O genocídio em Gaza: uma massiva operação de limpeza étnica em curso
A destruição tem um propósito: apagar e esvaziar os palestinos de Gaza para anexar seu território, uma operação de limpeza étnica que é apoiada pelos EUA, sob a aprovação de boa parte da Comunidade Internacional. Confira o último artigo da série “Limpeza étnica na Palestina”
O dia 7 de outubro de 2023 tem sido construído como uma data central nos assuntos referentes à Palestina, com a operação conduzida pelo partido político Hamas, a partir da Faixa de Gaza. Estas ações, diferentemente do que se tem noticiado nos grandes veículos de mídia, não acontecem em um “vácuo” contextual, mas sim como consequência da imposição de políticas coloniais israelenses, da manutenção da ocupação militar da Cisjordânia, das políticas segregacionistas contra a população palestina de “dentro” (expressão local, do árabe Al Dakhel, que se refere ao espaço territorial que a comunidade internacional compreende como Israel) e, em especial, como consequência ao bloqueio à Faixa de Gaza.
Entre as agressões recentes, colonos israelenses fecharam a ala sul da Mesquita de Al Aqsa, em Jerusalém, no dia 03 de outubro, permitindo a entrada de um contingente de 500 a 600 colonos no local. No dia 05, outros milhares de israelenses ocuparam toda a área. No dia seguinte, o Estado de Israel fechou as entradas da Cisjordânia, impedindo palestinos de irem e virem. Houve também a invasão destes colonos na Mesquita de Abraão, na cidade de Khalil (Hebron), agressões e até assassinatos de palestinos.
Foi neste contexto que o Hamas declarou uma operação de retomada, denominada Operation Al-Aqsa Flood (Operação Inundação/Tempestade de Al-Aqsa). O grupo lançou mísseis e conseguiu, pela primeira vez na história recente local, avançar por terra, romper pontos do bloqueio terrestre e ocupar postos militares israelenses, rendendo militares e tomando assentamentos nas cercanias das divisões terrestres. As ações israelenses, em contrapartida, não se deram apenas no que o Estado sionista passou a chamar de “guerra ao Hamas”, mas também abriram caminho para a continuidade de um projeto colonial em curso.
As imagens do que está sendo chamado de “maior genocídio televisionado da história moderna” estão sendo transmitidos por jornalistas no local. A difusão dos acontecimentos em grande escala, via redes sociais, impactou a percepção de um público massivo. As cenas de crianças sendo brutalmente massacradas, o luto de suas famílias e a destruição de toda a estrutura urbana em Gaza tem provocado enorme comoção em nível global.
Leia os outros artigos da série “Limpeza étnica na Palestina”
Al-Nakba: a criação de Israel e a catástrofe Palestina
A Guerra dos Seis Dias: 1967, o início da ocupação
Um país fora do lugar: os refugiados palestinos
Os novos modos de guerra contra populações civis na Palestina
Os ecos da diáspora: a limpeza étnica e apartheid à luz das manifestações palestinas no Brasil
Terror em nome da “Lei”: a violência de colonos extremistas na limpeza étnica da Cisjordânia
Há uma ampliação da consciência acerca da destruição de Gaza pelo Estado de Israel que está sendo atribuída ao trabalho de influenciadores digitais, criadores de conteúdo e jornalistas palestinos – que difundem, via redes sociais, informações às quais o público não tem acesso pelos meios de comunicação habituais. Essa difusão vem alterando o enquadramento habitual de pessoas palestinas e sobre a ocupação israelense da Palestina como um assunto de ordem política de origem colonial.
Cortes de energia e água, bombardeios ininterruptos e mortes de civis
Os ataques israelenses foram – e seguem sendo – avassaladores, com a prática do carpet bombing, que cobre grandes áreas densamente povoadas com o objetivo de causar danos generalizados e destruição massiva. São mais de 60 dias (até o momento em que escrevemos) de bombardeios ininterruptos em Gaza, que destroçaram escolas (inclusive as da ONU), universidades, mesquitas, igrejas, hospitais, telecomunicações e bairros residenciais inteiros, arrasando toda a estrutura urbana do enclave. Além disso, não há qualquer possibilidade de evacuação concreta, haja vista que nos “corredores humanitários” foram observados bombardeios contra a população em deslocamento. O breve cessar-fogo para a troca entre israelenses capturados e prisioneiros políticos palestinos, encarcerados em prisões israelenses durou poucos dias.
Além das investidas militares, o Estado de Israel explicitou o controle que exerce sobre a Faixa de Gaza ao deliberadamente cortar o abastecimento de combustível, gás, alimentos, energia elétrica, serviços de telecomunicações e internet. Estas ações deixaram a Faixa incomunicável em inúmeros momentos, já que os cortes acontecem de forma intercalada. As notícias passaram a ser transmitidas por satélites e outros meios alternativos de comunicação, quando disponíveis, como alguns utilizados por ONGs e instituições diversas com base na Cisjordânia.
Segundo o Ministério de Saúde Palestino e a organização de saúde Palestine Red Crescent Society, os bombardeios israelenses à Faixa de Gaza assassinaram, até agora, 17.487 palestinos e feriram 46.480, sem contar aqueles que não foram resgatados dos escombros. Na Cisjordânia, são 274 mortos, 3.365 feridos e mais de 7.000 pessoas presas. Os números não param de crescer, ao passo que o colapso do sistema de saúde de Gaza tornou virtualmente impossível manter uma contagem de mortos e feridos acurada.
Os processos de Oslo, intifada e eleições palestinas
O Movimento de Resistência Islâmica, mais conhecido como Hamas, é um partido político sunita, oriundo de um movimento de libertação da ocupação colonial israelense, que a entende como uma extensão dos projetos coloniais europeus. O movimento surge no contexto da Primeira Intifada (1987). Como reação a esse levante popular, aumenta-se o controle de mobilidade dos palestinos, a construção de assentamentos israelenses em territórios palestinos, simultaneamente à restrição da construção e ao aumento da destruição de casas palestinas.
Em 1993, os Acordos de Oslo põem fim à Primeira Intifada, com a promessa incumprida de retirada dos assentamentos ilegais israelenses e das forças militares da ocupação da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. É nesse cenário que ocorrem eleições locais para o governo palestino, marcadas por uma disputa política acirrada entre a Autoridade Nacional Palestina e o Hamas, com vitória do último. Vale notar que, nos processos dos acordos de Oslo, a OLP emite uma nota reconhecendo a soberania do Estado de Israel nos limites dos chamados “territórios de 1967”. Em contrapartida, o Estado israelense emite uma breve nota, sem assumir a autonomia de um Estado palestino, reconhecendo, apenas, a OLP “como representante legítima dos palestinos”.
Bloqueio à Gaza e bombardeios periódicos: a rationale da limpeza étnica
A partir de 1967, após a Guerra dos Seis Dias, o Estado de Israel passa a ocupar a Faixa de Gaza nos moldes da ocupação ainda em curso na Cisjordânia, com a implementação de colônias ilegais. Entretanto, a ocupação da Faixa finda no ano de 2005, com a retirada das tropas militares e o desmantelamento dos assentamentos, deslocando colonos para a Cisjordânia e outros espaços. Em 2007, inicia-se o processo da implementação do bloqueio à região, que passa a ser bombardeada ao longo dos anos.
Entre os episódios mais brutais, se encontram os ocorridos de 27/12/2008 e 18/01/2009. Já nesse momento, a Human Rights Watch acusou Israel de uso de fósforo branco contra população palestina, um tipo de armamento proibido. O Centro Palestino de Direitos Humanos, declarou que 1.434 palestinos foram mortos, incluindo 960 civis, 239 policiais e 235 militantes. Entre julho e agosto de 2014, o sequestro e morte de três jovens israelenses foi atribuído ao Hamas, mas nunca provado ou assumido pelo grupo. Em retaliação, extremistas israelenses sequestraram e mataram o adolescente palestino Mohammed Abu Khdeir. Além disso, foi o pretexto para Israel lançar bombardeios sobre Gaza, que mataram 2.000 pessoas.
Em 2021, a Esplanada das Mesquitas foi invadida em pleno mês do Ramadan. Além disso, foram emitidas uma série de ordens de despejo para palestinos de Jerusalém Oriental (em Sheikh Jarrah), em continuidade com a política de anexação territorial. Em resposta a esses ataques, o Hamas realizou a operação Espada de Jerusalém, com bombardeios aéreos em Tel Aviv que resultaram em 13 mortes de israelenses. Por sua vez, o Estado de Israel atacou Gaza por 11 dias consecutivos, matando 261 palestinos, incluindo 67 crianças e 41 mulheres, e mais de 2.200 feridos, segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas.
“Existe, neste momento, uma oportunidade única e rara de evacuar toda a Faixa de Gaza em coordenação com o governo egípcio”
A frase que abre este tópico está contida em um relatório publicado no dia 17 de outubro de 2023, intitulado “Plano para o reassentamento e reabilitação final de toda a população de Gaza no Egito: aspectos econômicos”. O relatório foi escrito originalmente em hebraico pelo MISGAV – Instituto de Segurança Nacional e Estratégia Sionista, coordenado pelo Ministério de Inteligência Israelense, em chefia da ministra Gila Gamliel, do partido extremista Likud. Segundo o jornal Mondoweiss, este documento interno teria sido vazado acidentalmente quando enviado para uma organização sionista pró-assentamento denominada “The Unit for Settlement – Gaza Strip”, mas que logo veio à público internacional.
Assim como sugerem a frase e o título, o Ministério vai apontar no documento para a “oportunidade única e rara” de levar a cabo o velho projeto colonial sionista de eliminação total da população palestina da Faixa de Gaza. População esta que, segundo o órgão, deverá ser deslocada e “reassentada” na península do Sinai, norte do Egito, assim que a suposta “guerra contra o Hamas” chegar ao fim.
Para pôr esse plano em prática, o Ministério sugere três etapas para o processo de limpeza étnica: “transferir”, “expulsar” e “reassentar”. A primeira seria a transferência forçada de toda a população do norte de Gaza para o extremo sul, a ser realizada em duas fases. Antes do cessar-fogo, Israel realizou a evacuação de 1 milhão de civis, dentro de 24 horas, da região Norte de Gaza para Khan Younis, no sul. Essa evacuação passou a ser dada a partir de ligações com gravações automáticas, em árabe, assim como através de panfletos que foram jogados por aviões do exército.
A segunda fase da transferência ilegal aconteceu após o cessar-fogo, quando o exército ordenou que todos os palestinos de Khan Younis evacuassem, desta vez, para o extremo sul de Rafah. Ao mesmo tempo, um campo de refugiados temporário – ao que chamaram de “cidades-tendas” – deverá ser estabelecido na fronteira entre o Egito e Gaza. No momento, 1.8 milhões de palestinos foram deslocados para a cidade de al-Mawasi, uma área estreita de apenas 6.5 quilômetros quadrados, desértica, de terreno arenoso e sem qualquer estrutura para comportar 2.2 milhões de pessoas. Na internet, internautas de Gaza e jornalistas chamaram o local de “abismo humanitário” e já publicaram várias imagens da área, que se encontra superlotada, sem tendas de abrigo, banheiros ou cozinhas.
A segunda etapa do processo de limpeza étnica, de acordo com o relatório, é expulsar todos os palestinos de Gaza para o Egito. Essa evacuação forçada seria realizada a partir do estabelecimento do que eles chamam de “corredor humanitário”, para que os refugiados, no processo de expulsão, sejam “auxiliados” pela ONU. A terceira e última etapa, ainda segundo o mesmo documento, planeja a construção de “cidades satélites” em uma “zona estéril” localizada no norte do Egito, além de um muro quilométrico para impedir que os habitantes retornem ao seu país e aos seus lares de origem. Políticas estas já vivenciadas pelos palestinos nos dias da Nakab, em 1948 e na guerra de 1967.
Para que esse plano de limpeza étnica seja realizado, de acordo com a visão do Ministério, de maneira “sustentável” e “realista”, o órgão sugere a necessidade de uma “cooperação” com o maior número de países possível para que estes possam receber os refugiados palestinos através de outros programas de reassentamento. Os países sugeridos, além do Egito, foram: Canadá, países europeus (como Grécia e Espanha) e norte da África. Após o projeto do Ministério receber diversas críticas internacionais, Gila Gamliel rebateu em uma fala pública na qual disse que, em vez de a comunidade internacional “desperdiçar dinheiro” para reconstruir Gaza, ela poderia, ao contrário, “ajudar nos custos do reassentamento, ajudando o povo de Gaza a construir novas vidas em seus novos países de acolhimento”.
Quando negociado pessoalmente com o presidente egípcio, Abdel Fattah el-Sisi, o ministério revela ter analisado que o país teria em média de 10 milhões de unidades de apartamentos “disponíveis” e “vazios” sob propriedade governamental e privada, além de lotes de terras vazias na cidade do Cairo que poderiam servir para a construção de “blocos de assentamentos” a serem ocupados pelos refugiados de Gaza. O ministério foi ainda mais longe, apresentando um orçamento do que seria uma “ajuda de custo” que cada família palestina deveria receber de Israel e de países estrangeiros, calculada no valor de 19 mil dólares. Esse projeto foi imediatamente rejeitado pelo presidente egípcio, que declarou temer que, se todos os palestinos deixarem Gaza, Israel certamente tomará o enclave inteiro para si, nunca permitindo o retorno dos palestinos, como fez em 1948.
“Estamos voltando para Gush Katif… vamos estabelecer a praia de Nova na costa de Gaza”
Ao mesmo tempo que o ministério do governo traça um projeto de limpeza étnica do povo palestino na Faixa de Gaza, membros do partido Likud, Otzma Yehudit, Partido Sionismo Religioso, entre outros políticos kahanistas da coalização fazem campanhas dentro do Knesset (parlamento) para a construção de novos assentamentos coloniais em Gaza. Um dos projetos é alterar a Lei de Desengajamento de 2005, que proíbe a entrada de israelenses e construção de colônias judaicas no enclave. A intenção é revogar a aplicabilidade da lei para permitir a transferência ilegal de cidadãos israelenses, bem como a construção inicial de pelo menos quatro grandes colônias autodenominadas “Nova” (o nome bíblico para Gaza no judaísmo sionista). O ministro do Patrimônio, por exemplo, teve a ousadia de sugerir a opção de “lançar uma bomba nuclear sobre Gaza” para que a Faixa esteja completamente vazia de seus habitantes durante a construção destas colônias.
Essas declarações expressando o desejo de morte e colonização em Gaza não se restringem aos membros do Knesset. O exército, líderes espirituais messiânicos e chefes de colônias na Cisjordânia também têm uma influência de peso dentro dos fóruns, onde as decisões sobre a guerra são tomadas. De um modo geral, todas estas figuras de poder comandam o governo de direita ultranacionalista e todas as decisões relacionadas aos projetos sionistas de assentamentos.
Tomemos como exemplo o chefe do Conselho Regional para Assentamentos da Cisjordânia, Yossi Dagan, um colono extremista filiado ao Likud e porta-voz de Yitzhar, o assentamento radical onde reside, que vem apelando para a reconstrução de colônias na Faixa de Gaza desde o início das ofensivas. Dagan tem uma longa história de atividade pró-assentamento e foi defensor fervoroso da expansão de colônias judaicas na Faixa de Gaza, no início dos anos 2000. Além de comandar atualmente 11 organizações de base que militam pelo retorno à Faixa (campanha nacional chamada “Retorno para casa”), Dagan também tem laços estreitos com evangélicos cristãos de direita que prometem injetar verbas significativas nas futuras colônias judaicas. Dagan também lidera, junto a rabinos extremistas, a grande máfia de colonos que perpetram ataques terroristas diários na Cisjordânia. Vale lembrar que este grupo de colonos radicais são remanescentes dos 8 mil colonos retirados da Faixa de Gaza em 2005, e que agora clamam por seu retorno.
Até o momento, a posição oficial israelense é que a operação em Gaza, assim como o deslocamento da população do norte para o sul, são temporários. No entanto, a comunidade internacional e a maioria dos palestinos estão céticos com as declarações de Netanyahu de que o Estado de Israel e seu exército deverão retomar o controle militar de “segurança” por “um período indeterminado”. Os palestinos vivem sob ocupação colonial que se dizia temporário há 56 anos (se contarmos a partir de 1967). Netanyahu historicamente apoia a expansão de assentamentos ilegais na Cisjordânia e mantém seu projeto de anexar Gaza ao seu Estado. A destruição em curso tem um propósito: apagar e esvaziar os palestinos de Gaza para anexar seu território, uma operação de limpeza étnica que é apoiada – com bilhões de dólares e armas – pelos EUA (que acaba de vetar mais um pedido de cessar fogo no Conselho de Segurança), sob a aprovação de boa parte da Comunidade Internacional, em especial de países europeus.
Michelle Ventura é doutoranda em Antropologia pela UFRN, onde pesquisa atualmente violência colonial na Palestina. Helena de Morais Manfrinato Othman é doutora em Antropologia Social pela USP e pesquisadora associada ao CEBRAP. Pesquisa refúgio palestino da Síra, Islã no Brasil e redes de acolhimento migratório. Bárbara Caramuru é pós-doutoranda em Antropologia pela UFPR, com pesquisas sobre Palestina a partir do gênero e interseccionalidade, diáspora e mobilidades. Rafael Gustavo de Oliveira é pós-doutorando em Antropologia pela USP, realizando pesquisa, na Palestina, acerca de construções locais de territorialidades e suas componentes identitárias.
O conjunto de textos presentes neste Especial “Limpeza Étnica da Palestina” reúne o pensamento de especialistas nos estudos palestinos. Em especial, apresenta reflexões sobre o processo de limpeza étnica promovido pelo Estado de Israel contra palestinos, documentado pela historiografia recente, e agravado nas últimas semanas. Busca, nesse sentido, inserir as últimas ações militares de Israel contra a Faixa de Gaza e a Cisjordânia dentro de uma linha temporal que atravessa o século XX, abordando os temas do sionismo, da Al Nakba e da ocupação colonial da Palestina. O Especial foi organizado pela antropóloga Michelle Ventura, que foi observadora internacional de direitos humanos na Cisjordânia nos anos de 2015 (Jerusalém Oriental) e 2022 (Vale do Jordão). Atualmente é doutoranda em Antropologia Social na UFRN, onde tem pesquisado violência colonial na Cisjordânia.