Democracia e degradação institucional
O impeachment de Dilma Rousseff abriu um caminho de degradação institucional muito mais rápido do que seria possível imaginar naquele momento. A partir desse acontecimento e, principalmente, da eleição de Jair Bolsonaro, novos elementos se acrescentam à tendência antidemocrática, tais como o ataque do Poder Judiciário e das instituições de controle do sistema político
Em 2016, alguns meses antes do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, abri meu novo livro, intitulado Impasses da democracia no Brasil, com as seguintes palavras: “O Brasil se encontra hoje no rol das nações com democracias fortes e consolidadas. Por qualquer medida significativa proposta por teorias que medem o estado da arte da democracia, o Brasil se encontra em uma posição boa. Se tomarmos uma perspectiva histórica, por exemplo, o Brasil tem uma democracia mais forte hoje do que ele teve no período 1946-1964, já que não houve desde 1985 nenhuma tentativa dos militares de intervir na política, tal como ocorreu em 1954, 1956 e 1961. Ao mesmo tempo, se tomarmos como medida o número de transmissões de poder, o Brasil, com a posse recente da presidenta Dilma para um segundo mandato, já teve mais transmissões democráticas do poder, neste período, 1985-2015, do que em qualquer outro período. Quando adotamos a perspectiva comparada, percebemos que a democracia brasileira passou por menos percalços do que as democracias dos países vizinhos, em especial as democracias argentina e chilena. No caso argentino, diversos presidentes não conseguiram completar o seu mandato, casos de Alfonsín e De la Rua. Assim, nenhum presidente não peronista completou o seu mandato no país vizinho. Já no caso do Chile a constituição pinochetista continua vigorando e impondo um regime eleitoral que impede a sua mudança constitucional. Portanto, seja na perspectiva internista, seja na perspectiva comparada a democracia brasileira fez importantes avanços”.
Evidentemente essa é uma análise ultrapassada da democracia brasileira. O impeachment de Dilma Rousseff abriu um caminho de degradação institucional muito mais rápido do que seria possível imaginar naquele momento. A partir desse acontecimento e, principalmente, da eleição de Jair Bolsonaro, novos elementos se acrescentam à tendência antidemocrática, tais como o ataque do Poder Judiciário e das instituições de controle do sistema político. Esse ataque permitiu o afastamento, pelo STF, do presidente da Câmara dos Deputados e a tentativa de remoção do presidente do Senado, em 2016. Tais fatos organizaram-se em um crescendo a partir da suspensão de nomeações ministeriais, em especial a nomeação do ex-presidente Lula para a Casa Civil, e da suspensão do indulto natalino, ambas prerrogativas exclusivas do presidente da República. A intervenção no Rio de Janeiro e a tentativa de uso das Forças Armadas na greve dos caminhoneiros em maio de 2018 completaram a equação de violação de direitos e de adesão a uma política de segurança pública anticidadã. O auge desse estado de coisas se evidenciaria com a justificação aberta da violência por candidatos que, não por acaso, acabaria se manifestando explicitamente no atentado contra o próprio Bolsonaro e em ações de seus apoiadores quando indivíduos foram agredidos ou até mesmo assassinados, como no caso do capoeirista Moa do Katendê, esfaqueado em Salvador durante a eleição de 2018. Neste artigo tentarei mostrar, em primeiro lugar, a centralidade do impeachment no processo de degradação institucional no Brasil; em seguida demonstrarei como o Judiciário foi politizado e instrumentalizado por Sérgio Moro, para então mostrar como o bolsonarismo aposta no aprofundamento do processo de degradação institucional.
Impeachment: entendendo o processo
O impeachment da presidenta Dilma representou uma reversão de comportamentos institucionais que tiveram sua origem no início da redemocratização brasileira. A instauração da Nova República, com a retirada dos militares do exercício do poder político e a extinção de seu poder de veto sobre resultados eleitorais, inaugurou uma mudança de perspectiva em relação ao processo sucessório e à democracia no Brasil. As primeiras eleições do período da Nova República foram marcadas por uma mudança de comportamento no que tange ao reconhecimento de resultados eleitorais. Apesar da demora no processo de apuração eleitoral em 1989, todos os atores envolvidos nele esperaram o resultado antes de se posicionar sobre o segundo turno. O mesmo aconteceu nas eleições de 1994, 1998, 2002, 2006 e 2010. Assim, de alguma maneira, é possível argumentar uma mudança no comportamento das elites políticas que sugeria a transformação das eleições democráticas no único jogo na cidade. No entanto, desde o início da Nova República, elementos antidemocráticos estavam presentes em nossa institucionalidade, ainda que atuassem de modo bastante discreto: o impeachment e a possibilidade de intervenção dos militares nas questões de ordem interna.
O impeachment no Brasil não segue o padrão internacional do presidencialismo, de acordo com o qual deve ser um evento muito raro e, para tal, não deve envolver questões administrativas (maladministration) ou de oposição política. Ainda assim, entre os casos de impeachment, o do ex-presidente Collor teve fortes elementos consensuais, envolveu a ideia da remoção de um presidente mal avaliado, mas também incorporou um forte consenso entre as instituições políticas, a ponto de, na votação sobre seu afastamento na comissão especial da Câmara dos Deputados, o presidente ter tido apenas um voto, o do líder do governo.
O impeachment da presidenta Dilma Rousseff foi baseado em alegações extremamente frágeis, porque a ideia de pedalada fiscal não constituía um diferencial de comportamento em relação a outros presidentes ou governadores.1 Além disso, temos várias evidências posteriores ao impeachment de acordos políticos com o intuito de afastar Dilma. A principal consequência do impeachment recente é um relativismo institucional a partir do qual não existem mais interesses gerais na democracia brasileira e na atuação das instituições. O fato de o processo de impeachment do ex-presidente Michel Temer não ter prosperado, a despeito das evidências de um governo completamente envolvido com a corrupção, acentuou a desconfiança dos brasileiros na democracia. Nas pesquisas que realizamos no Instituto da Democracia da UFMG (www.institutodademocracia.org) foi possível perceber uma intensa degradação do apoio dos brasileiros à democracia ao longo de 2018, o que abriu espaço para a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro. Assim, é possível dizer que o impeachment da presidenta Dilma foi mais do que um impeachment. Ele foi o destampar de uma panela de pressão que permitiu uma volta ao passado no comportamento das elites não democráticas no Brasil.
Condenação do ex-presidente Lula
Tal como no caso da competição política, o Brasil colocou em prática estruturas fortes de autonomia judicial entre 1988 e 2014. O Judiciário assumiu prerrogativas de independência em relação ao Executivo, mas também em relação à ampliação de direitos, com decisões-chave, como Raposa Serra do Sol e implantação de cotas no ensino superior. Ainda assim, vínhamos de um Judiciário oligárquico, tradição que não foi rompida nem mesmo com a instituição do concurso público, uma vez ele não impediu as famílias de operarem ou pela via do quinto da OAB ou pela via de relações espúrias entre juízes e escritórios de advocacia. Ainda assim, é possível apontar um saldo positivo na maneira como o Poder Judiciário foi adquirindo novas prerrogativas nesse período.
A Operação Lava Jato mudou essa equação, relativizando a estrutura de direitos de defesa no combate à corrupção. Porém, ainda mais grave, ela acabou por fornecer prerrogativas absolutas a um juiz de primeira instância que, como ficou comprovado, tinha projetos políticos e estava disposto a perseguir judicialmente um ex-presidente. Sérgio Moro, no caso do ex-presidente Lula, orientou a delação premiada, aceitou a denúncia, legalizou a posse de um apartamento por provas indiretas e alegou ter fórum para todas essas ações, apesar de o STF só ter lhe concedido foro sobre as ações ligadas à Petrobras. Isso depois de ser censurado pelo ex-ministro Teori Zavascki acerca de vazamentos de gravações que contrariam a lei brasileira sobre o assunto, chegando inclusive a gravar a defesa do ex-presidente.
Vale a pena utilizar dados comparados sobre quando um juiz é impedido de continuar presidindo um julgamento nos Estados Unidos. Ali, o fato de o juiz ter conhecimento prévio do caso ou ter atuado de forma ilegal é, em geral, suficiente para ser impedido de atuar. No julgamento do ex-presidente Lula coube ao próprio Sérgio Moro dizer por que ele continuava sendo um juiz neutro. Cito sua sentença do caso: “No entendimento deste julgador, respeitando a parcial censura havida pelo ministro Teori Zavascki, o problema nos diálogos interceptados não foi o levantamento do sigilo, mas sim o seu conteúdo, que revelava tentativas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de obstruir investigações e a sua intenção de, quando assumisse o cargo de ministro-chefe da Casa Civil, contra elas atuar com todo o seu poder político”. Analisemos o julgamento proferido pelo então ministro Teori nesse caso para ver se de fato o juiz interpreta a censura que recebeu de forma correta. Afirmou Zavascki no ponto 7 de sua decisão: “Ainda mais grave, procedeu a juízos de valor sobre referências e condutas de ocupantes de cargos previstos nos artigos 102 I, b e c”. Ou seja, estamos diante de um juiz que tergiversou em questões processuais, que contou com o apoio da mídia para fazê-lo e que, assim, degradou a imparcialidade do sistema de justiça no Brasil.
A mais grave dessas operações foi a que pautou no STF um caso particular de habeas corpus, o de Lula, antes de uma ação genérica sobre o tema e que determinou a prisão do ex-presidente. São igualmente graves as decisões do ministro Edson Fachin de remeter ações ao plenário, a seu bel-prazer, quando ele está em minoria na segunda turma do STF. Como resultado, coloca-se a questão da ascensão do Judiciário ao papel de força política com poder de veto sobre o sistema político e com elementos muito fortes de privilégio interna corporis. A trajetória anterior do STF de dois pesos e duas medidas e de relativização das regras do estado de direito degradou a democracia ainda antes da posse de Bolsonaro, que aprofundou o processo.
Todos esses elementos sugerem que o Judiciário brasileiro é parte de um itinerário de ascensão do poder das instituições contramajoritárias acima do sistema político. Trata-se de um detour jurídico por meio do qual os membros do Poder Judiciário têm a capacidade não apenas de se expressar para além das regras do estado de direito, como também de se associar a outros atores que o fazem abertamente. Essa postura de enfraquecimento do estado de direito foi aproveitada por Jair Bolsonaro, tornando ambos – a democracia e o estado de direito – ainda mais vulneráveis em nosso país.
Governo Bolsonaro, militares e degradação institucional
O período que teve início em 2016 envolve dois momentos diferentes. No primeiro, uma democracia praticamente consolidada abriu mão de ser uma democracia plena para se tornar um arranjo entre elites conservadoras capitaneadas pelo PMDB e pelo PSDB e associadas às forças do mercado. Degradou-se ali a democracia de forma que talvez pudesse ser revertida em 2018, mas, por causa das intervenções judiciais e militares, não houve reversão. Com a eleição de Jair Bolsonaro passamos a um segundo momento, no qual se agregou em torno do presidente um conjunto de atores com baixas convicções democráticas – se é que possuem alguma. Penso aqui no atual ministro da Justiça, ou na ministra dos Direitos Humanos, que viola direitos de uma criança de 10 anos, ou no Procurador-Geral da República, que desmonta toda a estrutura de direitos construída pela instituição. Com o capitão reformado na Presidência, a degradação deixa de ser uma consequência e passa a ser um objetivo.
O bolsonarismo degrada as instituições de duas maneiras: em primeiro lugar, por meio de uma rede impressionante de geração de fake news. Graças a ela, consegue atacar o sistema político, o STF e até mesmo o Carnaval do Rio de Janeiro. Esses ataques reduzem a legitimidade das instituições políticas – que já era baixa desde 2014 e tornou-se baixíssima em 2018. Apenas 1% dos brasileiros confia muito em partidos políticos e um número um pouco superior no Congresso Nacional. Ao reforçar o ataque a essas instituições, o bolsonarismo cria um caldo de cultura para que seu fechamento seja defendido abertamente nas ruas, tal como vimos nos meses de abril, maio e junho de 2020. Em relação ao STF, a situação é ainda pior, porque o bolsonarismo vende a ideia de que a democracia se fortaleceria se não houvesse a atuação da corte na revisão de atos do governo. Mas o que mais preocupa no bolsonarismo é que ele não opera com um padrão de bom governo. Pelo contrário, defende a ideia anti-iluminista e antirrepublicana de que o papel da política não está na melhora do governo ou no exercício virtuoso do poder, e sim em sua utilização para a manutenção de um status quo conservador.
Ao mesmo tempo, o bolsonarismo não tem nenhum prurido em rebaixar o nível de atuação de instituições que a princípio entendemos como republicanas. Depois de arrasar as políticas de educação superior e de direitos humanos em 2019, a atenção de Bolsonaro voltou-se para o Ministério da Justiça, a Polícia Federal e o STF. Assim, na medida em que a pauta ideológica de desestruturar as políticas públicas na área de educação superior, direitos humanos e meio ambiente foi alcançada no ano passado, vimos uma nova pauta ainda mais problemática neste ano: a adaptação de instituições do sistema de justiça aos objetivos do clã Bolsonaro. Assim, o objetivo do Ministério da Justiça passou a ser vigiar a oposição, defender o presidente no STF ou tentar indicar diretores da Polícia Federal com o intuito de influenciar processos nos quais os filhos do presidente estão envolvidos. Assim, as instituições políticas cumprem dois papéis no bolsonarismo: deixar o presidente aplicar seu programa político a despeito dos pesos e contrapesos do sistema político brasileiro e ser o lugar da distorção dos objetivos do sistema de justiça.
O bolsonarismo constitui um tipo raro de associação entre governo não virtuoso e conservadorismo. O conservadorismo no Brasil tentou historicamente se constituir em uma forma envergonhada de defesa do status quo. Desde o período abolicionista até o final da ditadura militar, essa foi a postura hegemônica: ser conservador e tentar passar uma imagem de progressista. Assim, o regime militar se importou com as críticas na área dos direitos humanos, assim como Collor demarcou reservas indígenas e dialogou com forças na área do meio ambiente. O bolsonarismo representa uma nova forma de conservadorismo, um conservadorismo ideológico e anti-institucional que rompe com os padrões normais da democracia e despreza as instituições democráticas. Ou estas colocam fim no bolsonarismo, ou ele poderá comprometer decisivamente seu funcionamento.
Leonardo Avritzer é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG e autor de diversos livros, dos quais o mais recente é Política e antipolítica: a crise do governo Bolsonaro (Todavia, 2020).
1 As chamadas “pedaladas fiscais” fazem parte da lei de responsabilidade fiscal que emendou alguns artigos da Lei n. 1.079/1950 sobre o impeachment. Existem dois problemas com essa via de remoção da presidenta. O primeiro é a generalidade do uso da suplementação orçamentária sem autorização pelo Executivo no Brasil. Todos os presidentes desde 1994 utilizaram esse instrumento, e o próprio vice-presidente Michel Temer recorreu a ele no exercício da prerrogativa de presidente. Assim, houve a aplicação de um dispositivo menor da lei do impeachment com a quebra do princípio da igualdade perante a lei.