Livro Branco: o Itamaraty está mudado?
A adoção do Livro Branco do Ministério das Relações Exteriores representa um avanço enorme ao condensar de maneira clara e pública as diretrizes, estratégias e prioridades da atuação internacional. Porém, a iniciativa não se deve a uma geração espontânea, gestada dentro do Itamaraty. Ela responde a pressão da sociedadeCamila Asano e Laura Waisbich
O Itamaraty prepara o que pode vir a ser um de seus passos mais ousados na direção da transparência da política externa brasileira. A notícia da adoção de um Livro Branco do Ministério das Relações Exteriores representa um avanço enorme. O documento condensaria de maneira clara e pública, pela primeira vez, as diretrizes, estratégias e prioridades da atuação internacional do país.
O anúncio vem em boa hora. O país vive um momento singular de crescente debate em torno da política externa. As políticas – o conteúdo da atuação nos mais diferentes temas –, bem como a política externa per se – a forma pela qual esta é formulada e colocada em prática –, ganham a cada dia mais espaço na arena pública.
O ano de 2013 foi particularmente interessante nesse sentido. Têm-se como marcos não apenas a troca de chanceleres e as indagações acerca dos rumos da pasta, mas também a realização de uma conferência nacional sobre os últimos dez anos de política externa brasileira, organizada por um grupo de reflexão independente congregando um conjunto diverso de acadêmicos, representantes do governo, da sociedade civil e do setor privado atuantes na área. Como pano de fundo, cresce a mobilização (dentro e fora do governo) para a criação de um mecanismo permanente de diálogo entre governo e sociedade em política externa. O espaço agregaria atores de natureza distinta, nos modelos de iniciativas existentes em outras políticas públicas (como na saúde, educação e segurança pública). Afora a participação, a questão da transparência da política externa brasileira esteve igualmente em discussão. Tanto a gestão interna da pasta como as prioridades políticas têm sido alvo de escrutínio por parte da sociedade por meio da Lei de Acesso à Informação. Entretanto, um ano e meio após sua entrada em vigor, o espírito da Lei n. 12.527 parece ainda não ter penetrado completamente o Itamaraty, pois este tem mantido uma política de interpretação bastante ampla das exceções previstas na lei e no decreto que a regula.
Estando a questão da democratização da política externa cada vez mais em voga, a perspectiva de elaboração de um Livro Branco é bastante bem-vinda. Mas, para que toda essa expectativa não seja frustrada, há um árduo caminho a percorrer. A adoção do Livro Branco não se deve a uma geração espontânea, endógena, gestada dentro do Itamaraty. Ela responde a uma incansável pressão da sociedade. Por exemplo, desde 2006, a política externa brasileira em direitos humanos vem sendo debatida em audiências públicas no Congresso Nacional, convocadas por iniciativa do Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa. Com iniciativas como essa, aos poucos, a ideia de que a política externa também é uma política pública sujeita ao escrutínio popular foi se tornando menos excêntrica ao Estado brasileiro.
Outras ações da sociedade civil ampliaram e aceleraram esse processo. No primeiro semestre de 2013, a Conectas promoveu a campanha “Ministro, eu #QueroSaber”. Ao longo de uma semana, a organização incentivou os brasileiros a enviar perguntas ao então chanceler Antonio Patriota às vésperas de uma sabatina no Senado. Durante a sessão, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) leu uma dessas questões – justamente a que indagava o ministro sobre a elaboração do Livro Branco para a política externa.
Há de se estar atento. A criação do Livro Branco visa aliviar a falta de transparência, mas a forma como a construção desse documento se dará não deve em hipótese alguma perpetuar outro ponto falho do Itamaraty: seu distanciamento da sociedade.
Para evitar esse risco, três iniciativas deveriam ser observadas desde já. A primeira delas é a realização de audiências públicas no Congresso Nacional. A segunda medida relevante seria organizar debates temáticos setoriais, que incluam todo o arco de interesses envolvidos. Esses debates seriam convocados pelos departamentos e divisões do Ministério das Relações Exteriores. Por fim, um mecanismo de recebimento de contribuições por escrito a uma versão preliminar do Livro Branco funcionaria à semelhança da plataforma digital usada pelo governo na preparação de seu relatório à Revisão Periódica Universal do Conselho de Diretos Humanos da ONU ou daquela utilizada no contexto do Diálogo Virtual da Parceria para Governo Aberto. Mecanismos de gestão da participação social, presenciais ou virtuais, são uma tecnologia social nacional de grande valia e podem ser explorados com mais frequência em assuntos de política externa.
Paralelamente, a construção do documento não se dará no vazio. No caso brasileiro, o referencial do Livro Branco não precisa ser reinventado. Nossa própria Constituição Federal de 1988 determina, em seu artigo 4o, os princípios que regem as relações internacionais do Brasil. É bom relembrar que o inciso 2 do referido artigo ressalta a “prevalência dos direitos humanos”. Portanto, independentemente das decisões estratégicas de médio ou longo prazo, a inserção internacional do país já possui parâmetros normativos definidos. O que o Livro Branco trará será o espaço para amadurecimento da reflexão pública acerca da operacionalização desses mesmos parâmetros em um cenário internacional marcado por rápidas mudanças e crescentes desafios.
Inúmeros outros países, grandes e pequenos, do Norte e do Sul, já percorreram esse mesmo processo. Planejamento estratégico da política externa, por meio de documentos como o Livro Branco, é uma realidade, por exemplo, em quase todos os países dos Brics (acrônimo para Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Neste último, a nova versão do Livro Branco encontra-se hoje pendente para ratificação parlamentar, após um processo que incluiu etapas de consulta social. Vale lembrar que conhecer, replicar e, sobretudo, aprimorar boas práticas faz parte da agenda de cooperação entre os países-membros do grupo.
Transparência, prestação de contas e participação formam o tripé de uma política externa verdadeiramente democrática. Um processo de construção da estratégia nacional de inserção e engajamento externos com momentos participativos é uma oportunidade para o Itamaraty mostrar que de fato está mudado.
Camila Asano e Laura Waisbich são, respectivamente, coordenadora e assessora do Programa de Política Externa e Direitos Humanos da Conectas Direitos Humanos.