionais e internacionais, frações desse estigma permanecem desde a colônia até os dias atuais.
Sobre a racialização,[4] compreende-se que novas relações sociais estabelecidas pelo processo de colonização também criaram novas categorias de identidade: indígenas, negros e mestiços, além de redefinir outras, o branco. As novas categorias racializadas foram associadas a determinados papéis e lugares na nova estrutura econômica global, fazendo da América Latina [não Europa] e da Europa as primeiras identidades propriamente modernas. Para subverter tais consequências, utilizaremos a colonialidade do poder,[5] conceito crítico que se inicia com uma subversão epistêmica do poder, o que Quijano chamou de “giro descolonial”, que é a inversão da posição de sujeito no plano histórico, fazendo uma releitura do passado ao projetar uma sociedade democrática. A inversão proposta se dá na união desses eixos pela vertente artístico-cultural, evidenciando a disparidade de poder e dominação na formação desses dois continentes, também sendo em razão da violação e exploração de recursos latino-americanos que a própria Europa conseguiu se “desenvolver”, acumular capital e aplicar em revoluções industriais, intelectuais, artísticas e políticas.
Sob a ótica artístico-cultural, é crucial refletir que a arte sempre foi reprodutível, para servir desde ao propósito de difundir preceitos, como os monges copistas, até para a venda de indulgências. Tecnicamente, a reprodução passa a ser possível com a xilogravura e um grande salto nessa busca pela captura e registro de algo/algum momento foi a fotografia; ela tornou possível a reprodução de uma obra em um lugar distante de onde foi produzida, desse modo a arte ocupa lugares inimagináveis, rompendo com o espaço físico de um museu e sendo exibida em um celular do outro lado do mundo, por exemplo. Porém, ao ser reproduzida repetidamente, uma obra corre o risco de perder sua autenticidade, de ter o contexto em que foi criada, suas transformações físicas e simbólicas esquecidas e embaralhadas nesses novos contextos em que se insere. O “aqui e a agora” originais, e de certa forma sua essência, sua aura, se perdem, dando lugar a atualizações a cada nova reprodução e, assim, a novas possibilidades de construções.
Esse embaralhamento de realidades, vivências e significados traz consigo um potencial de transformação que é explorado na revolução da experiência do sensível. O principal ponto dela é, em vez de confirmar preconceitos, definições e limites criados e mantidos por algumas instituições, unir e embaralhar os espaços, as identidades e as relações para confeccionar um sensível comum que, paradoxalmente, é heterogêneo. Ao construir algo novo, sem reforçar pontos segregadores, é possível “promover deslocamentos, inventar novos problemas, construir entre os sujeitos implicações que apontem para outros mundos possíveis, […] novas formas de (con)viver, formas mais abertas, artísticas. O sensível é a matéria na qual opera a subjetividade” (Rocha, 2008, p. 100).
Assim, o corpo -político- de um trabalhador, que teve seu potencial criador subtraído, pode voltar a criar e ter sua receptividade sensível ativada novamente. É a emancipação de um corpo que foi limitado a servir, em repetição, para um único propósito de produção. Desse modo, se desperta corpos e mentes condicionados e adormecidos, por meio da partilha do sensível, embaralhando realidades, escovando a história a contrapelo, superando fronteiras e disparidades nacionais e continentais e, finalmente, criando o novo.
Destarte, estamos nos situando em macro processos sociais transversais (grande recorte histórico-geográfico), além de tocarmos em arte, identidade e reconhecimento, culminando na atualidade. Ao falar de reconhecimento falamos também de um processo que ocorre por meio da comunicação e tal feito pode acontecer, do micro ao macro, por: a) dedicação emotiva (amor, amizade, autoconfiança etc.); b) respeito cognitivo (moral, direitos etc.); e c) estima social (valores, solidariedades etc.). Na contramão, temos o reconhecimento recusado, logo, violência. Isto é: a) desrespeito sobre a integridade corporal de uma pessoa (tanto física como emocional, tortura, humilhação etc.); b) desrespeito aos direitos de uma pessoa (negação de status de igualdade individual ou social); e c) as ofensas e degradações a formas de vida individuais ou coletivas (criação de hierarquias que negam valores legítimos às capacidades). Em suma, as três formas de desrespeito apresentadas se sintetizam em “morte psíquica”, “morte social” e “vexação” (Honneth, 2009, p. 218).
Sabendo da dificuldade de unir tantos aspectos identitários, pautas separadas são mais radicais quando juntas, lembremos a importância da interseccionalidade. Assim, a cultura pode se mostrar o meio [medium] pelo qual a mudança pode se iniciar, uma vez que estamos integrados em Estados-nações que compartilham muitos aspectos, mesmo nossas diferenças, afinal, identidade e reconhecimento não é sobre singularidade, mas pluralidade.
Dessa forma, passando brevemente sobre a criação de reconhecimento pela consciência possível – “equilibração” na teoria sociológica – de uma população, precisamos saber não apenas o que pensa determinado grupo, mas quais são as mudanças possíveis que podem acontecer na sua consciência, sem que ele perca sua estrutura essencial. Acompanhando Goldmann (1972), toda realização humana se apresenta como um esforço para equilibração provisória entre o sujeito e o mundo ambiente, transformando ambos e sendo continuado por outro processo subsequente. Assim, devemos advogar na criação de consciência e identidade possíveis decoloniais e pautadas na subversão epistêmica latino-americana. O que buscamos dizer é que as reações das pessoas oprimidas para gerar um processo identitário próprio entre os seus sem a interferência externa e mesmo para a integração na ordem legítima pode se tornar o impulso motivacional de uma luta por reconhecimento, se tornando resistência política, social, etc. Ou seja, podemos criar e receber expressões artísticas, incorporar em nosso repertório e modificar, dentro das condições de latino-americanos, visando a mobilização social, a integração cultural, gerando reconhecimento para aqueles com quem compartilhamos identidades e quebrando o ciclo de violência e de não reconhecimento para aqueles que nos colocam nessa situação. Subvertendo uma história que acumula dores e estigmas em orgulho e potência criativa.
Enfim, “a causa nacional latino-americana é, antes de tudo, uma causa social: para que a América Latina possa nascer de novo, será preciso de rebelião e de mudança. Há quem acredite que o destino descansa nos joelhos dos deuses, mas a verdade é que trabalha, como um desafio candente, sobre as consciências dos homens”[6] (Galeano, 2022, p. 367).
Júlia Ferraz é uma mulher latino-americana. Atualmente se dedica ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É musicista e também influi na Cia de Teatro Contemporâneo (CTC) como atriz profissional.
Maurício Brugnaro Júnior é latino-americano, graduado em Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp). Membro do Laboratório de Pensamento Político (PEPOL/Unicamp) e pesquisador-associado do Núcleo Práxis de pesquisa, educação popular e política da Universidade de São Paulo (USP).
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre, RS: L&PM, 2019.
GALEANO, Eduardo H. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre, RS: L&PM, 2022.
GOLDMANN, Lucien. A criação cultural na sociedade moderna. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 12ª ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2022.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2009.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira identidade nacional. 1ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1 jan. 2001.
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latino Americano de Ciencias Sociales, 2005.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: Estética e política. 2ª ed. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 2019.
ROCHA, T. G. da.; KASTRUP, V.. Partilha do sensível na comunidade: interseções entre psicologia e teatro. Estudos de Psicologia (Natal), v. 13, n. 2, p. 97–105, maio 2008.
[1] Este escrito é derivado da palestra Arte & reconhecimento das identidades latino-americanas, proferida pelos autores no evento 4º Outubro da Inclusão, no Colégio Técnico de Limeira (COTIL/Unicamp), em outubro de 2023. Programação disponível em: https://www.cotil.unicamp.br/outubro_inclusao/.
[2] Renato Ortiz possui graduação em Sociologie – Universite de Paris VIII (1972), mestrado em Sociologia- École des Hautes Études en Sciences Sociales (1972) e doutorado em Sociologia/Antropologia- École des Hautes Études en Sciences Sociales (1975). Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de Campinas.
[3] Designa aquele indivíduo que recebeu batismo ou iniciou em um grupo religioso.
[4] Deixa-se, de antemão, uma coisa exposta, como: raça é uma categoria – discursiva – social e não biológica. Isto é, ela é uma categoria organizadora de sistemas de representação que atribui marcas simbólicas baseadas em cor da pele, textura do cabelo, características físicas a fim de diferenciar e hierarquizar um grupo de outro. Embora seja uma categoria não científica, ela persiste em consequências sociais muito reais. A ideia de raça “não tem história conhecida antes da América” (Quijano, 2005, p. 117).
[5] Que é um conceito que constitui a arquitetura analítica por meio de caráteres epistêmico/teórico/ético/político.
[6] Leia-se “sobre as consciências dos seres humanos”.