Quando o mundo estará pronto para o Haiti e qual o papel do Brasil nisso?
Medidas ineficazes e que levaram o país à situação atual novamente são escolhidas, indicando que ou se repensa radicalmente nossa relação com o Haiti ou ele continuará esquecido
Em um mundo moldado pelo pensamento moderno/colonial, permeado pela retórica de hierarquias entre povos superiores e inferiores, o Haiti, em sua história, é recorrentemente tratado como o “Outro inferior”, sendo percebido como incapaz de se estruturar como sociedade e garantir sua autodeterminação. Dessa forma, é preciso compreendermos os efeitos práticos e simbólicos da persistência de discursos e práticas direcionados ao Haiti, tendo em vista o papel histórico desempenhado pelo país como a primeira república negra do mundo, o pioneiro na abolição da escravidão e o segundo país a proclamar a independência nas Américas. Nos últimos meses, emergiram novos argumentos colonizadores e racistas em direção ao Haiti, tratado como símbolo moderno de um suposto “estado de natureza” hobbesiano em razão da crise político-social vivenciada especialmente nos últimos quatro anos.
Desde antes mesmo do assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 7 de julho de 2021, em pleno palácio presidencial, a população haitiana tem presenciado o recrudescimento da violência social. A partir desse evento, o país foi conduzido pelo ilegítimo governo do primeiro-ministro Ariel Henry, afiançado pelas potências ocidentais, porém sem o consentimento do povo haitiano. Henry liderou o país de forma supostamente interina, adiando repetidamente a realização de eleições, alegando que a segurança deveria ser restaurada primeiro, embora tivesse interesses comuns com gangues fortemente armadas (com equipamentos advindos principalmente dos Estados Unidos), que hoje tomam 80% do território da capital Porto Príncipe. Todavia, especialmente a partir de 2023, emergiu a narrativa de que há um embate entre Henry e esses grupos armados, com destaque para a liderança de Jimmy Cherizier, também conhecido como “Barbecue”, um ex-policial da Polícia Nacional Haitiana (PNH) e líder da gangue G9 an Fanmi e Alye.
A ascensão de Barbecue vincula-se ao surgimento de um movimento policial insurgente chamado 509 Fantom. Diante das péssimas condições de trabalho da PNH, em 2020 o grupo começou a protestar de forma mais violenta contra o Estado, gerando a prisão de vários líderes do movimento e a classificação do grupo como organização terrorista pelos Estados Unidos. O governo Moïse buscou uma aproximação com Barbecue justamente para conseguir controlar os policiais insurgentes, permitindo, consequentemente, o aumento do poder político e armado do G9 an Fanmi e Alye. Diante dos reposicionamentos das peças do xadrez do poder após a morte do presidente, Barbecue começou a perder influência política no decorrer de 2023, o que ajudaria a explicar suas tentativas mais explícitas e violentas de exercício da força em 2024.
Vale lembrar que, preponderantemente, a imprensa mundial tem afirmado que essas gangues estavam contra o governo local. Porém, os fatos, em termos de história, indicam contradições nesse argumento: gangues e governo estavam mais juntos do que nunca durante boa parte da última década, fosse por interesse do governo de assegurar “currais eleitorais’’ para manter próximos a ele grupos localmente influentes que poderiam eliminar possíveis opositores ou, ainda, fosse para reprimir manifestações populares, especialmente após a partida da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah).
Nos últimos dois anos, o que vimos com Henry foi não mais a utilização de gangues contra revoltas. Isso porque houve considerável diminuição das manifestações de rua depois que grupos armados atacaram diversos militantes, assassinaram figuras importantes da oposição e jornalistas, além de promoverem massacres em regiões historicamente consideradas de resistência popular, como Bel-Air e Carrefour-Feuille.
Por outro lado, desde o início do governo de Henry até hoje, o que se observa é uma série de coincidências (suspeitas!) entre o aumento da violência e o processo de convencimento das comunidades locais e internacional quando se trata de trazer uma nova missão internacional para o país. Quando o ponto parece estar sendo esquecido pela comunidade internacional, “de repente”, atos violentos, com clara inércia do alto comando da polícia, acontecem. Exatamente no mesmo dia em que o primeiro-ministro estava novamente buscando o apoio do Quênia aconteceu a invasão de duas penitenciárias na capital e mais de 5 mil presos foram libertadas, em atos visivelmente planejados com antecipação e em lugares bastante importantes, nos quais a debilitada polícia local deveria ter reforços para garantir a segurança. Teria Henry perdido o controle dessas gangues enquanto aguarda uma missão internacional que continua há meses no ar? Pelo nível de empoderamento desses grupos e da violência usada, inclusive contra membros do governo atual, é bem possível que sim.
Nesse cenário, o Haiti voltou a ser abordado no Conselho de Segurança da ONU como uma nação que demandaria uma nova intervenção de paz para garantir a estabilidade interna. Não demoraram para emergir reportagens vinculando o Haiti à concepção de Estados falidos, como no recente editorial do Washington Post intitulado “O Haiti precisa de segurança agora. Para o futuro, precisa de democracia”. Novamente, retoma-se a mesma fórmula discursiva adotada para a adoção da Minustah, e observada em intervenções durante os anos 1990, como se fosse uma nova exemplificação da famosa frase de Karl Marx no O 18 Brumário de Luís Bonaparte, ao afirmar que a história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.
No caso haitiano, as recorrentes intervenções deixam turvas as fronteiras entre tragédia e farsa. Em meio aos holofotes direcionados pela comunidade internacional para o conflito russo-ucraniano e as crescentes violências no Oriente Médio, a superficial reflexão dedicada ao Haiti caminha sempre na mesma direção. Isto é, para certos órgãos e países, uma intervenção internacional de caráter militarizado é a única solução.
Geralmente, o primeiro país a fazer esse pedido são os Estados Unidos, responsável pela entrada da esmagadora maioria das armas que hoje estão no país, que têm um histórico de políticas neoliberais e intervenções nos resultados de dezenas de eleições no Haiti, sem falar que o governo estadunidense, entre 1995 e 2005, após golpe de Estado liderado pelo general Raoul Cédras em 1994, estreitou laços com a PNH. Vale lembrar que apenas quando as tensões econômicas, políticas e sociais do início dos anos 1990 no Haiti geraram a migração massiva em direção à Flórida, é que os Estados Unidos, em 1994, forneceram nova ênfase à estabilização haitiana. Não por acaso, Ricardo Seitenfus (no livro Haiti: dilemas e fracassos Internacionais) nos lembra que o receio de que os boat people fujam da ilha explica muitas decisões internacionais em relação ao Haiti, as quais seriam baseadas pela lógica de transformar aquela população em “prisioneiros na própria ilha”.
Além dos Estados Unidos, temos a República Dominicana, uma das maiores beneficiárias economicamente da tragédia que passa o Haiti, já que é receptora de boa parte da mão de obra e acaba dominando ecomicamente a região, além de enviar uma grande parcela de seus produtos para o Haiti, que não é mais autosuficiente em diversos setores do comércio de alimentos. Temos, também, diversos países do Sul global que aparentam ter enorme interesse em fazer suas forças militares receberem valores extras durante uma missão da ONU – geralmente paga em dólar (na Minustah a média circulou em US$ 7 mil para cada soldado por uma missão de seis meses, valor bastante razoável para a economia de países pobres). Sem falar daqueles que continuavam recebendo seus salários em seus países, como aconteceu no caso do Brasil.
Por fim, temos a ONU, que precisa mostrar que se preocupa com a situação do Haiti – se não, aliás, para que serve? Lamentável que as Nações Unidas não decidam mostrar sua preocupação com o Haiti avaliando profundamente a última missão e pagando as devidas indenizações às milhares de famílias vítimas dos seus crimes – estupros, massacres de inocentes, abandono de crianças filhas dos militares, introdução do cólera no país, entre outros.
É nesse contexto repleto de interesses externos e de histórico carregado de contradições que muitos têm denunciado a criação artifical e proposital de um estado de clamamidade que justificasse, novamente, medidas de emergência e exclusivamente bélicas, esquecendo-se de outras propostas mais completas de auxílio, dentro de um amplo projeto de cooperação para o desenvolvimento sustentável do país.
Em outubro de 2023, justamente durante a presidência brasileira no Conselho de Segurança, foi aprovado o envio da Missão Multinacional de Apoio à Segurança no Haiti (MSS, Multinational Security Support), com o objetivo de reforçar as iniciativas de segurança conduzidas pela Polícia Nacional do Haiti, que é o único órgão encarregado da manutenção da segurança no país. Contudo, o início de mais uma intervenção estrangeira no Haiti esteve em compasso de espera até o dia 3 de março, quando ocorreram os ataques ao sistema prisional, conforme mencionado anteriormente.
Oficialmente, foi mobilizado o discurso de que, diante da impossibilidade de seu retorno para o Haiti (após ataques contínuos ao aeroporto internacional do país) e da insustentabilidade de seu governo, Henry não teria outra opção que não fosse a renúncia. Esse argumento foi mobilizado em um vídeo publicado em 12 de março de 2024, no qual o primeiro-ministro anuncia que renunciaria ao cargo, optando por se retirar de forma articulada com a realização de uma transição política. Todavia, também é preciso aventar a possibilidade dessa movimentação de Henry ter ocorrido em conluio com as gangues, tendo em vista as relações de poder estabelecidas entre esses grupos, em troca especialmemnte de uma possível anistia.
O bloco da Comunidade do Caribe (Caricom – antiga Comunidade e Mercado Comum do Caribe), expressou de forma inequívoca sua posição de que Henry era considerado um obstáculo para a estabilidade do Haiti, e que sua renúncia seria necessária para dar início à transição rumo a um Conselho Presidencial interino. Ao contrário da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que em 15 de março de 2024 declarou sua recusa em permitir “qualquer ação militar que viole o princípio da autodeterminação” do Haiti, destaca-se o fato de que na mais recente reunião da Caricom, na Jamaica (juntamente com representantes dos Estados Unidos, Canadá e França), para discutir a situação do Haiti, essa organização exigiu que o governo de transição seja composto por representantes a favor de uma missão internacional. Nessa reunião, a organização recebeu as propostas de alguns grupos de haitianos, de diferentes linhas de atuação, e agiram como mediadores, propondo o referido Conselho Presidencial, o que foi acatado pela maioria. Embora o principal bloco regional ao qual o Haiti pertence nunca tenha sido devidamente ativo em fornecer apoio e cooperação ao país ao longo de sua história, ressalta-se sua dedicação para liderar um plano de segurança, demonstrando sua intenção de avançar para além da precípua atribuição de integração econômica da região, atuando também em aspectos como política externa, saúde, meio ambiente, educação e comunicação.
Mais uma vez, a “assistência” ofertada pela comunidade internacional predominantemente baseia-se no uso da força, em uma abordagem colonialista e racista, que ainda não consegue ver o povo haitiano como agente de seu próprio destino. Destaca-se a falta de compreensão do contexto local e das disputas de poder que estruturam a sociedade haitiana, visto que há pouca discussão sobre projetos de cooperação realmente grandes, dinâmicos e bilaterais, respeitando a soberania nacional e pensando a médio e longo prazos. Projetos que efetivamente se conectem às questões estruturais do Haiti e possam recolocar o país em outro patamar nas relações internacionais, dando especialmnete aos jovens novas oportunidades e trabalhando a reconstrução do sentimento de nação deles, que são a maioria da população do país e as principais vítimas de gangues.
E o Brasil, o que teria a ver com isso?
No Brasil, apesar do interesse crescente pelo Haiti durante a participação na Minustah, as oportunidades de debate sobre a nação caribenha são limitadas. Mesmo no novo governo Lula, o debate público brasileiro sobre política internacional foi notavelmente marcado pela ausência de discussões sobre o país caribenho. Tal silenciamento contrasta com o papel ofertado ao Haiti na atuação da Política Externa e das Forças Armadas do Brasil entre 2004 e 2017, quando o país sulamericano liderou o componente militar da missão. Embora o Brasil tenha mantido alguns projetos de cooperação com o Haiti, a atuação recente em prol daquele país no âmbito multilateral restringiu-se especialmente em colocar para votação, durante o primeiro dia da presidência brasileira no Conselho de Segurança, a Resolução 2699/2023, baseada no ambíguo Capítulo VII da Carta da ONU, que autorizou a criação da MSS.
O caráter militarizado e assistencialista que marcou a Minustah não diminuiu a dependência do Haiti em relação à assistência humanitária internacional. Pelo contrário, seu objetivo não foi contribuir com reformas estruturais em consonância com os interesses da população local. Diante dos efeitos negativos produzidos pela missão, incluindo graves violações de direitos humanos, como já mencionado, qual será a postura do Brasil diante das novas possibilidades de intervenção militarizada no Haiti (mesmo que executada por componentes policiais)? Basta ao Brasil simplesmente se recusar a não enviar as Forças Armadas novamente para o “irmão caribenho”?
É fato que alguns projetos de cooperação e vistos humanitários foram avanços das ações do Brasil no Haiti nos últimos anos. Não obstante, entende-se que justamente por ter enfrentado os efeitos das práticas coloniais desde o século XV, o que moldou sua sociedade e sua inserção internacional, o Brasil poderia olhar para o Haiti de forma mais cuidadosa e cooperativa. Em vez de reproduzir uma tradição de política externa que reflete os modelos e valores do sistema racializado proposto pelas antigas potências coloniais, o Brasil pode aproveitar a atual crise haitiana como forma de efetivamente estabelecer laços Sul-Sul mais estruturados (baseados em solidariedade e horizontalidade) com o Haiti, objetivando desenvolver e promover uma política externa antirracista em larga escala, um tanto inédita, desafiante e cheia de tabus, que questione as estruturas exploratórias que ainda permeiam as relações internacionais. Nesse processo, é essencial uma atenção real às visões críticas e endógenas sobre o Haiti, que busque reparar a ausência de importantes pensadores(as) haitianos nos debates feitos sobre as relações estabelecidas entre ambos os países, inclusive como forma de contornar e compreender melhor as dificuldades de interlocução do Haiti, em razão da carência de líderes coerentes, após muitos processos de dominação.
Visando contribuir com essa interlocução, a Iniciativa Brasil-Haiti, formada por pesquisadores e ativistas brasileiros e haitianos, e de outros países, divulgou em agosto de 2023 uma Carta-Manifesto na qual solicitava que o Brasil não participasse de uma missão de intervenção no Haiti, nos moldes propostos pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Essa carta, a qual incluía uma Proposta de Plano de Segurança para o Haiti, foi entregue ao Ministério das Relações Exteriores brasileiro. Entende-se que o cenário de instabilidade que acomete o Haiti atualmente possui traços ainda muito mais graves em relação às tensões que resultaram na instalação da Minustah, em 2004. Dessa forma, há a necessidade de adoção de propostas de segurança para o Haiti, mas que estejam atentas efetivamente para o objetivo primordial, que é a garantia do bem-estar da população.
Quando ocupava o cargo de ministro das Relações Exteriores do Brasil, Antonio Patriota declarou que, até o início do século XX, a primeira república negra, que serviu de inspiração para diversos movimentos de libertação ao longo do século XIX, continuava isolada na sua região, “como um órfão sem irmãos”, sem o apoio de seus vizinhos. Cabe ao Brasil assumir se pretende tratar o Haiti como um “irmão caribenho”, ou se, no soçobrar de mais uma intervenção internacional, restará à população haitiana continuar encarando de frente a permanência das dificuldades históricas que marcam o seu cotidiano, contando apenas com as intervenções costumeiras.
Tadeu Maciel é professor no Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ, pesquisador vinculado à Iniciativa Brasil-Haiti e ao grupo “Haiti: descolonização e libertação” e coordenador do laboratório de pesquisa Nexus: segurança e desenvolvimento na política global contemporânea.
Werner Garbers é pesquisador do Haiti e outros temas, vinculado à Iniciativa Brasil-Haiti e ao grupo “Haiti: descolonização e libertação”, e professor de língua portuguesa e cultura brasileira do Centro Cultural Brasil-Haiti, em Porto Príncipe.
Depois do texto, a certeza de que o título está errado. O correto seria perguntar: ” quando o Haiti estará pronto para o mundo?”