Do início da televisão ao fim do mundo: ecoa no futebol a voz de Elza Soares
Programa da TV Continental retoma período negligenciado da música e da relação com o esporte da cantora. Leia no novo artigo da série Entrementes em parceria com o LEME-UERJ
Elza Soares nas dependências de um clube. Nada incomum: seja pelas apresentações em ginásios esportivos como cantora; seja pela sua relação próxima com o futebol, enquanto rubro-negra e torcedora-símbolo da seleção brasileira. Mas era para uma transmissão em imagens, rara no ano de 1961. Com poucos aparelhos espalhados pelas cidades, a televisão parecia um objeto quase alienígena no Brasil – mas a presença da cantora à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, é contundente.
Atravessava bairros Televisita Garson e a topografia definia os padrões sociais dos frequentadores de cada set. O imaginário sobre a região conhecida hoje como Grande Tijuca, por exemplo, atribui aos sócios do Grajaú Tênis Clube perfil conservador – no enquadramento das tragédias suburbanas de Nelson Rodrigues. No Iate Clube da Urca, a produção deve ter se deparado com a atmosfera aristocrática, às margens da Baía de Guanabara, já marcada pela saudade dos tempos em que a cidade era a capital do país.
Tinha de tudo no programa da TV Continental. Esquetes de humor, flashes com o que seria chamado atualmente de nado sincronizado, vôlei, basquete, números teatrais. A produção desembarcou na Gávea, outra área rica do antigo Distrito Federal, nesse circuito do qual se tem pouca informação devido à negligência com os arquivos em audiovisual no país. No Clube de Regatas do Flamengo, Elza Soares expressava, ao mesmo tempo, oposição contra o preconceito no Brasil e o caráter provocador da cultura popular.
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Entre a televisão e a cultura popular parece existir um fosso. Imaginar o que é televisionado equivale aos desejos das multidões, em harmonia com preceitos democráticos e com o propósito de melhoria social, é uma ingenuidade: com a qual, aliás, pouquíssimos devem concordar hoje. Mas enxergar na produção televisiva o polo de manipulação capaz de mobilizar todas as mentalidades para manter o mundo como é – em operação que sempre alcança êxito – talvez seja um equívoco mais grosseiro.
No Brasil, o controle por imensos grupos comerciais implodiu o projeto inicial, da década de 1930, de uma radiodifusão pública. Os desdobramentos disso são eloquentes. Com o desenvolvimento das plataformas digitais, os veículos se prestaram à sublocação para diferentes linhas neopentecostais e para produções de repercussão baixíssima: a RedeTV! completou 25 anos e você nem percebeu. Para a sobrevivência, encontram subterfúgios, como o saldão do bolsonarismo, de adesão maciça dos empresários do setor.
A densidade de alternativas sob demanda na internet fez com que a programação ao vivo se sobressaísse – e aqui reside o potencial curto-circuito na comunicação. Filmes, séries e programas completos estão a um clique dos usuários e ainda relegam o inesperado para a televisão. A manutenção das audiências nas transmissões esportivas se justifica assim. O interesse por coberturas especiais, também em tempo real. Do mesmo modo que prende a atenção, o imprevisível escapa do domínio de qualquer diretor.
De novo, Elza Soares na televisão. Em 2019, ao apresentar “Não Tá Mais de Graça” na TV Globo, a cantora provocou a alteração das legendas da música para retirar um palavrão e, em algum nível, a ênfase contra o absurdo da realidade social. Não adiantou. A versão foi interpretada na íntegra. Na mesma emissora, há outros casos recentes desses colapsos momentâneos: na denúncia da precariedade dos programas de auditório por MV Bill; ou no pedido de Emicida pela libertação de Lula ao vivo.
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O intervalo que compreende o ano de 1961 dentro da biografia de Elza Soares é bastante provocativo pois se situa imediatamente depois dos primeiros lançamentos, mas antecede a Copa do Mundo de Futebol do Chile. Essa é uma lacuna interessante tanto para sua relação com o futebol quanto para o conjunto de sua obra: a cantora vivia o ápice do sucesso de “Se Acaso Você Chegasse”, composição de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins cuja interpretação a consolidou na canção popular.
O ato inaugural para a indústria fonográfica havia sido o álbum Bossa Negra – título desafiador para o gênero musical emergente, que há pouco despontara na zona sul carioca. Em contraponto a banquinhos e violões, Elza Soares projetava a voz e reforçava tradições de populações escravizadas que tinham derivado para a influência do jazz. E, entre um scat singin’ e outro, ligava o Brasil aos Estados Unidos pelo Atlântico negro. A inflexão, contudo, foi esmaecida pela histeria ao redor da vida com Garrincha a partir de 1962.
A crônica de então consagrou o Mundial, decidido em Santiago, como o início da calorosa e trêmula relação com o destaque da seleção brasileira naquele ano. Seu nome viria acompanhado de Garrincha até sua morte. Aliás, Elza Soares partiu no mesmo dia, 39 anos depois, da despedida do ponta. A música tantas vezes foi negligenciada quando manchetes que associavam crises matrimoniais, conflitos familiares e desventuras amorosas à cantora foram estampadas em jornais e revistas.
Se o começo de carreira arrebatador e a contraposição aos modismos nos discos foram subestimados, a relação com o esporte igualmente passou a ser exclusivamente mediada por Garrincha. Erro grave – Elza Soares era profundamente conectada ao futebol. Com a presença em Televisita Garson, a proximidade é retomada ao lado da percepção de que no princípio da televisão houve uma circulação de artistas pelos ambientes nem sempre plurais do futebol.
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Ombro a ombro com músicos como Orlando Silva e Cyro Monteiro, a cantora participou dessa iniciativa da TV Continental, que demonstra os esforços da linguagem televisiva para se tornar relevante para o público em 1961. A circulação pelos clubes era tensa: artistas negros compartilhavam, mesmo que momentaneamente, um espaço restrito a associados e atletas. A edição para a qual Elza Soares foi convidada, que se valeu das instalações do Flamengo, foi produzida pelo ator e diretor Haroldo Costa.
A partir de 2010, a carreira da cantora se deslocou para a conjugação entre música e crítica à sociedade brasileira. Duas das pontas, justamente, que haviam ficado soltas com os descaminhos da cobertura do relacionamento desde a metade do século anterior. A recepção à trilogia A Mulher no Fim do Mundo (2015), Deus é Mulher (2018) e Planeta Fome (2019) dá conta dessa diferença – os discos têm sonoridades eletrônicas e mensagens firmes, com a habitual performance exuberante.
Na pandemia, Elza Soares registrou como havia sido difícil conviver na Gávea, em especial no período em que Garrincha vestia a camisa do clube. No meio das piadas e dos comentários inapropriados, era improvável qualquer confraternização devido ao preconceito. Era uma mulher, negra e companheira do jogador de futebol que havia deixado a antiga família para se casar outra vez. O ambiente é similar ao de vários outros clubes, excludentes nos anos 1960 e na atualidade.
O depoimento está no livro Conte Comigo: Flamengo e Democracia, lançado postumamente. As críticas não a fizeram se afastar do Flamengo, clube pelo qual foi apaixonada por influência do pai Avelino. Elza Soares foi intérprete no carnaval de 1969 de “Baía de Todos os Deuses” com o Salgueiro – a canção recebeu uma versão rubro-negra para as arquibancadas e é conhecida como pioneira na vinculação entre escolas de samba e futebol. Em seus últimos anos, esteve engajada na campanha pela investigação da morte de outra torcedora-símbolo, Marielle Franco.
Este artigo é o resultado da parceria como o Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LEME-UERJ).
Helcio Herbert Neto é autor do livro Palavras em jogo (2024). Atualmente, realiza pesquisas sobre cultura popular em âmbito de pós-doutorado no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF, instituição pela qual também se tornou mestre em Comunicação. Formado em Filosofia (UERJ) e Jornalismo (UFRJ), é ainda professor e doutor em História Comparada pela UFRJ.