Espanha balança bases da UE com a questão palestina
Recém empossado para um terceiro mandato, o presidente espanhol Pedro Sánchez, em companhia do premiê belga, fala de mover a UE para um reconhecimento do Estado Palestino
Em sua primeira viagem internacional após assumir seu terceiro mandato no governo espanhol, Pedro Sánchez, do Partido Socialista Obrero Español (PSOE), visitou Israel, a Cisjordânia e o Egito. Acompanhado do primeiro-ministro belga, o liberal Alexander de Croo, do Open Vlaamse Liberalen en Democraten (VLD), Sánchez encontrou na semana passada lideranças israelenses, palestinas e árabes. Sua mensagem era clara: defendia um cessar-fogo. Condenou os ataques terroristas do Hamas, como é esperado de um líder europeu. Contudo, suas ações seguintes mostraram um presidente espanhol disposto a balançar o que puder na União Europeia (UE).
Em seu encontro com Benjamin Netanyahu, em companhia de Croo, Sánchez afirmou que embora Israel tenha direito a autodefesa, deveria exercê-lo dentro do direito internacional. A ênfase do presidente espanhol em duvidar que Israel estaria respeitando estas leis internacionais viria a se tornar a atual crise diplomática entre os dois países. Sánchez também ressaltou que nada justificaria a matança de palestinos que segue ocorrendo desde que o conflito se agravou a partir do dia 7 de outubro, acrescentando que até pela experiência de seu país, seria válido um alerta aos israelenses de que terrorismo não se combate e não se vence apenas na força. A referência aqui é aos longos conflitos que a Espanha teve com o grupo terrorista basco Euskadi Ta Askatasuna (ETA). A pacificação deste conflito se deu com o presidente socialista espanhol José Luis Rodríguez Zapatero, que para isso teve que usar de diplomacia e acordos, além da repressão ao terrorismo. O presidente espanhol relembrou que não é possível uma solução que não envolva a existência e soberania de um Estado Palestino, reforçando o posicionamento já clássico da ONU, a solução de dois Estados.

Acontece que o presidente espanhol não estava somente na condição de chefe de governo do seu país. Ele também ocupa nessa ocasião a presidência rotativa do conselho da UE. Obviamente suas ações não indicam que a Europa estaria fazendo um giro para longe do seu apoio total a Israel, mas indica que Sánchez quer fazer o máximo que puder enquanto estiver no cargo, e está tentando empurrar uma mudança de rumo na UE sobre essa questão.
Em seguida à sua passagem por Israel, a comitiva europeia liderada pelo presidente espanhol partiu a Ramallah, cidade palestina na Cisjordânia, onde se encontrou com o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas. Nesta ocasião, Sánchez abertamente disse que não seria possível uma solução que não envolvesse Gaza manter um governo de origem palestina, que segundo o mandatário espanhol, deveria ser da Autoridade Palestina de Abbas.
Ele concluiu sua turnê com uma visita ao caminho de Rafah, na fronteira do Egito com Gaza, e também encontrou mais autoridades árabes, incluindo o presidente egípcio Abdul Fatah Khalil Al-Sisi e secretário-geral da Liga Árabe, Ahmed Aboul Gheit. Neste ponto de sua viagem, já tendo recebido algumas críticas do governo israelense, Sánchez afirmou, em coletiva de imprensa, que um grupo de países na UE estava disposto a pautar e defender o reconhecimento da soberania de um Estado Palestino. Antes mesmo de ser interpelado por algum jornalista, Sánchez acrescentou “e se não for possível fazer isso num contexto da UE, a Espanha é soberana e pode tomar este tipo de decisão unilateralmente”.
Israel apontou as falas dos representantes espanhol e belga como “conivência com o terrorismo”, chegando a chamar para consulta os embaixadores de ambos os países. O governo de Sánchez optou por não ceder à pressão diplomática e devolveu na mesma moeda, convocando a consulta a embaixadora israelense no país e rechaçando que Israel diga que a posição espanhola condiz com anuência com o terrorismo. Em uma resposta mais soberana do que esperado, Sánchez tomou uma posição que assustou lideranças europeias. A posição de Croo e da Bélgica se manteve mais amena. A última gota deste conflito diplomático até agora foi a retirada nesta quinta-feira (30), por parte de Israel, da sua embaixadora da Espanha, deixando o cargo vago até segunda ordem. Essa medida é quase um rompimento diplomático e foi justificada pelo país do Oriente Médio como uma resposta à insistência de Sánchez em não acreditar na lisura israelense no conflito, defendida por Netanyahu.
A decisão unilateral de reconhecer o Estado Palestino não é uma completa novidade, já que a Suécia o fez em 2014. Contudo, seria um posicionamento de Sánchez contra a hegemonia alemã e centro-europeia, que não reconhecem o Estado Palestino e estão recrudescendo punições e cerceamentos a manifestações de apoio à causa palestina em seus países. O chanceler atual da Alemanha não é reconhecido como um “líder do bloco” da mesma forma que Angela Merkel era. Contudo, Olaf Scholz, do Sozialdemokratische Partei Deutschlands (SPD), ainda é uma figura baluarte da UE, nem que seja por uma “herança” do que foram os anos de Merkel. Outros nove países da UE reconhecem o Estado da Palestina. Mas, ironicamente, são todos do outro lado da antiga Cortina de Ferro. Estes reconhecimentos ocorreram antes do ingresso dessas nações como Estados-Membros da UE.
Laços de ontem e hoje
A Espanha, entre todos os países europeus, talvez seja o que hoje é mais próximo do mundo árabe. Os laços são históricos, para o bem e para o mal. O país já foi um emirado na Idade Média, tendo a maioria do seu território governado por homens apontados pelo califa de Damasco, no chamado Al-Andaluz. No século XX, teve no Marrocos colonial a base do que seria a ascensão de seu ditador, Francisco Franco, acompanhado sempre de sua Guardia Mora, até que a independência do país a forçou a mudar de nome para Guardia de Franco. Por estes motivos e tantos outros, somente em 1986 oficialmente passou a ter relações com Estado de Israel, já que este havia boicotado anteriormente a entrada da Espanha na ONU, no pós-guerra, devido a Franco ser um dos aliados de Hitler que havia sobrevivido no poder. Em conjunto, a presença do premiê belga Croo também remete a laços culturais e de dominação de um Império Espanhol que já governou as terras flamengas da Bélgica, origem do atual primeiro-ministro do país. Estes laços parecem ter papel facilitador nesta questão, além das ambições de Sánchez.
O líder socialista espanhol se mostra cada vez mais disposto a encabeçar uma nova cara da esquerda europeia que não tema mais assuntos tabus e se proponha a fazer política sem medo, sem necessidade de se curvar aos padrões do discurso da direita e aos moralismos de uma esquerda acostumada demais às instituições. Com o apoio do ex-presidente Zapatero, Sánchez afirmou que na Espanha não haveria “nem Trump, nem Milei, nem Bolsonaro, nem o holandês Wilders, nem Feijóo e nem Abascal”. A menção a Geert Wilders, que recentemente foi o candidato de lista mais votada no parlamento dos Países Baixos, com o Partij voor de Vrijheid (PVV), mostra que Sánchez está disposto a travar algumas brigas em território europeu.
Internamente, a oposição tenta boicotar de maneira difusa seu terceiro mandato -especialmente considerando-se as crises recentes no país com o pacto de anistia dos socialistas espanhóis com os separatistas catalães envolvidos no Procés. A extrema-direita do Vox abertamente fala que Sánchez teria “novos amigos” no terrorismo do Hamas, tendo a parte mais extremada do partido tradicional conservador do país, o Partido Popular (PP), ecoado estes clamores. Já o ainda líder da oposição, Alberto Núñez Feijóo, criticou a instabilidade da política externa espanhola. O que não foi dito, mas foi recuperado por jornalistas, é que o plano que tinha sido apresentado pelo próprio PP nos seus intentos de fazer Feijóo presidente, como uma solução de política externa para a crise no Oriente Médio, era extremamente semelhante ao que está sendo aplicado por Sánchez, salvo a questão do reconhecimento do Estado Palestino.
Durante sua investidura à presidência do país, no último dia 16, Sánchez foi acompanhado de quase a totalidade dos parlamentares do segundo grupo partidário que participará de sua gestão, o Movimiento Sumar, portando broches de melancia, indicando seu apoio à causa palestina. A melancia se tornou um símbolo da causa devido a proibições do uso da bandeira do país, porque contém todas as suas cores.
Com poucas pausas humanitárias, um pouco de aumento nas ajudas enviadas aos palestinos em Gaza e atualmente um cessar-fogo momentâneo com troca de reféns, mediado pelo Reino do Catar, o conflito parece esfriar um pouco aos olhos da mídia. Não há indícios de que um acordo de armistício mais longo esteja no horizonte e um novo ataque terrorista do Hamas ocorreu na manhã da última quinta-feira (30) em Jerusalém, deixando pelo menos três mortos. O grupo assumiu a autoria do ataque, mesmo estando no período de uma pausa do conflito acordada com Israel, e defendeu que se tratava de uma resposta a tudo que o governo de Netanyahu havia cometido em Gaza desde outubro.
Apoios e imagem internacional
Enquanto isso, é perceptível o quanto a complacência com as ações de Israel está danificando as imagens dos governos ocidentais. Especialmente em governos que se elegeram com apoios de grupos de esquerda, como é o caso de Joe Biden, que teve um derretimento de popularidade visível. Sánchez possivelmente compreendeu isso e decidiu tomar uma posição mais audaciosa, tentando (junto de seus apoios do Sumar) empurrar a esquerda espanhola (e possivelmente a europeia) para mais perto de posições menos reféns de discursos que monopolizam esse debate no tema único da pauta israelense. O outro lado da moeda, nesta disputa de discursos, seria a social-democracia alemã, que ambiciona ser chamada de esquerda, mas apresenta uma das políticas mais conservadoras no continente europeu frente a esta crise. As pesquisas até agora apontam que a táctica de Sánchez seria mais popular que a de Scholz. A continuidade da violência em Gaza tenderia a ampliar ainda mais estas margens.
Do outro lado, as direitas mundiais também abraçam cada vez mais a causa israelense e sua tática é simplesmente igualar tudo que é palestino ao terrorismo do Hamas. Isso se vê inclusive no Brasil, mas já há sinais de queda de apoio. Por todo o Ocidente, especialmente onde os governos não são de direita, o desgaste é cada vez mais visível. Até Biden tenta afinar seu discurso para condenar os excessos de mortes em Gaza e apontar que Israel precisa fazer-se responsável para evitá-las. Acontece que os holofotes de movimentos de esquerda não estão aceitando a mudança de discurso de lideranças que tão fortemente apoiaram Israel no início deste conflito, por isso seguem rechaçando estes líderes e cobrando posições mais incisivas de represália ao governo de Netanyahu.
Percebe-se esta mudança até com o ofuscamento da visita do novo chanceler de política externa do Reino Unido, o ex-premiê David Cameron, a Israel e à Palestina, na mesma semana que a comitiva de Sánchez esteve no país. Cameron também fez críticas ao excesso de vítimas civis da guerra em Gaza. Contudo, sua ação diplomática ficou em segundo plano e só foi destacada por veículos de imprensa de seu país. Para a UE, as ações de Sánchez conseguiram mais atenção.
Em um contexto global, falar de reconhecer o Estado Palestino não é uma vanguarda, afinal já o fazem a maioria dos Estados da ONU e quase a totalidade dos Estados da América Latina, África e Ásia. No entanto, no cenário da Europa Ocidental, Sánchez navega em águas pouco exploradas. Especialistas espanhóis indicam que há pouca chance de que ele consiga mudar algumas bases da UE ou ter a relevância política para liderar o continente em uma reviravolta desta magnitude. Feijóo concordaria, afinal seus discursos remetem sempre a Sánchez ter que “pedir autorizações a seus aliados na Europa” para o que deseja fazer. Entretanto, o presidente espanhol até agora age como um presidente soberano e põe à prova se a UE aceita ser representada por parte de um presidente do sul do continente. Se Sánchez busca realmente conseguir uma mudança ou só marcar um posicionamento para sua frente política, isso ainda não está claro.
Daniel Azevedo Muñoz é professor e jornalista, mestre e doutorando em História Contemporânea pela Universidad Autónoma de Madrid. Integra o grupo de pesquisa em Jornalismo Popular & Alternativo, da Universidade de São Paulo.