Aos brasileiros que nunca existiram (e que talvez nunca existirão)
“Negros” e “índios” tornaram-se apenas dois grupos dentro de uma forte permanência colonial que ignorou suas ancestralidades e características singulares. São milhões os rostos que não existem, seja em fotos pinturas, nomes, histórias ou memórias
O fluxo do tempo é indiferente aos nossos afazeres. Sem pena, sem nos julgar, sem parar e sempre nos engolindo. Os historiadores, os memorialistas, os arqueólogos e outros profissionais e amadores da nossa condição de viver entre o passado e o futuro tentam vencê-lo. No entanto, raramente conseguem barrar a avalanche que nos soterra, não importa o quanto guardem em seus livros, artigos ou fotografias. Sempre falta algo.
Somos refém de um sequestrador constante. Contudo, existe uma condição causada com o passar do tempo que podemos alterar, ainda que em fragmentos. Cabe a nós escolher. E se muito do que perdemos para o tempo pudesse ser evitado por meio de nossas relações sociais, nossas decisões como sociedade, nossa relação com a memória, a história e o ensino, ou mesmo através de nossas formas de pensar ou de se sensibilizar com a vida?
Há, enterrados por muitos cantos do Brasil, corpos que antecedem até a existência dos próprios brasileiros. Todavia, também existem brasileiros que, mesmo mortos e enterrados, são perpetuados pelos nossos atos em nomes de ruas ou escolas, estátuas, memoriais, cerimônias, eventos públicos, esculturas e diversas páginas de livros.
Há outros que, sozinhos ou em grupo, desapareceram carregados pelos esquecimentos do tempo. Valas comuns, desaparecidos, túmulos de indigentes, ossadas misturadas num ossário ou vala, pessoas nunca documentadas, ou transformadas em grupos sem passado. Por exemplo, “negros” e “índios” tornaram-se apenas dois grupos dentro de uma forte permanência colonial que ignorou suas ancestralidades e características singulares. Ao passado do negro brasileiro, apenas se alcunha a escravidão, geralmente e popularmente, de maneira acrítica. Ao indígena, do Brasil e das Américas, criou-se um folclore ao longo dos séculos de sua inferioridade civilizacional, racional, de um habitante fora da civilização e mais próximo dos animais das florestas.
São milhões os rostos que não existem, seja em fotos, pinturas, nomes, histórias ou memórias. Em relação a todos esses só nos resta o esquecimento, a ignorância ou uma tentativa de resgatá-los do passado. É sobre esses que eu questiono. Ainda persistem os inexistentes em nosso período. Entretanto, será possível uma relação diferente com o nosso passado brasileiro em relação àqueles que merecem inexistir e àqueles que devem sempre estar sob o sol?
Os silêncios em nosso passado, os silêncios que persistem em nosso presente e aquilo que escolheremos silenciar no futuro dizem muito para um ouvido atento. Pelas trilhas que fomos criando, muitas de nossas instituições brasileiras possuem uma tendência a odiar muitos dos habitantes de seu território. Uma forma de fazer isso é esquecer sua existência ao longo de nossa história, ou condicioná-los a papéis subalternos e inferiorizados.
As razões do ódio são muitas: raça, religião, visão de mundo, posição social, formato do rosto, língua falada, modo de vida, desejo por recursos e riqueza. Os efeitos desse ódio podem perdurar para a eternidade, como no caso daqueles corpos e culturas chacinados que muitas vezes só surgem, por exemplo, no “dia do índio nas escolas”.
Aquela frase diz a verdade: o Brasil foi erguido sobre um cemitério indígena. Sobrou, para sempre, um vazio de línguas, corpos, pensamentos, nomes e vidas que nunca mais serão presenciados e dos quais pouco restou. O ódio, intelectualizado, justificado e até abençoado fornece combustível para o apagamento, o esquecimento e o silenciamento. Os primeiros genocídios brasileiros foram seguidos por epistemicídios e homicídios históricos.
Esse homicídio histórico tem duas formas: primeira mata-se a vítima, depois nega-se sua dignidade ao mesmo tempo em que se escreve sobre ela de forma deletéria, racista e preconceituosa. Atira-se sobre o corpo conceitos e nomes que a vítima nunca pode escolher e dos quais não pode nem ao menos se defender. Foi assim com os diversos grupos indígenas, com as variadas populações africanas e é assim com os marginalizados dos séculos XX e XXI.
Tente um exercício. Se você não consegue imaginar o seu antepassado português, alemão, italiano ou polonês, imagine quem busca seu antepassado que pode ter vindo do Wene wa Kongo (Reino do Congo) ou do Ilẹ̀-Ọba Ọ̀yọ́ (Império de Oyó). Ou tente imaginar como é habitar um território que pertenceu a um antepassado seu e que, agora, tudo lhe é negado. Até mesmo, em casos mais extremos, sua humanidade.
Existem certas formas de exclusão dos inexistentes da história. Uma história branqueada é praticada até os dias atuais. Os argumentos contrários a esse tipo de história são bastante atacados pelos conservadores brasileiros e eurocêntricos. Outra forma é o foco nos grandes nomes da história da pátria. Fazendo com que se crie uma hierarquia e se hierarquize o valor social de indivíduos e de grupos que é, obviamente, ancorado em vieses da raça, classe, gênero, orientação sexual, visão de mundo e função no mantenimento de uma ordem de origem colonial.
As pessoas com nome e com história não costumam ser pobres, pretas, pardas, indígenas, mulheres. Constantemente elas são brancas, endinheiradas e ocupam posições de poder. O poder de dar nome indica quem será lembrado, esquecido ou enquadrado dentro de determinados conceitos que podem ser deletérios ou enaltecedores. Quem possui esse poder em nossa sociedade são os mesmos que fazem as escolhas que seguem permanecendo com o apagamento de variados passados e seus habitantes.
O que sabemos sobre nosso passado diz o que somos no presente. Um país desigual e racista que ainda odeia a maior parte de sua essência. Negar o passado de seres humanos não brancos é uma forma de esquecer quem somos como nação brasileira. Reduções da existência negra e indígena no Brasil foram realizadas por decisões na esfera social e política. Os problemas legados, ainda permanecem e, muito provavelmente, vão continuar em nosso futuro.
Não podemos separar o presente do passado, nem mesmo do futuro. Porém, nem sempre as ligações que fazemos entre os três tempos são racionalizadas de forma a melhorar nossa existência. Persistem os padrões de acumulação, desigualdades, hierarquia racial e sexual.
Nesse padrão de representação do passado em relação ao nosso presente e futuro, desaparecem as experiências individuais e coletivas da maior parte dos brasileiros. Humanidades são negadas pela nossa tradicional relação desenvolvida com o passar do tempo. Estamos acostumados com nomes de ruas e de cidades, com monumentos e memoriais dedicados às “pessoas importantes” que nem sempre representam a pluralidade brasileira.
Não se trata apenas de culpar o tempo que nos vence todo dia. Mas sim nossa relação com ele e como escolhemos fazer história e guardar memórias do que passou com quem e como. Existem decisões sendo tomadas, existem lógicas de avaliação do que merece ser preservado, lembrado e/ou estudado. São esses alguns dos mecanismos mentais que tomaram decisões passadas, estão tomando decisões agora e tomarão no futuro.
Vale questionar o que forma, o que faz e o que garante esse mecanismo de decisão que habita nossa mentalidade. Há quem serve, para o que e por quê? Quando se criam perguntas sobre a história, quando se pesquisa, quando se ensina ou se narra, quando se programam currículos ou livros didáticos, temos de ter em mente de onde partem e quais as suas funções na situação da sociedade brasileira.
Existe uma tendência, entre aqueles que vivem as lutas cotidianas com longas raízes históricas de sintetizar e explicar melhor do que qualquer intelectual institucionalizado tudo que vivemos em nosso momento. Acadêmicos estão muito contaminados por sua rigidez institucional, modos de comunicação e necessidades do seu ambiente de trabalho. O que melhor define o que falo é a letra de Sabotage na canção Um bom lugar: “Homens do passado, pisando no futuro, vivendo no presente”.
Os mortos não podem falar por si mesmos, basta a nós buscar e interpretar o que deixaram. Existem muitas opções, uma delas é a atual (a dos homens do passado). O apagamento e o esquecimento de grande parcela do passado em nosso presente e futuro. A outra é criar possibilidades, estudos, dignidade em espaços escolares e universitários, culturais e políticos, em que os brasileiros que não existem possam emergir de suas covas para viver entre nós. A história é sempre isso, um reavivar do que passou que pode ser tanto uma armadilha quanto uma chance de alteração ou destruição de paradigmas.
Bruno Ribeiro Oliveira é doutorando do Programa de História e Artes da Universidade de Granada, onde estuda a história e literatura africana, e teoria decolonial. É autor do livro Ngugi wa Thiongo: historia, literatura e descolonização.