EUA-Cuba, degelo sob os trópicos?
A União Europeia decidiu rever sua “posição comum” que, desde 1996, prevê o congelamento das relações com Cuba. Um movimento similar parece se desenhar do outro lado do Atlântico. Em 11 de outubro, editorial do New York Times intimava Washington a suspender o embargo imposto à ilha desde… 1962!Patrick Howlett-Martin
Demorou dezesseis anos para que os Estados Unidos reconhecessem a União Soviética; vinte para o Vietnã; trinta para a República Popular da China. No entanto, já se passaram 54 anos desde a derrubada de Fulgencio Batista, e Washington ainda se recusa a manter relações diplomáticas com Cuba.
Para alguns, contudo, não há dúvida: o degelo finalmente alcançou o mar azul-turquesa que rodeia a ilha. Em larga medida, essa convicção se assenta num aperto de mão: aquele trocado pelo presidente norte-americano Barack Obama e seu colega cubano Raúl Castro durante o funeral de Nelson Mandela em Soweto, no dia 10 de dezembro de 2013. O momento foi unanimemente qualificado de “histórico” por uma imprensa logo obcecada por uma pergunta: teria o gesto sido preparado? Impossível responder com certeza, mas um conjunto de circunstâncias sugere que a hipótese de uma encenação não é nada absurda.
Uma semana após o funeral do líder sul-africano, um editorial do Financial Times avaliava que “os argumentos em favor de uma flexibilização e, depois, da suspensão do embargo” eram “convincentes”, intimando a Casa Branca a “mudar sua política em relação a Cuba”.1 O jornalista conservador John McLaughlin reuniu diversos colegas para analisar o “caso”. Todos denunciaram as sanções, incluindo Patrick Buchanan, ex-candidato presidencial da ala ultraconservadora do campo republicano. Mas, assim como McLaughlin, Buchanan apoiou Ronald Reagan, para quem a reconciliação com o regime de Castro não era uma prioridade.2
Em fevereiro de 2013, Patrick Leahy, líder do grupo democrata no Senado, chefiou uma missão parlamentar bipartidária em Havana. Um ano depois, escreveu ao presidente Obama uma carta aberta coassinada pelo colega republicano do Arizona, Jeff Flake. Ambos pediam a suspensão do embargo e a normalização das relações, desejada, segundo uma pesquisa do Atlantic Council de fevereiro de 2014, por 56% dos cidadãos norte-americanos.3 Mencionando o comércio e os investimentos da União Europeia, do Canadá e dos principais países do subcontinente americano (México, Brasil, Colômbia), constataram: “Em vez de isolar Cuba, estamos isolando somente nosso país, com políticas ultrapassadas”.4
Em 16 de maio de 2014, a subsecretária de Estado norte-americana, Roberta Jacobson, encontrou-se em Washington com a diretora para os Estados Unidos do Ministério das Relações Estrangeiras de Cuba, Josefina Vidal. Na pauta, a inédita possibilidade de uma troca de prisioneiros. Poucos dias depois, em 19 de maio, sob o título “Support Cuban Society”, foi a vez de 44 personalidades (parlamentares, antigos altos funcionários do governo, oficiais de alta patente aposentados, empresários, dirigentes de fundações e ONGs) escreverem uma carta aberta a Obama. Nela, faziam dezesseis recomendações com o objetivo de desenvolver os contatos com a sociedade cubana, bem como os intercâmbios ligados ao comércio e ao turismo, a despeito da hostilidade do Congresso – o único habilitado a suspender o embargo. Entre os signatários estava John Negroponte, ex-chefe da inteligência norte-americana, que organizou, no início dos anos 1980, quando era embaixador em Honduras, a política de guerra contra o regime sandinista na Nicarágua, política condenada em 1986 por dois decretos do Tribunal Internacional de Justiça.
No entanto, o essencial do dispositivo legal de exceção contra a ilha permanece. Ela ainda está na lista de “países terroristas”. O embargo foi estendido a empresas estrangeiras (Cuban Democracy Act, 1992; Helms-Burton Act, 1996), o que sufoca a economia e impõe a outros países sanções unilaterais contra Cuba. Disposições migratórias específicas recompensam os emigrados que entram ilegalmente no território norte-americano. Todo ano o Congresso aprova uma ajuda financeira a projetos anticastristas de “defesa da democracia”. Desde 2006, um programa de incentivo tenta atrair médicos cubanos envolvidos em acordos de cooperação no exterior.5 Por fim, durante o mandato de George W. Bush (2001-2009), Washington dirigiu a elaboração de um projeto de transição pós-Castro que não foi questionado por Obama.
Antes do embargo, que data de janeiro de 1962, dois terços do comércio da ilha eram com os Estados Unidos. Hoje os portos cubanos estão fechados aos navios com a bandeira norte-americana, salvo, desde 2000, aqueles carregados de produtos agrícolas e medicamentos. O órgão responsável pelo controle de ativos no exterior (Office of Foreign Assets Control, Ofac) do Departamento do Tesouro norte-americano dedica boa parte de suas operações a fazer cumprir o embargo unilateral, às vezes recorrendo a medidas extremas: ao longo do tempo, proibiu a importação, nos Estados Unidos, de equipamentos contendo níquel cubano, de chocolate suíço feito com cacau cubano e também de tabaco cubano, mesmo quando comprados em outros países ou em duty free. O órgão conseguiu reter, em janeiro de 2011, a contribuição para Cuba do Fundo Global de Luta contra a Aids, Tuberculose e Malária, no valor de US$ 4,2 milhões.
Desde 2009, grandes bancos internacionais tiveram de pagar multas pesadas por transações financeiras com Cuba. Eles contribuíram com mais de US$ 3,2 bilhões ao Tesouro norte-americano. E o montante das multas só aumenta: US$ 619 milhões para o ING em junho de 2012; US$ 1,9 bilhão para o HSBC em dezembro de 2012; US$ 8,9 bilhões para o BNP-Paribas em maio de 2014 (incluindo-se nessa quantia também infrações dos embargos contra o Irã e o Sudão).6 Nem o embaixador da França em Cuba escapou ao Ofac: sua conta particular no Banco Transatlântico (grupo CIC) foi bloqueada pela justiça norte-americana depois que ele fez um cheque em dólares para comprar, em Havana, um automóvel de marca francesa para uso pessoal. Além disso, uma cláusula proíbe que empresas de países terceiros aluguem ou vendam em Cuba bens e serviços cuja tecnologia contenha mais de 10% de componentes norte-americanos – caso da ampla maioria das plataformas de petróleo e de grande parte dos equipamentos de saúde.
É verdade que, desde 2000, ressalvas foram introduzidas nas legislações de exceção aprovadas a partir da presidência de John Fitzgerald Kennedy (1961-1963). A Emenda Nethercutt autoriza as exportações agrícolas norte-americanas. Em 2012, Cuba foi o 43o mercado de exportação do setor agrícola norte-americano (entre 229), em um valor de US$ 457 milhões (as compras cubanas devem ser pagas em dinheiro). Após a organização em Havana, em 2002, de uma feira agrícola norte-americana inaugurada pelo governador de Minnesota, os governadores dos estados cerealistas, por vezes muito conservadores (Montana, Dakota do Norte, Minnesota, Idaho…), fizeram o mesmo. E ocorrem episodicamente consultas bilaterais sobre imigração, meteorologia, correio (suspenso em 1963) e combate ao tráfico de drogas.
Em 2013, 600 mil norte-americanos de origem cubana visitaram Havana, o equivalente a cerca de dezoito voos diários. Enquanto os cidadãos norte-americanos que partem anualmente para Cuba precisam obter uma autorização prévia, o deslocamento de cidadãos norte-americanos nascidos na ilha não sofre nenhuma restrição. A suspensão da obrigatoriedade de autorização de saída do território cubano, que entrou em vigor em dezembro de 2012, causou um aumento significativo das partidas regulares: em 1o de setembro de 2013, 47 mil pessoas deixaram o país, a grande maioria em direção à Flórida. A legislação cubana não se opõe mais à sua volta, desde que a permanência no exterior não exceda 24 meses. Nos seis primeiros meses de 2013, os Estados Unidos emitiram mais de 16,7 mil vistos – uma alta de 79% em relação a 2012.
Quase dois terços da população da ilha contariam com remessas da comunidade cubana nos Estados Unidos. Em 2012, esse montante chegaria, segundo fontes do governo cubano, a cerca de US$ 2,6 bilhões: um aumento de aproximadamente 13% em relação a 2011, apesar de uma regulamentação restritiva.7 Diante de uma economia fossilizada (com exceção de alguns setores dinâmicos, como turismo, assistência médica e biotecnologia), e interessado em mobilizar uma população reduzida à subsistência, o presidente Castro colocou em prática medidas de abertura econômica.8 Isso incentiva as remessas financeiras, que se traduzem em investimentos de caráter privado: pequenos negócios, mercado imobiliário, restaurantes, hotelaria domiciliar…
Nos Estados Unidos, os exilados cubanos concentram-se na Flórida, onde constituem de 5% a 8% de um eleitorado igualmente dividido entre democratas e republicanos. Esse estado elege 25 dos 435 representantes no Congresso e teve um papel decisivo nas eleições presidenciais de 2000 e 2004.
Há até pouco tempo, os candidatos à Casa Branca estavam convencidos de que não podiam se pronunciar em favor de uma melhoria das relações com Havana sem comprometer sua eleição ou a dos parlamentares de seu partido na Flórida, mas as coisas estão mudando. Enquanto seu marido declarou-se expressamente favorável ao embargo durante seus dois mandatos, Hillary Clinton, que pretende portar as cores democratas nas eleições presidenciais de 2016, escreveu em seu último livro: “No final de meu mandato, pedi que o presidente Obama reconsiderasse nosso embargo contra Cuba. De nada servia comprometer nossos projetos com o resto da América Latina”.9
Os jovens estão se distanciando das escolhas políticas dos mais velhos. Durante a eleição presidencial de 2012, a participação do voto republicano caiu entre a comunidade cubana. A Universidade de Miami também acaba de publicar os resultados de uma pesquisa revelando que, agora, a maioria dos exilados quer mais abertura em relação à sua pátria de origem, declarando-se contra o embargo. Em 1991, essa porção era de apenas 13% da população, contra 22% em 1997, 34% em 2004, 46% em 2011 e 52% em 2014 (The Miami Herald, 17 jun. 2014).
No Congresso, porém, os representantes originários de Cuba militam contra uma aproximação com a ilha. E isso serve tanto para os democratas Robert Menendez, Albio Sires e José Antonio “Joe” Garcia como para os republicanos Rafael Edward “Ted” Cruz, Marco Rubio (ambos candidatos potenciais à Casa Branca), Mario Rafael Diaz-Balart e Ileana Ros-Lehtinen. Próximos às organizações anticastristas US Cuba Democracy e Cuban American National Foundation, esses parlamentares ainda pesam de maneira decisiva. Eles presidem, ou presidiram, as comissões de relação exteriores do Senado (Menendez) e da Câmara (Ros-Lehtinen).
Nessas condições, a mudança esperada pode demorar. É verdade que, sob a liderança de governos próximos a Havana, a América Latina estabeleceu organismos de integração regional, que excluem os Estados Unidos.10 É verdade que os países do subcontinente ameaçaram boicotar a próxima Cúpula das Américas, prevista para 2015, se Cuba não estiver envolvida. É verdade que 22 votos sucessivos na Assembleia Geral das Nações Unidas pediram a suspensão do embargo (188 a favor e dois contra, na 68a sessão em 2013). Mas nada disso terá resultado enquanto as considerações de política interna dos Estados Unidos estiverem acima do interesse de melhorar a relação bilateral.
Todavia, um fato novo: o patronato norte-americano mostra-se agora mais favorável. Em maio de 2014, sua figura de proa, Thomas Donohue, viajou para Havana, com uma delegação de empresários, a fim de avaliar a política de abertura do presidente Castro. Em seu retorno, exortou Obama a “tomar novas medidas de flexibilização”, de modo a “abrir um novo capítulo nas relações entre Estados Unidos e Cuba”.11 Por que ficar longe de um mercado que mantém estreitas relações com o Brasil e a Venezuela e em breve poderá fazer parte de um novo acordo, mais flexível, com a União Europeia? Sem contar o interesse manifestado pela Rússia: em fevereiro de 2013, o primeiro-ministro do país, Dmitri Medvedev, levou a Havana uma grande delegação de empresários. E há ainda a China, o terceiro maior parceiro comercial de Cuba, logo atrás da União Europeia.
Patrick Howlett-Martin é Diplomata.