As igrejas evangélicas a caminho de Brasília
Mas será que Marina é próxima demais dos evangélicos? Na verdade, os principais candidatos – a começar por Dilma Rousseff – montaram “comitês evangélicos” para tentar seduzir esses milhões de vozes que parecem em perpétuo crescimentoLamia Oualalou
“Se Marina não se posicionar até segunda[-feira], na terça será a mais dura e contundente fala que já dei até hoje sobre um candidato a presidente.” A mensagem, postada no Twitter pelo pastor Silas Malafaia no sábado, dia 30 de agosto, tornou-se um dos principais episódios da história política brasileira recente. Na véspera, Marina Silva, caída de paraquedas na batalha eleitoral após a morte de Eduardo Campos (PSB), tinha apresentado seu programa. E quebrado um tabu, propondo defender uma legislação favorável ao casamento para todos se fosse eleita.
Na realidade, os homossexuais podem se casar desde maio de 2013, após uma decisão do Supremo Tribunal Federal. “Mas se trata de uma jurisprudência suscetível de ser questionada por juízes conservadores. Enquanto não temos uma lei, nossos direitos não são protegidos”, explica Jean Wyllys, único deputado federal a se assumir como homossexual. Naquele dia, Marina pareceu ter ficado abalada e deixou de encarnar aquela “outra política” que ela promete, e que até então vinha sendo encantadora. Mais notável ainda é a candidata se apresentar como membro praticante da Assembleia de Deus, uma igreja evangélica pentecostal caracterizada por seu conservadorismo social.1
Algumas horas após o tuíte do pastor, Marina voltou atrás. O entusiasmo deu lugar à perturbação, depois à indignação. “Você mentiu para nós, você brincou com a esperança de milhões de pessoas, você não merece a confiança do povo brasileiro”, declarou então Jean Wyllys, que, embora apoie Luciana Genro (Psol) na corrida para a Presidência, tinha saudado o programa marinista. Mas será que Marina é próxima demais dos evangélicos? Na verdade, os principais candidatos – a começar por Dilma Rousseff – montaram “comitês evangélicos” para tentar seduzir esses milhões de vozes que parecem em perpétuo crescimento.
Assistimos a uma revolução. Em 1970, 92% da população se declarava católica segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); em 2010, estes não passavam de 64,6%. Um colapso. “O Brasil é um exemplo singular: trata-se do único grande país a ter experimentado uma mutação profunda de sua paisagem religiosa em um lapso de tempo tão rápido”, destaca José Eustáquio Alves, demógrafo da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence), do Rio de Janeiro. Na origem do fenômeno, está a expansão das igrejas evangélicas, puxada pelos pentecostais e neopentecostais, com a parte dos protestantes tradicionais (luteranos, batistas e metodistas) permanecendo estável. Sua proporção na população passou de 5% para 22% em quarenta anos. Com 123 milhões de fiéis, o Brasil continua sendo o maior país católico do mundo. “Mas não por muito tempo”, lança Alves, que calculou que os dois grupos deverão estar emparelhados até 2030.
A paisagem urbana oferece o melhor exemplo dessa transformação. No Rio de Janeiro, a Cinelândia, onde ficam o Teatro Municipal e a Biblioteca Nacional, deve seu nome aos cinemas surgidos ali no início do século XX. Eles praticamente desapareceram. Em lugar dos cartazes que outrora exaltavam Marlon Brando e Cary Grant, florescem preces a Jesus em neon e o nome das igrejas: Igreja Universal, Deus É Amor, Igreja Mundial do Reino do Deus… Esse é o quadro nos centros de todas as metrópoles brasileiras.
Nas periferias, brota uma multidão de pequenas salas. Durante séculos, a geografia das aglomerações latino-americanas se caracterizou por uma praça central, onde ficavam a prefeitura e a igreja, mas o crescimento acelerado das cidades, alimentado pelo fluxo de imigrantes, perturbou essa disposição. Foi a isso que as igrejas evangélicas souberam se adaptar – uma flexibilidade “da qual os católicos se mostraram incapazes”, sublinha Cesar Romero Jacob, professor de Ciência Política da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro.
O mesmo processo se constata na Amazônia, ao longo da fronteira agrícola em fase de ocupação, um verdadeiro faroeste. Especialista nas frentes pioneiras brasileiras, o geógrafo francês Hervé Théry, que dá aulas na Universidade de São Paulo, testemunha o processo de instalação. “A cada vez que chego a um lugar que acaba de ser ocupado, há três barracos, uma farmácia e um templo, ou seja, algo com que curar e uma fonte de reconforto moral nessas regiões difíceis”, conta. O pesquisador encontra a mesma lógica nas periferias das grandes cidades, esses oceanos de tijolos abandonados pelo poder público. “Essas igrejas evangélicas oferecem uma forma de ajuda social, lazer e uma escuta verdadeira, algo que a Igreja Católica praticamente deixou de fazer. É uma das chaves de seu sucesso”, completa.
Templo reservado até para os surfistas
No centro da Cidade Maravilhosa, mais de 75% dos habitantes se dizem católicos, proporção que cai para 30% no subúrbio. No Rio de Janeiro, “é menos a pobreza que a segregação que está na origem das mudanças”, resume Jacob.
Aqui, o caos orquestra o desenvolvimento. Construídas sem autorização, as casas são insalubres, os postos de saúde, distantes, os esgotos, inexistentes. O transporte está nas mãos de uma máfia ligada aos líderes políticos locais. A segurança depende de narcotraficantes ou de milícias recrutadas entre membros e ex-membros das forças da ordem.
Além disso, as pessoas se entediam rapidamente. Em Queimados, na periferia do Rio, Eliana Souza não tem nenhuma atividade para propor à filha adolescente. Trinta e dois anos, batizada católica, ela figura entre o número de convertidos da última década. Doméstica, passa perto de cinco horas por dia no transporte entre sua casa e o local de trabalho, em Copacabana. Isso lhe permite ver a praia, “onde muitos, no meu bairro, nunca puseram os pés”. Em seu bairro, ela não tem biblioteca municipal, pracinha, “nem mesmo uma padaria”, diz. Apenas dois bares minúsculos, onde os homens engolem seus salários em doses de cachaça.
Para Eliana, o templo evangélico vizinho não é apenas um lugar que a acolhe no caso de uma situação difícil. Ele é também seu único local de lazer. Ali são preparadas as apresentações para o Dia das Mães e para o Natal, cozinha-se junto, as pessoas são encorajadas a retomar os estudos interrompidos no primário. Ao recrutar a filha, ela espera também poupá-la do cenário clássico das periferias: uma gravidez precoce ou uma paixão por um garoto do narcotráfico e o abandono muito precoce da escola.
A afluência ao templo reflete um culto atraente, bem distante das missas repetitivas entoadas por um padre quase sempre ausente das comunidades. Durante os cultos evangélicos, as pessoas cantam e escutam testemunhos que têm por função despertar uma catarse coletiva. E cada um encontra nisso seu remédio. Enquanto o Vaticano emite uma mensagem única, transmitida por padres que demoram muito tempo a se formar e obedecem a critérios de recrutamento – os quais excluem as mulheres e exigem o celibato –, no campo neopentecostal a flexibilidade prevalece.
Qualquer um pode se declarar pastor: basta possuir certo carisma, ter estudado um pouquinho de teologia (três meses é suficiente em várias igrejas) e ser “chamado por Deus”. As grandes denominações, como a Assembleia de Deus, impõem certos controles, mas o pastor ansioso para se libertar pode criar seu próprio templo e mirar determinado grupo social com uma mensagem elaborada sob medida. Alguns pregam a austeridade, enquanto outros exaltam o enriquecimento. Há inclusive uma igreja destinada aos surfistas, a Bola de Neve, e a Igreja dos Atletas de Cristo, que reúne os apaixonados por futebol. “Assistimos a um fenômeno de segmentação que obedece às regras de marketing”, analisa Mario Schweriner, especialista nas relações entre religião e economia da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) de São Paulo.
Numa sociedade marcada pelas desigualdades, o apelo ao statu quoda hierarquia católica – ela reprimiu aqueles fiéis que, no seio da teologia da libertação, raciocinavam em termos de luta de classes – encontra cada vez mais dificuldade em se impor entre as camadas populares. “Aos discursos que acenam com o paraíso no além em troca dos sacrifícios do presente, as igrejas neopentecostais opõem um materialismo hedonista, que promete o sucesso aqui e agora”, explica o sociólogo Saulo de Tarso Cerqueira Baptista, professor da Universidade Estadual do Pará.
A retórica funciona ainda mais pelo fato de que a maioria dos políticos abandonou as tentativas de mobilização social diante da injustiça. “Quando uma sociedade se considera incapaz de resolver seus problemas pela via social, política e econômica, ela acaba por lhes conferir um caráter sobrenatural: espíritos malignos que é preciso exorcizar se instalariam por todos os cantos de nossa vida”, analisa Baptista. Há o demônio do desemprego, que é repelido brandindo-se a carteira de trabalho durante o culto, os demônios do álcool, do fracasso escolar e do adultério, que fogem graças à mão salvadora do pastor. Jesus curaria até mesmo o câncer e a aids.
No entanto, para aumentar a benevolência, recomenda-se contribuir todo mês com o dízimo, um décimo de seus ganhos, para o pastor. E todas as formas de pagamento são aceitas: em espécie, cheque e até cartão. Uma prova para a maioria dos fiéis. “Eu sei que, se estou desempregado, um irmão ou uma irmã da igreja vão me trazer algo para comer e um botijão de gás, e me ajudarão a conseguir um trabalho”, justifica Eliana. Ela acrescenta que os fiéis são assim levados a economizar em seus vícios, como o álcool e o cigarro.
“Pagar o dízimo equivale a selar um pertencimento, num contexto de ausência do Estado e desestruturação da família”, analisa Jacob. Os pastores também atraem habilmente o crescimento de poder de uma nova classe média (40 milhões de pessoas saíram da pobreza durante a última década). Para Denise Rodrigues, professora de Ciência Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, “o sucesso material aparece como uma prova de que Deus escolheu a pessoa. Se um indivíduo ganha cada vez mais em sua vida, ele será tentado a associar esse progresso à sua igreja e investir cada vez mais nela”.
A integração tem seus códigos, que geram um mercado: as pessoas se vestem como evangélicos, ouvem música evangélica, assistem à TV evangélica. Em São Paulo, no bairro popular do Brás, que concentra a indústria têxtil, a moda evangélica é um sucesso, puxada por uma marca líder, a Joyaly, lançada no início dos anos 1990. “Na época, as fiéis eram obrigadas a usar saias longas e sem corte. Foi o que levou minha mãe a criar a confecção”, conta Alyson Flores, que gerencia a empresa com a irmã Joyce, estilista.
“Há regras: nada de decotes, nada de transparências, e os ombros devem ser cobertos”, explica esta última, mostrando seus desenhos. “Mas não temos mais de ficar parecendo uma vovó. Não tem mais essa de cores escuras e roupas mal desenhadas! Eu me inspiro nas coleções europeias e as adapto às exigências do culto”, acrescenta com um sorriso. Nos anos 2000, a Joyaly experimentou um crescimento de seu volume de negócios de cerca de 30% ao ano. Se ele é mais moderado hoje, é porque trinta concorrentes passaram a disputar esse mercado. “As mulheres evangélicas são cada vez mais numerosas e seguras de si mesmas: elas querem ser bonitas reivindicando sua escolha espiritual em público”, celebra Alyson.
A alguns quilômetros dali, na Liberdade, o bairro japonês de São Paulo, uma rua inteira, a Conde de Sarzedas, consagra-se ao comércio evangélico. Ali, é possível encontrar camisetas, bonés e xícaras de café que exaltam Jesus, mas também brinquedos evangélicos. O carro-chefe de vendas continua sendo a Bíblia, o livro mais vendido do Brasil. “Vários de meus clientes têm vinte, trinta delas, ou seja, fazem coleção”, explica Antônio Carlos, o gerente da loja Total Gospel. Grande sucesso, a Bíblia da mulherpropõe preces específicas ligadas à família e ao casamento, enquanto a Bíblia gigante, toda com dourados, destina-se a ficar exposta na sala.
Jesus nas paradas de sucesso
Num país onde a pirataria rola solta, o mercado dos discos cristãos é uma exceção. Entre os vinte álbuns mais vendidos, quinze são obra de cantores religiosos, católicos em alguns casos, mas na maioria evangélicos. Para além do tradicional gospel, louva-se Jesus ao som de samba, sertanejo, rock e rap. Os intérpretes são pastores austeros, gordinhos com chapéu de caubói ou ninfetas com ar falsamente sábio. Todas as gravadoras, que antes esnobavam esse nicho, criaram seu selo “gospel”, imitando os gigantes Sony e EMI. “Quando comecei, cantávamos em garagens. Agora todos os estúdios nos cortejam, e há rádios dedicadas exclusivamente a nós”, destaca Eyshila, 42 anos, que está entre as muitas estrelas do mercado. Casada com um pastor, ela percorre o país em apresentações que reúnem milhares de pessoas em torno de seu último hit, “Jesus, o Brasil quer te adorar!”. Eyshila assinou com a Central Gospel Music, a gravadora do pastor Silas Malafaia.
“As igrejas evangélicas colocaram em prática uma política de comunicação a toda prova utilizando a indústria do entretenimento”, analisa Valdemar Figueiredo Filho, professor na ESPM do Rio de Janeiro: “Os grandes pastores primeiro têm um templo; depois, uma rádio, uma televisão, uma gravadora. Uma atividade alimenta a outra, e sua notoriedade aumenta”, explica.
Foi a Igreja Universal do Reino de Deus que mostrou o caminho. Controlada pelo bispo Edir Macedo, a igreja, que é dona de duas editoras, uma agência de turismo e uma companhia de seguros, distribui gratuitamente nas ruas a Folha Universal, um semanário de qualidade com tiragem de 1,8 milhão de exemplares – contra cerca de 300 mil da Folha de S.Paulo. Acima de tudo, no entanto, ela possui, desde 1989, a Rede Record, o segundo canal de televisão do país. Na Record, o conteúdo propriamente religioso não se limita aos programas noturnos. A Universal prefere “alugar” horários em outros canais, prática copiada por dezenas de igrejas concorrentes. O esquema se repete no rádio: a Universal alimenta desse modo o conteúdo de mais de quarenta estações.
Figueiredo Filho calcula assim que as igrejas evangélicas controlam mais de um quarto das estações FM brasileiras e alugam mais de 130 horas por semana de conteúdo em quatro redes hertzianas nacionais, num nível que por vezes chega a ser caricatural: a Rede 21, por exemplo, abre-se 22 horas por dia para os pastores. “É uma distorção do espírito da lei”, indigna-se João Brant, do coletivo Intervozes, que luta pela democratização dos meios de comunicação. “Trata-se de concessões públicas, que as redes alugam sem autorização”, prossegue, lembrando que a Constituição normalmente não permite isso. “Mesmo que se considerassem esses programas religiosos como publicitários, eles não poderiam ultrapassar um quarto do tempo total de programação”, diz. Todos os anos, o Intervozes vai até o Congresso para exigir uma clarificação do texto. “E tropeçamos sempre no mesmo problema: os projetos de lei são bloqueados pelos deputados cristãos”, lamenta Brant.
Porque o coração do povo evangélico mora no Congresso. Ele tomou a forma de uma “frente evangélica” reunindo todos os parlamentares “irmãos de fé”, para além de sua filiação política. No final de 2014, a frente reunia 63 deputados (de um total de 513) e três senadores (de um total de 81). Todas as manhãs de quarta-feira, eles se reúnem em uma sala plenária do Congresso para orar juntos, com muitos cantos e sermões.
Uma poderosa atividade parlamentar
Seu crescimento em poder se apoia em particularidades do sistema eleitoral brasileiro: o número de assentos ocupados por cada formação política decorre da soma dos votos obtidos pelos candidatos e do voto em legenda, com o total sendo dividido pelo número de cadeiras alocadas a cada estado. Concretamente, se um candidato reúne um grande número de votos, ele permite a seu partido obter mais mandatos. Uma bênção para os líderes carismáticos, em particular para aqueles que têm acesso à televisão. Eles são chamados puxadores de voto.
O sistema beneficia todas as pessoas famosas, para além da área evangélica. Assim, em 2010, o deputado federal mais votado do país, com 1,35 milhão de votos, foi o comediante Tiririca, sem nenhuma experiência política. O número elevado de votos que ele obteve permitiu a eleição de quatro deputados de sua coalizão, que sozinhos não teriam conseguido. Presentes na televisão, portanto conhecidos, 270 pastores disputarão este ano um mandato de deputado federal, batendo o recorde de 2010, quando eles eram 193. Dessa maneira, eles esperam aumentar sua presença em 30%, para chegar a 95 parlamentares.
Essa lógica facilita a cooptação de religiosos. Até porque se junta aí outro elemento: a confiança. “Um irmão vota em outro irmão”, resume Denise Rodrigues. Um adepto de uma igreja evangélica é visto como mais “confiável” pelos fiéis. Mais assíduos aos cultos e com frequência menos instruídos, já que são provenientes de camadas mais populares, como mostram os trabalhos de Jacob anteriormente citados, os membros das igrejas evangélicas são mais sensíveis à palavra de seu “guia”.
Malafaia, o líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo que fez Marina se dobrar a um mês do primeiro turno, está consciente disso. Perguntado sobre seu poder, ele responde sem rodeios: “Para mim, ser candidato não me interessa. Eu gosto é dos corredores da política”, diverte-se. “No âmbito local, impomos o que queremos. Nas últimas eleições municipais, lancei um ilustre desconhecido para o grande público, mas importante para os evangélicos: ele esteve entre os que conseguiram mais votos.” Em todas as eleições proporcionais (as legislativas, principalmente), o impacto é forte. “Mas a situação não é a mesma para os mandatos majoritários, já que os evangélicos estão longe de representar a maioria do país. Ali, é preciso negociar”, tempera Figueiredo Filho.
É o que os evangélicos esperam fazer. “No segundo turno, vamos nos sentar à mesa com cada um dos dois candidatos e lhe dizer: ‘Você quer nosso apoio? Então tem de assinar um documento e se comprometer a recusar esta ou aquela lei’. É esse o jogo político”, assegura Malafaia. Qualquer que seja o vencedor, ele deverá em seguida aprender a compor com a bancada no Congresso.
A cada legislatura, os deputados evangélicos se encarregam de ocupar postos nas comissões que tratam de temas de sociedade. Eles têm assim catorze dos 36 membros da Comissão de Direitos Humanos, o que lhes permite intervir em projetos de lei relativos aos homossexuais, ao aborto, às drogas e à educação sexual. De forma mais discreta, podem ser encontrados na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (catorze dos 42 lugares), para bloquear qualquer lei sobre concessões de rádio e televisão que possa restringir seu poder na mídia.
“Como ainda representamos apenas 15% dos deputados, fazemos alianças com outros grupos para impor nossas posições”, explica o pastor Paulo Freire (sem relação com o célebre pedagogo), que preside a frente evangélica. O apoio mais natural vem dos parlamentares católicos hostis à liberalização dos costumes. Ele pode também resultar de uma compensação: troca-se o apoio da frente do agrobusiness hoje pelo voto dos evangélicos de amanhã. “E às vezes bloqueamos a pauta, ficando ausentes nos dias de votações importantes para o governo, o que cria problemas de quórum”, confessa tranquilamente Freire.
Durante o mandato de Dilma, as igrejas evangélicas obtiveram assim a retirada de circulação de um kit educativo anti-homofobia distribuído nas escolas, assim como de um vídeo de luta contra a aids destinado ao público gay e lésbico. Mesma eficácia quanto à questão do aborto. “As feministas passaram da conquista para a defesa dos magros direitos adquiridos”, assinala Naara Luna, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Nos anos 1990, 70% dos projetos de lei que tratavam do aborto iam no sentido da legalização; nos anos 2000, 78% dos projetos iam no sentido contrário.”
Em 2010, a eleição foi dominada pelo debate sobre o aborto. Entre os dois turnos, a pressão dos religiosos levou Dilma a publicar uma carta na qual ela se dizia “pessoalmente” contra a interrupção voluntária da gravidez. Este ano, é o debate em torno do casamento para todos que predomina. “Marina Silva está segura de captar uma parte do voto evangélico, mas ela deve tomar cuidado para não parecer muito dependente dos grupos religiosos. Caso contrário, a rejeição de outros grupos a impedirá de chegar ao poder”, enfatiza Figueiredo Filho.
Cortejar as igrejas evangélicas sem amedrontar os católicos nem os leigos: eis a estratégia de todos os candidatos. Ela já existia em 2002. Quando Lula tentou pela quarta vez alcançar o comando do país, ele escolheu José de Alencar como vice-presidente. O milionário não somente tinha a confiança de uma parte do mundo empresarial como era membro do PL, à época um dos partidos mais evangélicos. Depois, a aproximação do PT em direção aos pentecostais não parou de se intensificar, chegando até mesmo a associá-los ao governo. O senador Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal (e sobrinho de Macedo), acabou recebendo a pasta da Pesca no governo Dilma de 2012 a 2014. Ele nunca conseguiu, no entanto, se impor num mandato majoritário – tentou ser prefeito e governador.
Reação a um país em transformação
Para Figueiredo Filho, o clamor contra as igrejas evangélicas demonstra hipocrisia. “A intervenção dos católicos antes era considerável, mas ela era menos visível. O bispo tinha acesso direto ao governador, enquanto os evangélicos precisavam eleger seus deputados”, diz. Toda a imprensa destacou a presença de Dilma e dos principais dirigentes do país em 31 de julho na inauguração do gigantesco Templo de Salomão da Igreja Universal, em São Paulo. As visitas ao Vaticano, em Roma, por sua vez, foram banalizadas. “A cultura católica está ancorada na brasileira. Com os evangélicos, assiste-se a uma mudança de estética ainda mais problemática quando se pensa que a paisagem religiosa continua a se transformar muito rapidamente”, conclui Figueiredo Filho.
A rejeição da religião na vida política por uma parcela da população – aquela que será capaz de bloquear Marina às portas do poder se ela se mostrar mais próxima dos líderes pentecostais – pode igualmente se explicar pelo crescimento do número de pessoas “sem religião” – que dizem não pertencer a nenhuma instituição, o que não quer dizer que não possuam uma crença. Eles eram menos de 1% até os anos 1970, 4,7% em 1991 e 8% em 2010. Um estudo recente do Instituto Pereira Passos nas favelas do Rio de Janeiro mostra que um terço dos jovens de 14 a 24 anos se declara sem religião. No próprio seio das igrejas evangélicas, o número de fiéis que rejeitam qualquer afiliação a uma instituição passou de 0,3% para 4,8% entre 2000 e 2010. O fenômeno chama a atenção dos pesquisadores. “É talvez o sinal de que certos evangélicos não se identificam com o discurso radical dos líderes”, avança Jacob.
Mesmo que o conservadorismo permaneça poderoso na sociedade brasileira, as manifestações que exigem principalmente mais respeito aos direitos das mulheres e dos homossexuais se multiplicam. As “marchas para Jesus” atraem centenas de milhares de pessoas no país, mas as paradas gays também – com 3 milhões de pessoas, a de São Paulo é a mais importante do mundo. Vimos até o surgimento de igrejas evangélicas “inclusivas”, destinadas aos homossexuais rejeitados pelas denominações tradicionais. “A violência dos líderes religiosos, evangélicos e católicos, é também uma reação diante de um Brasil que muda e se abre, apesar de tudo”, estima Maria Luiza Heilborn, pesquisadora do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (Clam), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Paradoxalmente, é talvez porque o Brasil se torna cada vez mais complexo que ele se questiona sobre o sentido da laicidade, e que a percepção da intervenção política dos religiosos assume tanto espaço no debate público.
Lamia Oualalou é jornalista.