Brics expandido, e agora? Novos desafios para a política externa brasileira
Sob forte especulação de esvaziamento e perda de força dos Brics, o que ocorreu na cúpula foi uma demonstração do protagonismo chinês, além de uma expansão que certamente trará grandes mudanças para o futuro do grupo
A primeira cúpula presencial de chefes de Estado dos Brics após a pandemia teve lugar na capital sul-africana neste agosto de 2023, com a marcante ausência de Vladmir Putin, indiciado pelo Tribunal Penal Internacional. Este fato reforça a dimensão geopolítica do agrupamento Brics, que ficou ainda mais evidente depois da eclosão da Guerra da Ucrânia. A agenda prioritária comum já não é mais apenas a de reforma das instituições financeiras multilaterais, mas sim a de construir novas alianças e criar novas instituições que possam resultar em um mundo “multipolar”, conforme os discursos recorrentes de seus líderes.
A discussão sobre a diminuição da dependência do dólar, a criação de mecanismos de comércio e crédito em moedas locais e mesmo a proposta de uma possível moeda comum foram outro ponto alto nessa discussão, porém sem avanços concretos. A declaração final se limitou a encorajar transações financeiras e comerciais e reforçar redes bancárias para descontar em moedas locais. Os bancos centrais e ministérios das finanças ficam encarregados de considerar emissões e plataformas de pagamento desdolarizadas e reportar de volta aos governos. Diante dos enfáticos discursos de líderes que precederam a cúpula, os resultados imediatos ainda são tímidos. Essa é uma questão técnica e política complexa que levará tempo e esforço para avançar. Será necessário monitorar como se posicionam não apenas governos, mas bancos privados, empresas multinacionais e demais fundos financeiros dos Brics, que operam e se beneficiam das transações em dólar.
A declaração final da cúpula terminou com o convite à entrada de seis novos membros: Argentina, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. Foram incluídos, de um lado, um aliado histórico dos EUA no Oriente Médico – a Arábia Saudita – e de outro, o Irã, que sofre sanções dos americanos. Recentemente, sob mediação da China, ambos retomaram relações diplomáticas. A declaração final afirmou, ainda, que a efetivação desses países como membros plenos deverá se realizar a partir de 1 de janeiro de 2024, dando, portanto, seis meses para que o processo se complete. A expansão é, e sempre foi, uma agenda chinesa: o país asiático promoveu a entrada da África do Sul em 2011, sem restrições, naquele momento, dos outros membros. Em 2023, a agenda foi bem-sucedida, afinal, atendia em grande medida também os interesses da Rússia. A entrada de dois países africanos foi bem acolhida, sendo o Egito já membro do Novo Banco de Desenvolvimento, e a Etiópia o país sede da União Africana, que, em 2021, constituiu uma Área Continental de Livre Comércio (AfCFTA).
Índia e Brasil foram resistentes, até então, ao processo de expansão, e buscavam ganhar tempo ao discutir critérios e velocidade de escolha dos novos membros. Ambos claramente sucumbiram ao aumento da proeminência chinesa e, em menor grau, russa no grupo. A posição da Índia foi fortemente pressionada pela Arábia Saudita. É relevante ressaltar que o país está envolvido em um jogo geopolítico complexo, uma vez que é parte do Quadilateral Dialoge (QUAD), grupo que envolve os EUA e que tem como objetivo conter a influência chinesa no Indo-Pacífico. A Índia é parceira comercial relevante da Rússia, maior compradora de armas do país.
No caso do Brasil, podemos observar clara diferença nas posições: de um lado, os operadores da política externa – no Itamaraty e outras agências federais – apontavam para dificuldades de chegar a consensos diante de países tão díspares; de outro lado, as visões do embaixador Celso Amorim, hoje secretário especial para assuntos internacionais, e do próprio presidente Lula, indicavam vantagens para o Brasil, no longo prazo, em ter um BRICS forte e expandido. Nessa negociação, o trade off seria a posição mais assertiva da China e da Rússia para uma reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Os EUA já haviam sinalizado positivamente para um diálogo nesse sentido e, com uma possível aderência dos dois parceiros Brics, a busca do Brasil por um assento no Conselho poderia ganhar mais força. Vale notar que as discussões sobre a reforma do Conselho acontecem na Assembleia Geral da ONU, que já está em andamento e poderá também beneficiar o pleito da Índia e do Japão por um assento, o que não é de interesse da China. A declaração final da Cúpula avançou no sentido desejado pela diplomacia brasileira: afirmou o apoio à reforma abrangente das Nações Unidas para incluir representantes dos países em desenvolvimento no Conselho de Segurança – Brasil, Índia e África do Sul.
Por sua vez, a entrada da Argentina, apoiada pelo Brasil, fortalece a América do Sul nos Brics. Vivendo uma crise econômica que se arrasta por décadas, o país enfrenta um contexto eleitoral muito adverso. Na contramão à adesão aos Brics, o candidato de extrema direta Javier Milei ameaça afastar a Argentina da China, além de dolarizar por completo sua economia, precisamente no momento em que os Brics discutem formas de desdolarização. A sinalização positiva para o país sul-americano aparece como uma tentativa indireta de influenciar o cenário eleitoral e oferecer alternativas à Argentina, que hoje tem fechado seu acesso aos mercados de crédito internacional e voltou-se à China e, em menor grau, ao Brasil para ajudar a alavancar sua economia. O Brasil ofereceu, ainda, um mecanismo de financiamento do comércio com a Argentina por meio da moeda chinesa yuan, através do apoio à exportação do Banco do Brasil, que usaria sua subsidiária na praça financeira de Londres para compensar yuan por reais e realizar a operação.
Podemos afirmar que, ao mesmo tempo em que os Brics dão um importante passo geopolítico, buscando maior balanceamento de poder internacional frente às potências tradicionais, aumentam também as contradições sociais e ambientais dentro do bloco e, consequentemente, os desafios para a política externa brasileira. No que tange aos esforços para acelerar a transição energética no mundo, agora o bloco se torna um “Brics fóssil”. Afinal, seus membros estão entre os maiores produtores de fontes fósseis de energia, e parece pouco plausível que projetos e ações nessa linha tenham centralidade nas propostas do bloco.
Já os temas relacionados a direitos trabalhistas, melhoria no tratamento das questões de gênero e lutas sociais devem ficar enfraquecidos com a entrada de membros mais conservadores. São países que ainda guardam grandes desigualdades sociais e de gênero, com elites políticas e econômicas claramente contrárias a avanços nessa área. Vale lembrar que foi durante a gestão Bolsonaro que o Brasil votou, nas Nações Unidas, junto com países mulçumanos conservadores contra direitos humanos e de gênero. Para o novo governo Lula, que busca avançar uma agenda social e democrática, isso poderá representar um grande desafio.
Enquanto os chefes de Estado dos Brics se reuniam a portas fechadas em um retiro, com forte esquema de segurança em Joanesburgo, cerca de 150 representantes de movimentos sociais de base, organizações não governamentais e de comunidades atingidas se reuniam na Universidade de Joanesburgo, no chamado “Brics from below”. Apesar do caráter evidentemente africano do encontro, quase não havia representantes de organizações sociais de outros países-membros, o centro do debate transcendeu a região, incluindo as lutas por justiça climática e contra os megaprojetos fósseis e extrativos nas áreas de petróleo, mineração e metalurgia, com fortes impactos sociais e ambientais nos territórios onde são implementados. Dois desses projetos tiveram destaque entre os protestos, a Zona Econômica Especial de Musina Makhado, liderada pelos chineses, na província de Limpopo, na África do Sul, que está em vias de implementação e aponta forte impacto socioambiental; e o Oleoduto de petróleo bruto da África Oriental, que atravessa Uganda e outros países africanos, construído pela francesa Total em parceria com a CNOOC e financiamento do Standard Bank. Representantes de comunidades locais atingidas por esses empreendimentos estavam presentes e buscavam visibilidade para suas lutas.
Sob forte especulação de esvaziamento e perda de força dos Brics, o que ocorreu na África do Sul foi uma demonstração de força e maior protagonismo chinês, além de uma expansão que certamente trará grandes mudanças para o futuro do grupo. Três dos países-membros – Índia, Brasil e África do Sul – sediarão os próximos encontros do G20, as vinte maiores economias do mundo, em 2023, 2024 e 2025, respectivamente. Frente a um Brics expandido, será a vez do Brasil, Índia e África do Sul retomarem o IBAS? Será necessário o acompanhamento minucioso de seus desdobramentos futuros.