Medianeiras e as janelas contraventoras
Ao fazer um desenho no vazio, o corte cria as possibilidades. Desde o nascimento do nosso corpo, nosso espaço no mundo é marcado por um olhar que recorta a superfície de carne e lhe dá um formato, traça uma borda, produzindo a imagem na qual a gente se reconheceSilvia Raimundi Ferreira
Medianeiras – Buenos Aires na era do amor virtual, primeiro longa-metragem do roteirista e diretor Gustavo Taretto, é um belo exemplo da qualidade do novo cinema argentino. No filme, a arquitetura da capital argentina é o pano de fundo no qual se desenrola o encontro de Mariana e Martín. Porém, diferentemente da proposta atual de Woody Allen, na qual a cidade surge como contexto da narrativa, Taretto toma Buenos Aires como metáfora explícita da vida.
A metrópole é apresentada ao espectador como uma “cidade superpovoada em um país deserto”, que cresce sem critérios e cujas “irregularidades estéticas e éticas” refletem perfeitamente a vida de seus habitantes: confinados em pequenos espaços, vivendo uma vida igualmente sem projetos. A referência ao espaço urbano como organizador, mas também como sintoma da subjetividade, está presente em todo o filme.
Em um projeto arquitetônico, seja de uma casa, um edifício, ou uma cidade, o que está em jogo é a estruturação do vazio: constrói-se a partir da leitura das demandas que surgem no discurso de determinado contexto social, e essa estrutura carrega em si uma representação da vida. A organização do espaço – com os cortes que determinam o vazio e o concreto – e a distribuição da luz constroem a estrutura que será habitada pelos moradores do lugar.
“O que se pode esperar de uma cidade que dá as costas a seu rio?” Essa é a pergunta proposta por Martín, um web designer fóbico e solitário, mais um dos que se espremem em um apartamento minúsculo e mal iluminado: “uma caixa de sapatos”, como ele denomina. A estratificação da sociedade em classes econômicas aparece representada na distribuição dos apartamentos por letras: quanto menor o apartamento, mais distante do A, índice clássico de qualidade.
Martín (que mora no G) denuncia os efeitos da cidade e culpa os arquitetos pelo sofrimento psíquico dos habitantes: se a cidade dá as costas ao rio, as pessoas dão as costas ao desejo, tornando-se deprimidas, obesas, dependentes…
O personagem – após dois anos de reclusão caseira, causada por ataques de síndrome do pânico e de um medo enorme de enfrentar a rua – recebe de seu psiquiatra a tarefa de “fotografar a cidade” como forma possível de redescobri-la e conhecer pessoas.
Mariana, a protagonista, se apresenta (não por acaso) como uma “arquiteta que nunca construiu nada” e que, após uma relação amorosa de quatro anos com um homem que ainda lhe parece um desconhecido, volta a viver sozinha em outra “caixa de sapatos”. Mariana tem gastrite, fobia de elevadores e, até que surja algum trabalho como arquiteta, monta vitrines, que são, segundo ela, um espaço intermediário entre o dentro e o fora, algo que diz dela e que, pela possibilidade (mesmo que pequena) de criação, pode ser encarado como um projeto possível de um futuro a construir.
Ela define Onde está Wally? como o livro-chave de sua vida, pois retrata a insignificância de um ser na multidão. Mariana encontra Wally em todos os locais, menos na cidade. E diz: “Se mesmo quando sei a quem estou buscando não consigo encontrar, como vou encontrar a quem estou buscando se nem ao menos sei como ele é?”.
Medianeiras, título do filme, é como são chamadas na arquitetura as laterais nos prédios que não comportam aberturas nem janelas: “o lado inútil dos prédios”. Inspirados nas plantas que crescem nos lugares mais inóspitos, abrindo brechas no concreto, Martín e Mariana decidem (ainda sem se conhecer) abrir uma janela – ilegal – nas medianeiras de seus prédios, para que a luz entre.
É a partir desse momento que o encontro se torna possível. Daí a internet, que antes funcionava como uma forma de manter o isolamento, se transformar em ferramenta de encontro é um passo. Aqui, uma pausa: o diálogo virtual que inaugura a relação do casal põe em cena algo da subjetividade e do sexual que, se pensamos nos termos da psicanálise, podemos dizer que Jacques Lacan sublinha.
Martín, ao ver a inexperiência de Mariana nos chats, a aconselha:
– É preciso começar com H ou M para que o outro saiba se você é homem ou mulher.
Ela responde:
– Mulher? Uma coisa um pouco ampla, não? E você?
– Homem.
– Como vou saber?
– Isso é fácil de comprovar: escrevo como homem, penso como homem e ajo como homem.
A diferença proposta por Lacan daquilo que organiza a vida sexual masculina e feminina se encontra representada nesse simples contexto: se é possível dizer “o homem”, o homem como classe, como um conjunto passível de ser reconhecido por suas características gerais de enunciação, isso já não é possível para uma mulher, uma coisa ampla, que não tem como se descrever a partir do conjunto das outras mulheres, mas precisa ser contada, falada, descrita, uma a uma. Mariana só pode falar de Mariana.
O fim do filme aposta na possibilidade do encontro, pois, apesar dos entraves subjetivos, arquitetônicos e urbanos, para encontrar Wally (a quem Mariana tanto procurava) torna-se necessário um ato: a contravenção que propicia a abertura de janelas nas paredes dos prédios e na vida dos protagonistas.
A imagem das janelas que surgem de um corte no concreto abre um ponto de encontro entre cinema, arquitetura e psicanálise. Na arquitetura, o corte cria as bordas do espaço vazio a ser ocupado e com isso define os lugares, as posições, a entrada da luz. Para a psicanálise, o corte de uma narrativa, seja com uma pontuação, um silêncio ou a interrupção da sessão, possibilita uma nova significação da fala, um deslizamento do significante, um jeito novo de contar a história. Na construção de um filme, os cortes de montagem é que dão os rumos da narrativa e encaminham o olhar do espectador para as emoções e vivências propostas pelo diretor, seja por meio de um suspense, uma mudança de ritmo, um encontro…
Ao fazer um desenho no vazio, o corte cria as possibilidades. Desde o nascimento do nosso corpo, nosso espaço no mundo é marcado por um olhar que recorta a superfície de carne e lhe dá um formato, traça uma borda, produzindo a imagem na qual a gente se reconhece. O eu se constitui a partir dessa exterioridade – o olhar materno que edifica um eu a partir da imagem da criança no espelho –, e essa exterioridade inaugura a eterna vacilação do sujeito diante de si: “Diga-me: quem sou?” é uma pergunta que a gente endereça frequentemente ao outro.
Esse desconhecimento de si, que gera o sentimento de incompletude e consequentemente também o desejo de reencontrar uma completude imaginariamente perdida, impele às buscas amorosas como tentativa de preenchimento do vazio constitutivo do ser.
Lacan, comentando o poema de Antoine Tudal (“Entre o homem e o amor/ Existe a mulher/ Entre o homem e a mulher/ Existe um mundo/ Entre o homem e o mundo/ Existe um muro”), alerta para o impossível das relações amorosas, se pensadas em termos de equivalência. Ao apontar a paronímia entre os termos l’amour e le mur, ele nos lembra que entre um homem e uma mulher também existe um muro, o muro da diferença constitutiva, o muro da castração.
Apesar disso, as janelas contraventoras do filme Medianeiras nos dão testemunho de que, mesmo em tempos difíceis, áridos e vazios, aquilo que determina a vida também parte de uma implicação subjetiva, de um movimento pessoal de encontrar os caminhos que abrem janelas e levam ao encontro do rio, lugar de fluidez, imagem de transformação.
Silvia Raimundi Ferreira é Psicanalista, é membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa) e mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS.