Israel e a religião da segurança
Após os sangrentos atentados na França, muitos políticos apresentaram como modelo a gestão das questões de segurança realizada por Tel-Aviv. Porém, eles nem sempre falam dos efeitos negativos nos planos político, econômico e social. Na sociedade israelense, a resposta militar ao terrorismo já mostrou seus limitesGideon Levy
Israel costuma ser visto como um dos Estados mais religiosos no mundo. E é mesmo, mais do que possamos imaginar. Aqui, religião e Estado são uma coisa só. A ortodoxia judaica acompanha os cidadãos do nascimento até a morte, sejam eles crentes, agnósticos ou ateus. Mas, como se isso não bastasse, há um segundo dogma que molda a vida dos israelenses: o da segurança. Cada etapa de sua vida é marcada por essas regras implacáveis.
Esse dogma fundamenta-se na crença de que Israel vive sob uma ameaça perpétua – convicção baseada em uma leitura da realidade, mas que também se alimenta de mitos meticulosamente conservados. Nossos governantes orquestram campanhas de medo. Exageram os perigos reais, inventam outros e reforçam a ideia de que seríamos vítimas de perseguições constantes. E isso desde a criação do Estado.
Durante a guerra de 1948, após o Holocausto, tal atitude certamente se justificava: os israelenses não se viam como Davi enfrentando Golias? Mas, desde então, o país alcançou a posição de potência regional sólida. Nosso Exército está entre os mais poderosos do mundo e dispõe de um arsenal tecnológico sofisticado. Mesmo assim, a crença permanece: Israel estaria lutando por sua “sobrevivência”, mesmo quando enfrenta organizações cujos membros andam praticamente de pés descalços, como o Hamas; mesmo que, com exceção do Irã, nenhum Estado poderoso esteja em sua mira; e mesmo que sejam as nossas tropas que estejam realizando operações de ocupação. A receita não é nova nem se restringe a nosso país: real ou fictícia, a ameaça externa justifica a “união nacional” e o controle do Estado sobre a população.
De acordo com o centro de pesquisa IHS, em 2015 Israel tinha o 16º maior orçamento de defesa do planeta: US$ 15,6 bilhões. Esse orçamento equivale a 6,2% do PIB, e nesse quesito o país fica em segundo lugar no mundo, atrás apenas da Arábia Saudita. Mas ele é apenas o 98º em termos de população, com 8 milhões de habitantes. O orçamento da defesa israelense é duas a seis vezes mais elevado que o de outras nações industrializadas. Apesar de sua participação nas despesas do Estado ter diminuído, em termos absolutos o montante nunca parou de crescer. O Global Firepower Index, publicado no ano passado,1 coloca o Exército israelense no 16º lugar em termos de poder de fogo, com um tanque para cada 1.930 cidadãos (contra um para cada 5.948 na Coreia do Norte e um para cada 157.337 na França) e um caça para cada 11.800 cidadãos (contra um para cada 23.904 nos Estados Unidos e um para cada 51.914 na França).
A bagatela de catorze submarinos
Esses gastos, proporcionalmente maiores que os dos Estados Unidos, da Rússia e da França, são realizados em detrimento de outros setores: educação, saúde, habitação, transporte e recepção de migrantes. Mas essa preferência orçamentária não passa por nenhum debate público, mesmo quando milhares de cidadãos saem às ruas para protestar contra o preço do aluguel – como no verão de 2011, no maior protesto social de nossa história.2 O país dispõe da bagatela de catorze submarinos. Não bastariam cinco, talvez dez, para tranquilizar os mais preocupados? O dinheiro devorado na construção de cada um desses equipamentos – 1,4 bilhão de euros – seria suficiente para revitalizar bairros inteiros. Embora os israelenses se queixem do custo de vida e da deterioração dos serviços sociais, eles aceitam sem hesitar o orçamento da defesa e a retórica securitária do poder. Como discutir a fé?
É preocupante observar que alguns países europeus, incluindo a França, vão pelo mesmo caminho. Envolver-se em ladeiras tão íngremes pode acabar criando justificativas para todas as violações da democracia. Os israelenses já passaram por isso: a “segurança” obscurece a injustiça. Ela limpa o crime e cobre com um verniz de legitimidade as práticas mais discriminatórias. Dirigentes políticos, generais, juízes, intelectuais, jornalistas: todo mundo sabe, mas cada um soma seu silêncio ao da maioria.
Quando entramos de carro no aeroporto de Ben Gurion, precisamos abrir a janela para cumprimentar o agente de segurança, armado. A partir daí, tudo depende da maneira como você fala hebraico: se o guarda imaginar ter ouvido um sotaque árabe, ele para o carro. Assim, os judeus são imbuídos de um sentimento de superioridade; os palestinos, de um sentimento de inferioridade ou periculosidade. Afinal, todo mundo sabe: em Israel, qualquer cidadão árabe de Israel é um pacote suspeito, uma bomba-relógio.
Ninguém nega que o terrorismo exista, mas falamos muito pouco dos efeitos perversos causados pelas medidas que pretendem resolvê-lo. Os controles intermináveis atormentam diariamente cidadãos amansados pelo medo de um atentado. Insidiosamente, moldam-se estereótipos, exacerbam-se preconceitos, que se cristalizam em racismo. Isso ajuda a destruir nosso país de dentro para fora. Seria o mesmo nos Estados Unidos e na Europa? Isso é realmente necessário? Não existem outros meios, mais justos e medidos, para lutar contra o perigo?
Em nome da segurança, Israel ocupa territórios palestinos há mais de cinquenta anos, à revelia do direito internacional. Assim nos tornamos uma das raras potências coloniais do século XXI. Quando Shimon Peres, que viria a ganhar o Prêmio Nobel da Paz, autorizou, em 1975, a criação de uma das maiores colônias, a de Ofra, ele destacou quanto era importante manter a antena de telecomunicações erguida nos territórios ocupados. Mas a colônia foi construída em terras privadas, roubadas dos palestinos sob a égide do Estado. Os guardiões temporários rapidamente se tornaram colonos; seu acampamento, um subúrbio dos territórios. A sequência, marcada por crimes de sangue, pertence à história. Hoje, em Gaza, mais de 2 milhões de pessoas estão trancadas naquela que é a maior prisão do mundo.
O aparelho judiciário, bem como o conjunto das instituições, prostra-se diante do Moloch moderno. O Supremo Tribunal, que em geral consegue punir as injustiças levadas a ele, valida o inaceitável, a pretexto de exigências securitárias: demolições de casas, despejos etc. Durante a longa história da ocupação, o Tribunal raramente se opôs. Levou muitos anos até que tivesse a coragem de criticar execuções e tortura. E ainda insiste em legitimar prisões sem comparecimento perante um juiz, chamadas de “detenções administrativas”. Há anos, milhares de pessoas são encarceradas sem julgamento. Como elas não são mais autorizadas que seus advogados a conhecer as acusações, não têm como se defender. O estado de emergência, em vigor desde a época do mandato britânico – embora este tenha terminado há muito tempo –, autoriza esse escândalo. O estado de emergência não tem razão de ser, mas suas disposições permanecem.
Contra o direito internacional
Quanto aos tribunais militares, eles condenam palestinos em farsas de processos políticos. Em nome da segurança, destroem-se as casas dos “terroristas”3 e aplicam-se punições coletivas proibidas pelo direito internacional. Impõe-se diariamente a milhares de pessoas controles arbitrários, detenções e incursões noturnas do Exército. Impedem-se as pessoas de trabalhar ou deslocar-se; pessoaslocat são mortas quando alguém acredita haver uma ameaça. Foi o caso de uma criança de 10 anos que carregava uma tesoura, abatida para “proteger” soldados que ela certamente estava prestes a recortar…
É bom lembrar que os cidadãos árabes da “única democracia do Oriente Médio” viveram sob regime de administração militar desde os primeiros anos do Estado até meados da década de 1960. Depois vieram cinquenta anos de ocupação e de prisões em nome de imperativos de segurança – “segurança”, uma palavra que dá ao Estado o álibi para não ser qualificado de não democrático…
Até o momento, os árabes têm sido as principais vítimas dessa situação. Após anos de luta contra o terrorismo, o número de mortos palestinos é cem vezes mais elevado que o de mortos israelenses. Ao passo que a democracia se fragiliza, os ataques contra a liberdade de expressão e os direitos civis4 afetam a todos. A religião securitária supera a democracia: hoje nos territórios ocupados, amanhã em Tel-Aviv; hoje à custa dos árabes, amanhã, dos judeus.
No mundo inteiro, os israelenses são vistos como a ponta de lança da luta contra o terrorismo. Nossas empresas aconselham governos, exportando não apenas armas, mas também conhecimento. Mas, se os Estados querem aprender com Israel, devem aprender o que não se deve fazer. Em particular, que não podemos permitir qualquer coisa em nome da segurança. O risco de perder a democracia talvez seja um perigo muito maior do que o terrorismo.
Gideon Levy é escritor e jornalista no diário Haaretz (Tel-Aviv).