Mil razões para pedir desculpas
Como diretor-presidente da ANA por oito anos não posso aceitar que sejam atribuídos à sua história adjetivos como “não é técnica”, é “discriminatória”, “ineficiente”, “não é neutra”, é “intolerante”, “exorbita seu papel”, e que é irracional (!) “manter-se nela a competência de editar normas de referência”
Há tempos não encontro um texto, no campo progressista, tão abjeto como o “Dez razões para que o apoio aos reguladores do saneamento básico seja atribuído ao Ministério das Cidades”, publicado aqui no respeitado Le Monde Diplomatique Brasil, em 19 de janeiro. É um texto injurioso à Agência Nacional de Águas (ANA), a todos os seus servidores e servidoras, à sua capacidade técnica, à sua história e ao trabalho prestado pela Agência.
Não recomendo aos leitores a visita àquele texto, mas, para quem já o fez ou sente-se estimulado a fazê-lo, tente encontrar uma única razão, um único argumento que justifique a tese dos autores: em resumo, de que as normas de referência para o setor de saneamento estarão adequadamente abrigadas em uma Secretaria Nacional de Saneamento do Ministério das Cidades. Nada, nada, nada.
A mim lembra situações em que a eloquência guarda grande correlação com alguma nomeação. Apenas de passagem, pelas recentes declarações privatistas do novo ministro das Cidades, sugiro aos autores que comecem a escrever “dez razões” para as normas de referência irem para um outro local.
Como diretor-presidente da ANA por oito anos não posso aceitar que sejam atribuídos à sua história adjetivos como “não é técnica”, é “discriminatória”, “ineficiente”, “não é neutra”, é “intolerante”, “exorbita seu papel”, e que é irracional (!) “manter-se nela a competência de editar normas de referência”. Chega ao absurdo de dizer que a instituição “é bolsonarista”, em uma generalização típica, isso sim, de bolsonaristas!
O texto usa ainda, de forma intencional, firulas conceituais, tentando forjar uma interpretação errada na opinião pública, como ao afirmar que a ANA regula o saneamento. A ANA regula a água de domínio da União, mas não regula saneamento. Normas de Referência são um conjunto de recomendações que visam uniformizar os procedimentos das agências reguladoras (são 86 no país) e inúmeros prestadores de saneamento, mas a adesão a tais normas é voluntária.
Em brevíssima distinção: na regulação, todos os agentes são obrigados a cumprir as resoluções; já as normas de referência indicam orientações a seguir, adere-se ou não a elas voluntariamente. Claro que a adesão é induzida por restrições ao crédito federal, por exemplo, mas a adesão é voluntária.
O texto reflete, ainda, uma concepção elitista, autoritária e exclusivista de seus autores, refletida na justificativa de que a tese das alterações nas atribuições da ANA e da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental “não surgiu de um impensado ato de ofício ou da vontade individual de um burocrata”. Seria importante revelar, se não de um, de quantos burocratas estamos falando, porque não houve qualquer consulta a ninguém além de um restrito e fechado grupo de pessoas no respectivo GT Transição.
Enfim, se as normas de referência poderão estar mais bem abrigadas em outra instituição é uma tese permanentemente legítima, porém, deveria ser debatida às claras e não por meio de um artifício tribal que, ao final das contas, ao obrigar o novo governo a rever o erro grosseiro, apenas fortaleceu os privatistas do saneamento.
Conheço e tenho grande admiração pessoal pelos autores do referido texto. Continuarei a admirá-los, pelas relações de anos. Entretanto, insisto que devem um pedido público de desculpas para a Agência Nacional de Águas.
Vicente Andreu foi diretor-presidente da ANA de janeiro de 2010 a janeiro de 2018 e autor de “Pandemônio no saneamento“, texto que abriu a série especial novo marco regulatório do saneamento aqui no Le Monde Diplomatique Brasil, em 17 de julho de 2020.