Nova lei articulada por elites empresariais e evangélicas aprofunda concentração
Lei dobra quantidade de canais de TV para o mesmo grupo e consolida oligopólios midiáticos. Pautas históricas para a democratização do setor seguem sem perspectiva de ação do governo federal. Leia no novo artigo do especial “Algo de novo sob o sol? Direito à Comunicação no primeiro ano do atual governo Lula”
Na campanha eleitoral de 2022, o candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dava sinais de que pretendia enfrentar pautas históricas do campo da democratização das comunicações. E a vitória do líder petista gerou a expectativa de que o Brasil poderia encerrar um trágico período para a pauta da democratização da mídia. No entanto, pouco antes da posse, o pragmatismo falou mais alto. O comando do recriado Ministério das Comunicações foi rifado em troca da governabilidade. Em 29 de dezembro, o deputado federal Juscelino Filho (União Brasil – MA) foi anunciado para a pasta. Além de integrar um partido descolado da pauta progressista do setor, o ministro pode ser considerado como típico representante do bolsonarismo. Ainda, seu partido é líder no ranking de políticos donos de mídia, como mostra levantamento realizado nas eleições de 2022.
No Poder Legislativo, a conjuntura é ainda menos favorável para uma proposta de regulação democrática da mídia. A Comissão de Comunicação é dominada por representantes da extrema-direita e ligados a grupos religiosos conservadores que possuem interesse nas concessões de emissoras de rádio e TV.
Dessa forma, o ano de 2023 terminou com o que vem sendo tratado como um dos maiores retrocessos recentes na luta contra o oligopólio midiático no Brasil: a aprovação do Projeto de Lei 07/2023, transformado na Lei 14.812/2024, sancionada em 15 de janeiro deste ano pelo presidente Lula.
A nova lei deve intensificar a concentração da mídia no Brasil ao alterar o Decreto-Lei 236/1967 e ampliar o número máximo de outorgas dos serviços de rádio e televisão de cada concessionário, além de permitir que organizações unipessoais executem serviços de radiodifusão. A lei cabe em uma página e está na contramão das reivindicações dos movimentos que lutam pelo direito humano à comunicação.
Para a jornalista Ana Claudia Mielke, da Coordenação Executiva do Intervozes, “a sanção da lei pelo presidente Lula contraria todo um movimento histórico pela democratização das comunicações no Brasil, que há pelo menos três décadas luta pela regulamentação dos artigos constitucionais e pela regulação econômica do setor”.
A proposta foi apresentada em fevereiro de 2023 pelo deputado federal e vice-presidente da Câmara dos Deputados, Marcos Pereira, que também é presidente do Partido Republicanos de São Paulo desde 2011, pastor neopentecostal na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e ex-vice-presidente da Rede Record.
Se, de um lado, os movimentos pela democratização veem a lei com preocupação, empresários do campo privado defendem que a mudança democratiza o acesso ao setor, promove liberdade econômica e facilita a atuação dos radiodifusores brasileiros.
Nova lei amplia histórica concentração midiática
A mudança na radiodifusão brasileira colabora para acentuar um cenário que se desenha há décadas, evidenciado em diversas pesquisas e levantamentos. O relatório Communications, media and internet concentration in Brazil, 2019–2021, por exemplo, destacou três particularidades do cenário midiático brasileiro em relação aos países latinoamericanos: a grande parcela de políticos detentores de concessões, a vinculação de grupos midiáticos a igrejas evangélicas e, além da concentração de propriedade, o domínio por um pequeno número de famílias. Trata-se de um cenário também identificado pelo Monitoramento da Propriedade da Mídia (MOM-Brasil), pesquisa realizada pelo Intervozes em 2019 e apresentada no livro Quem controla a mídia?, que registrou ainda o envolvimento de empresários do setor com o agronegócio, entre outros mercados.
A lei articula anseios das emissoras privadas e do setor religioso, como aponta, por exemplo, o alinhamento entre os posicionamentos do deputado federal Marcos Pereira, os da Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel) e a perspectiva televangelista. É também defendida pelo ministro das Comunicações, Juscelino Filho, que a considera importante para a modernização da radiodifusão no país.
Para o coordenador do Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de Brasília, Fernando Paulino, “há uma expectativa das entidades científicas e acadêmicas de que o atual governo federal passe a promover uma maior diversidade e uma maior possibilidade de atuação do serviço público de mídia, da comunicação comunitária e não apenas dê atenção aos pleitos e interesses mais relacionados às entidades empresariais com finalidades privadas”, destaca.
As alterações promovidas pela Lei 14.812 dobram o número de concessões de canais de televisão que o mesmo grupo empresarial pode ter e acabam com os limites por tipo de frequência ou localidade. Antes, cada empresa poderia ter apenas dez outorgas, sendo, no máximo, cinco nas frequências de VHF e até duas por estado. Agora, as empresas podem ter até vinte outorgas sem qualquer outra limitação. “A nova lei está legalizando a concentração da propriedade dos veículos de comunicação no Brasil e a formação de monopólios e oligopólios, o que é proibido pela Constituição Federal em seu artigo 221”, afirma Ana Claudia Mielke.
No caso das emissoras de rádio, o número de concessões continuou o mesmo, vinte para cada grupo empresarial. O problema é que não há mais limites pelo tipo de frequência ou o alcance da emissora, previstos anteriormente. Assim, a nova lei permite que uma única empresa ocupe até vinte canais de FM na mesma localidade.
Segundo o já citado Monitoramento da Propriedade da Mídia, a concentração midiática é um grave risco à democracia. Ana Mielke explica que “essa concentração da propriedade é altamente prejudicial para a liberdade de expressão e para o direito à informação, porque permite que esses poucos e mesmos grupos econômicos aumentem ainda mais o poder de definir aquilo que a sociedade ouve, assiste e assimila, seja em termos de opinião ou de cultura e modos de vida”.
Outro argumento que surge em defesa da lei é a necessidade de desocupação da faixa de Ondas Médias e o impedimento de alguns grupos à migração das emissoras para a faixa de FM por terem ultrapassado o limite na localidade. Para Ana Mielke, no entanto, “é extremamente constrangedor que um governo de esquerda, eleito muitas vezes com a agenda da regulação econômica da mídia, tenha se curvado aos interesses de expansão ilimitada do empresariado de mídia e também aos interesses crescentes dos mercadores da fé, expressos no chamado televangelismo”.
Avanços recentes ainda não contemplam demandas das rádios comunitárias
Em dezembro de 2023, o Ministério das Comunicações lançou o Plano Nacional de Outorgas (PNO) para rádios comunitárias, com a previsão de contemplar 1.418 localidades com outorgas do serviço. Desse total, 1.229 municípios ainda não possuem nenhuma emissora autorizada. O plano prevê a publicação de três editais: o primeiro, lançado em dezembro, traz a chamada para 562 municípios das regiões Norte e Nordeste. Outros dois editais estão previstos para abril e agosto deste ano. Além disso, outros 185 municípios aguardam a análise das propostas enviadas ao PNO de 2022. A expectativa é que, ao final do processo, todos os municípios do país tenham, ao menos, uma emissora de rádio comunitária.
Outro anúncio importante para as rádios comunitárias no país foi a abertura de cadastro para patrocínio na modalidade de “apoio cultural” pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom). A ação está prevista na Portaria 15, publicada em 6 de fevereiro de 2024. A exigência é que as emissoras estejam devidamente licenciadas, em funcionamento regular e que operem em área que possua representação da administração direta ou indireta do governo federal ou ainda unidade do Sistema Único de Saúde (SUS).
No entanto, ainda que o apoio cultural seja visto como um avanço, ele não contempla uma demanda histórica da categoria. Atualmente, as emissoras comunitárias só podem veicular anúncios no formato de apoio cultural, sem a possibilidade de divulgação de produtos, preços e promoções, situação que, segundo Geremias dos Santos, presidente da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (Abraço), limita o interesse dos comerciantes locais para publicidade. Geremias acrescenta que não há perspectivas de avanços para as pautas históricas do movimento.
Outras duas demandas não contempladas estão nas mãos do Poder Executivo e envolvem alteração do Decreto 2615/1998. Uma é o limite de alcance das rádios comunitárias a um raio de um quilômetro – que não leva em consideração as especificidades das comunidades nas diferentes regiões. A outra é a atual reserva de somente uma frequência para o serviço de radiodifusão comunitária em cada localidade. “Você tem, por exemplo, municípios com 10 mil a 15 mil habitantes, com duas emissoras funcionando na mesma frequência. Tirando esse artigo do decreto, você deixa a área livre e cumpre os direitos humanos da comunidade de acessar sua rádio”, explica o presidente da Abraço.
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Já no Legislativo, há mais de quarenta projetos de lei com demandas históricas, e algumas delas exigem mudanças na Lei 9612/1998. Contudo, não há encaminhamentos previstos para as pautas elencadas pelo presidente da Abraço.
Na Comissão de Comunicação (CCom) da Câmara dos Deputados, responsável, dentre outras questões, pela aprovação de outorgas e renovação de emissoras de rádio e TV, mudanças recentes também apontam para o abandono dessas pautas.
“Esse processo da divisão da Comissão de Ciência e Tecnologia e da Comissão de Comunicação foi muito maléfico. Antes, o perfil dos membros era conservador, mas ligado à direita tradicional. Hoje, você tem a radicalidade da extrema direita dentro da Comissão de Comunicação”, analisa a jornalista Ramênia Vieira, coordenadora de Incidência do Intervozes, a respeito do processo de desmembramento das comissões ocorrido em 2023.
Composta por 23 deputados, em sua maioria de partidos como União Brasil, Republicanos e Podemos, a comissão foi presidida, em 2023, pelo deputado Amaro Neto (Republicanos-ES), jornalista e apresentador de programas policialescos, como o Balanço Geral, em Vitória, e o Brasil Urgente Minas, em Belo Horizonte. Flertando com o bolsonarismo, o parlamentar elegeu a defesa da “liberdade de expressão” como principal tema de sua atuação. A esquerda estava representada por nomes como Carol Dartora (PT-PR) e Luiza Erundina (PSOL-SP).
Ramênia aponta ainda um avanço de políticos religiosos na Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados. “Você tem um processo que é uma liberação de canais muito mais facilitada para grupos empresariais, para grupos ligados a igrejas, para grupos radicais”, alerta. Essa foi uma das instâncias de aprovação do PL 07/2023 (Lei 14.812/2024). Para Geremias, um “dano grave à democracia” e uma falha “terrível” da esquerda, que não conseguiu se mobilizar contra a tramitação da proposta.
Cobranças necessárias a Lula e parlamentares
Para Geremias dos Santos, da Abraço, o presidente Lula deveria ter vetado o Projeto de Lei 07/2023 como tentativa de suscitar a discussão. A importância do debate também é reforçada por Ana Mielke. “É urgente cobrarmos também dos deputados do campo progressista que atuam nessas comissões uma resposta de por que se mantiveram inertes durante a tramitação do PL. O mínimo que esperamos é que se faça um grande barulho quando um projeto desse tipo inicia sua tramitação. E isso não aconteceu.”
Uma das integrantes da Comissão de Comunicação na Câmara dos Deputados à época, Carol Dartora (PT-PR), do campo progressista, evidencia a articulação entre empresários, o campo televangelista e a extrema-direita na radiodifusão. “A conjuntura que vislumbrei na Comissão de Comunicação é de uma comissão tomada por um discurso bolsonarista, que tem nos imposto uma atuação de resistência e de luta. Tivemos muitos embates naquela Comissão e um ambiente de muita violência política de gênero e raça. É uma comissão que foi tomada e não à toa (…). Nós da esquerda, preocupados com a regulação das plataformas, precisamos avançar na priorização dessa Comissão e nos discursos lá construídos”, alerta Dartora.
Para 2024, a tendência se assemelha à de 2023. O presidente eleito para a CCom é Silas Câmara (Republicanos-AM), pastor evangélico da Assembleia de Deus e empresário ligado à Rede Boas Novas de Comunicação. Em janeiro, o deputado teve o mandato cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas por captação ilícita de recursos e abuso de poder econômico na campanha de 2022. Ele continua no cargo enquanto aguarda o julgamento de recursos. Para este ano, o deputado promete muito trabalho na comissão. É um sinal de alerta de que as cobranças e embates das organizações que lutam pela democratização das comunicações também precisam se intensificar.
Aline Braga é jornalista e integrante do Conselho Diretor do Intervozes; e Iano Flávio Maia é jornalista, militante pelo Direito Humano à Comunicação e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.