Colonialismo econômico-digital
A economia digital utiliza a algoritmização como engrenagem necessária para a concentração de capital e poder das empresas sobre as pessoas
A algoritmização vem remodelando, aos poucos, estruturas políticas e econômicas no mundo todo, e suas forças estão concentradas nas chamadas Big Techs. A capacidade de capturar e processar dados fornece informações valiosas de indivíduos, debilitando o conceito de privacidade em prol do apetite ávido do neoliberalismo. Sem limites ou fronteiras, a algoritmização é vista como o motor do colonialismo digital, que tem o propósito de pavimentar uma ampla rede capaz de estruturar diversas “colônias”, passando a ameaçar democracias e mercados.
Um conceito que emerge com a consolidação do processo de algoritmização é o colonialismo digital, que, segundo Michael Kwet, é caracterizado pelo uso de tecnologias digitais para a dominação política, econômica e social. O mecanismo está em como as Big Techs constroem uma ampla rede de conectividade capaz de captar e armazenar dados que são processados por diferentes empresas que irão se nutrir de informações relevantes para o consumo, comunicação e o trabalho algoritmizado. Fica evidente, portanto, um caráter exploratório que permeia o conceito de colonialismo em que a algoritmização é o núcleo desse desenvolvimento na qual Big Techs possuem o poder de explorar usuários para diferentes finalidades.
Um dos usos da algoritmização, inserido no contexto do fenômeno do colonialismo, é no trabalho em plataformas, ou trabalho alogirtimizado. Empresas como Uber e Amazon utilizam mão-de-obra barata com baixa qualificação para aumentar seus lucros. Em diversos países, a ausência de políticas públicas e regulamentação estrangulam o trabalhador com baixos salários e ausência de direitos. São empresas que pavimentam em outros territórios um espúrio domínio econômico, trazendo reflexos em toda uma sociedade.
Percebe-se que o fio condutor que conecta explorador e explorado no colonialismo digital é o uso massivo de dados a partir de algoritmos. Logo, as Big Techs possuem o protagonismo na exploração, enquanto enriquecem suas bases de dados de diferentes indivíduos. Esses dados são essenciais para que possam obter lucros a partir do consumo de produtos e serviços ofertados por essas empresas de tecnologia. Para além do consumo, esses dados são essenciais para a manutenção de forças de trabalho em diferentes espaços ou territórios.
O colonialismo não precisa estar em estruturas físicas ou alguma representação social, como no modelo histórico. Saem nações e entram empresas e o extrativismo não é mais em riquezas minerais (ouro e prata por exemplo) e sim dados privados de um número gigantesco de pessoas. Contudo, o colonialismo permanece o mesmo em sua essência: a manutenção do status quo do capital a partir do domínio de grupos sociais. Compreende-se, portanto, que tal fenômeno está atrelado à configuração e à solidificação de poder.
A pedra fundamental do colonialismo digital é o extrativismo de dados de diversos cidadãos e trabalhadores visando o lucro, seja a partir do consumo, do trabalho ou de ambos. Não à toa, o mantra que ecoa pelos escritórios das Big Techs é o “Data is the new Oil” (“Dados são o novo petróleo” em tradução livre) que transforma indivíduos em vetores de dados, os commodities de uma economia digital. Tal exploração ocorre sem limites geográficos ou barreiras legais e fortalece monopólios de mídia, entretenimento, transporte, alimentação e tantos outros setores.
De acordo com João Francisco Cassino o colonialismo de dados é capaz de criar uma combinação das mesmas práticas predatórias do colonialismo histórico, em que pessoas passam a fazer parte de infraestruturas computacionais a partir da captura massiva de dados. Assim, nossa vida social, cultural e econômica se torna um recurso a ser explorado e acumulado dentro de um ideal neoliberal.
A economia digital, na égide do neoliberalismo, é um rearranjo do capitalismo a partir de práticas de algoritmização. É com coleta de dados que empresas conquistam posições estratégicas que permitem o domínio de mercados e territórios. Ou seja, a algoritmização constrói uma estrutura de gestão social que modifica as formas de trabalho e de consumo em diferentes países e pode fissurar democracias, como o caso Cambridge Analytica. O escândalo mostrou como a algoritmização no contexto do colonialismo digital com objetivos políticos é capaz de trazer reflexos graves na democracia.
O colonialismo digital, então, cria ramificações a partir da oferta de serviços e trabalho que são capazes de extrair dados pessoais dos usuários. De acordo com Rodolfo Avelino, é a partir desse modus operandi que empresas como Alphabet (Google), Meta, Amazon, Uber, Apple e Microsoft conseguem ofertar serviços personalizados e manter o público nessas plataformas. Há, ainda, o cruzamento de informações em diferentes aplicativos, quando o Spotify, por exemplo, pode ser conectado ao Uber ou quando usuários divulgam quais séries estão sendo assistidas na Netflix ou, ainda, quando buscas feitas na Amazon podem gerar anúncios no Instagram.
A veia do colonialismo é a criação de monopólios de serviços e produtos digitais (Big Techs) responsáveis por um domínio econômico que causará a perpetuação da noção de algoritmização como alternativa única para a economia dos dias de hoje. Assim, como observa Rodolfo Avelino, o colonialismo é capaz de influenciar padrões culturais, sociais, econômicos e tecnológicos sobre qualquer grupo social, em uma clara formatação imperialista capaz de remodelar o poder geopolítico, comprometendo interesses e soberanias nacionais.
Logo, o fortalecimento de uma economia digital em um processo de industrialização de um país é um marco necessário para a garantia da soberania nacional. O colonialismo floresce em regiões que estão em um deserto industrial digital e isso é observado, comumente, nos países do Sul Global. Porém, cabe destacar, que a relação direta do colonialismo não é dada por aqueles que possuem, necessariamente, mais recursos financeiros, e sim, quem tem a capacidade de construir uma sólida estrutura econômica digital. Dessa forma, a força do colonialismo digital é medida pela capacidade de uma empresa de captar, armazenar e processar dados de indivíduos em qualquer parte do mundo.
Sustentado por processos de datificação de indivíduos, esse colonialismo tem como principal objetivo a estruturação de relações de poder. De acordo com Antonio Carlos Mazzeo, não existe mera coincidência entre as relações de produção feudais e relações de produção atuais, pois estas estão consolidadas em estruturas exploratórias que servem para o desenvolvimento do capitalismo, sendo as colônias os elementos basilares na concentração de capital.
Portanto, é possível afirmar que o colonialismo é um fenômeno de perpetuação e fortalecimento das relações de poder em que há um contingente de indivíduos explorados por um grupo de empresas que são capazes de reconfigurar arranjos sociais e econômicos. Observa-se, ainda, que a economia digital utiliza, de forma perene, a algoritmização como engrenagem necessária para a concentração de capital e poder dessas empresas sobre pessoas, que têm suas vidas devassadas com a exploração ininterrupta de seus dados. O colonialismo digital torna o indivíduo uma simples commodity, pois aquilo que importa é o que ele é capaz de entregar como dado, como se fosse um simples vetor. Logo, não é cabível aceitar de forma silenciosa e inerte a destruição, a exploração e o controle externo, pois, para os explorados, o enfrentamento ao colonialismo deve ser visto como uma questão de resistência e existência.
Herbert Salles é Doutorando em Economia pela UFF.