Nos jantares do Siècle, a elite se fortalece em silêncio
Os membros da classe dirigente constituem um grupo social consciente de si e separado dos outros. Mas a integração a esse mundo não acontece espontaneamente: iniciada no momento dos estudos, ela passa por círculos elitistas onde se encontram as vedetes saídas de diversos horizontes profissionais
Publicado nos Estados Unidos em 1956, em plena Guerra Fria, A elite do poder, de Charles W. Mills, suscitou intensas controvérsias. Esse livro demonstrava que o país que devia encarnar o pluralismo democrático era na verdade controlado por uma estreita minoria de indivíduos empoleirados nos cargos de comando das mais poderosas instituições da sociedade moderna (Estado, grandes empresas, exército, mídias etc.). O sociólogo reconhecia que a “elite do poder” dificilmente se deixa delimitar: “os homens das esferas superiores estão implicados num conjunto de ‘grupos’ que se sobrepõem e de ‘panelinhas’ unidas entre si por ligações complicadas”.1 Na França contemporânea, as coisas são mais simples: uma quarta-feira por mês, por volta das 20 horas, a elite do poder senta-se àmesa nos luxuosos salões do Automobile Club de France (Automóvel Clube da França) para o jantar do Siècle.
Segundo confessou, aliás, um ex-presidente dessa associação, ali se come mal.2 Mas o que importam os comes e bebes? Na opinião de um frequentador, Jean-Louis Beffa, antigo presidente da empresa Saint-Gobain que se tornou conselheiro do banco Lazard, “vamos aos jantares do Siècle pelo poder”.3Não o poder eleito, o outro – mesmo que uma longa ponte ligue os dois: os festins mensais são realizados na Praça da Concórdia; a Assembleia Nacional se encontra logo do outro lado do Rio Sena.
Criado em 1944, o Sièclenão é um grupo de estudos nem um clube mundano. Por meio da promoção de um diálogo regrado entre patrões, jornalistas, políticos, altos funcionários e, em menor medida, universitários e artistas, essa associação busca mais produzir um consenso do que constituir antagonismos políticos. Reúne pessoas “importantes” pelo que fazem, mais do que pelas afinidades ou gostos que dividiriam.
A iniciativa de fundar esse cenáculo coube a Georges Bérard-Quélin (1917-1990), um jornalista radical-socialista, efêmero secretário de redação em 1940 do jornal colaboracionista La France au Travailantes de se unir à causa da Resistência. Homem de contatos, “BQ”, como o apelidavam, era também o chefe da Sociedade Geral de Imprensa, uma agência cujo ornamento editorial traz as mesmas iniciais que ele: o Bulletin Quotidien. Os fundadores do Siècle e da Sociedade Geral de Imprensa se deram por missão erguer, graças a esses dois instrumentos, “uma ponte entre mundos que se ignoraram demais na França (políticos, altos funcionários, jornalistas, industriais, banqueiros)”.
Reconciliação das elites
De um lado, a associação pretende promover o encontro dos poderosos e participar da renovação de gerações, independentemente dos organogramas industriais e financeiros, das hierarquias administrativas ou das honras instituídas. Do outro lado, o periódico tem por função fornecer a esses mesmos dirigentes um resumo da atualidade econômica e política. É assim que o BQse impôs como um jornal caro (em 2011, 25 euros por dia) de uma clientela pomposa, enquanto sua base de leitores avançava progressivamente nas redações, administrações e estados-maiores políticos e patronais.
No período imediato do pós-guerra, divisões profundas fragmentaram a classe dominante: resistentes contra colaboracionistas ou pró-Vichy; patrões – liberais ou corporativistas – desacreditados contra altos funcionários planificadores; partidos políticos desunidos contra um Partido Comunista no auge de seus resultados eleitorais. Bérard-Quélin e seus sócios trabalharam para reconciliar as elites, com exceção dos comunistas. Com um certo sucesso. Os primeiros governos da Quinta República contavam com 20% dos membros do Siècle em suas fileiras, mas essa proporção só cresceu durante os anos 1960 e 1970, atingindo 58% em 1978.4 Desde então, ela oscila entre um terço e a metade dos ministros (qualquer que seja sua orientação política), com um pico de 72% entre 1993 e 1995, durante o governo de Édouard Balladur.
O Siècle reúne agora mais de setecentos membros e convidados, cuidadosamente cooptados por seu conselho de administração, composto por sua vez de cerca de quinze pessoas, metade delas renovada a cada semestre. O braço operário da organização se chama Étienne Lacour, redator-chefe da Sociedade Geral de Imprensa, onde trabalha há uns quarenta anos. Ele inclusive substituiu Jacqueline Bérard-Quélin na elaboração de um mapa de mesas − função crucial numa organização onde só se janta: dividir centenas de pessoas em mesas de sete ou oito, de tal forma que todos os setores de atividade sejam representados e sem ferir as suscetibilidades individuais, revela-se pura alquimia social.
Processo de seleção
Não se pede para entrar no Siècle: é preciso um convite, graças a um apadrinhamento de, no mínimo, dois membros. O conselho de administração só vota a admissão definitiva, por maioria qualificada, ao fim de um período probatório de um ou dois anos. A partir de então, o objetivo para o futuro donatário consiste em se mostrar, nos jantares, cortês, informado, interessado, afável, capaz de palavras espirituosas e discreto – os assuntos levantados nas mesas não devem ser divulgados.
Ser membro do Siècle representa, inicialmente, uma inserção bem-sucedida no seio da classe dominante. Ao lado dos patrões do CAC 40 [relação das companhias abertas de melhor desempenho financeiro da França], dos responsáveis por burocracias de Estado e de mentirosos de renome, a associação transborda personalidades de direita, como Nicolas Sarkozy, François Fillon, Jean-François Copé, respectivamente chefe de Estado, primeiro-ministro e secretário-geral do partido que governou o país de 2007 a 2012. A esquerda parlamentar não fica, no entanto, de fora. “Eu gosto muito do Siècle”, diz Martine Aubry [do Partido Socialista]. “Parei de frequentá-loem 1997, quando me tornei ministra [do Emprego e da Solidariedade, durante a gestão do primeiro-ministro Lionel Jospin e do presidente Jacques Chirac]. Era muito interessante. Eu me encontrava em mesas com pessoas extremamente diferentes […]. A iniciativa pode ser vista como totalmente elitista, mas continua sendo um local de encontro. Aprendi muito lá. Pois, para mim, a verdadeira inteligência é tentar compreender as pessoas que têm uma lógica diferente.”5
Se nos interessamos não pela etiqueta política dos membros do Siècle, mas por suas características sociais, percebemos então uma imagem bem diferente daquela oficialmente promovida. Mais que um “trampolim para elementos brilhantes cujo nascimento ou meio não predispuseram a constituir uma rede de relações nas antecâmaras do poder”,6 a associação promove principalmente o encontro entre os caciques dos negócios, públicos e privados. Gaba-se de ter notado Rachida Dati ou Fadela Amara, ou de ter percebido precocemente os talentos de Stéphane Courbit, antigo patrão da Endemol France, que não frequentou escolas tão prestigiosas quanto os outros convivas.
Relações de força
Mas a unidade de gênero, a uniformidade de idade, a monotonia dos diplomas escolares, a homogeneidade das origens e a conformidade de classe continuam confundindo.
Os membros do Sièclesão majoritariamente homens (85%), com idade superior a 55 anos (80%), filhos de patrões, de altos funcionários ou de profissionais liberais (55%), diplomados em um instituto de estudos políticos (50%) e, para muitos entre eles, ex-alunos da Escola Nacional de Administração(ENA) (40%), quando não estiveram nos bancos das grandes escolas de engenharia ou de comércio (25%).
O Sièclenão é, no entanto, um simples local em direção ao qual cada um desses happy few [poucos felizardos] daria um passo para sair de seu mundo e se encontrar com seus pares no poder. Da sociedade da corte ao Comissariado Geral do Plano, a “elite” sempre escondeu instâncias de coordenação. Mas os relacionamentos que ali se efetuam nunca são recíprocos; dependem de relações de força entre as diferentes frações da classe dominante.
Quando vão ao Siècle, alguns transgridem mais que outros: os raros sindicalistas sentados àmesa com os patrões, os jornalistas banqueteando com os políticos preferidos de seus empregadores (e que se recusam a informar o público sobre esses encontros); homens e algumas mulheres da política comensais de seus adversários eleitorais. Por outro lado, o industrial ou o banqueiro que bate papo com um jornalista célebre, se relaciona com uma figura da maioria ou da oposição, troca com um sindicalista ou até negocia com um alto funcionário, que daqui a alguns anos talvez se torne um de seus colaboradores, não se compromete. Ele não sacrifica nada. Ele tem até mesmo tudo a ganhar na domesticação dos representantes de universos sociais que se constituíram historicamente contra as potências do dinheiro (sindicalistas e meios intelectuais) ou que devem, se ainda acreditarmos nas declarações de princípio, ser independentes (jornalistas, altos funcionários e políticos).
Negociações entre o poder
Apesar do halo de mistério que envolve seus encontros, o Sièclenão é uma assembleia de conspiradores. Nada de crucial é concluído ali, e os exemplos de transações fechadas entre duas garfadas são tão raros que a imprensa os repete incansavelmente: “Contam […] que a revolução palaciana suscitada pela transferência de Franz-Olivier Giesbert do Nouvel Observateurpara o Figaro, em setembro de 1988, foi fechada durante um jantar do Siècle, na presença de Philippe Villin, então braço direito do grande leitor Robert Hersant. Dizem também que a entrada de Édouard de Rothschild no capital do Libération foi orquestrada na Praça da Concórdia”.7
As decisões capitais para o país são tomadas nas instâncias internacionais ou comunitárias, na Assembleia Nacional e no Senado, no Conselho dos Ministros e nos Conselhos de Administração. Por outro lado, elas têm continuidade nos encontros e nas conversas. Elas implicam uma maneira comum de colocar os problemas políticos ou de apreender o andamento dos negócios privados, que o Siècle facilita, à margem das instâncias legítimas de decisão que fundam uma verdadeira democracia econômica e social.
No outono de 2010 [primavera no Brasil], fragmentos nos jornais anunciaram a ascensão de Nicole Notat à presidência do Siècle, substituindo Denis Kessler. A antiga secretária-geral da Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT), reconvertida em conselheira junto a grandes empresas, sucedeu assim um ex-dirigente do Movimento de Empresas da França (Medef), coveiro assumido das conquistas sociais promovidas pelo Conselho Nacional de Resistência. O cruzamento de suas trajetórias traz à luz a função principal do Siècle: reunir as elites para que trabalhem conjuntamente na reprodução da ordem social. E Kessler ironiza: “Nicole Notat me sucede. Depois de um patrão, uma sindicalista. Prova de certa abertura, não?”.8
BOX:
Quando os proprietários brincam de proprietário
No filme Le temps des bouffons[Tempo de palhaços] (1985), o cineasta canadense Pierre Falardeau, adepto do falar popular, compara os ritos dos haoukas (Gana) com os do Beaver Club, que reúne a burguesia canadense.
[Imagens do documentário Les maîtres fous(Os mestres loucos), de Jean Rouch. Vemos nele ganenses em transe.] Estamos em Gana em 1957, antes da independência. […] A cada ano, os membros da seita [os haoukas] se reúnem para festejar. Eles estão possuídos. Possuídos por deuses que se chamam governador, secretário-geral, mulher do governador, general, mulher do doutor. Em 1957, Gana é colônia britânica. […] A religião dos haoukas reproduz o sistema colonial em pequena escala, mas ao contrário. Os colonizados se fantasiam de colonizadores, os explorados interpretam o papel dos exploradores, os escravos tornam-se proprietários. […] Uma vez por ano os loucos são proprietários. No resto do tempo, os proprietáriossão loucos.
[Imagens da recepção anual do Beaver Club.] Estamos no Quebec, em 1985. A cada ano, a burguesia colonial se reúne no Queen Elizabeth Hotel para o banquete do Beaver Club. Aqui, nada de possuídos, apenas possuidores. […] Como em Gana, celebra-se o velho sistema de exploração britânica. Mas, aqui, a coisa está no lugar certo. Aqui, os proprietários interpretam o papel de proprietários, os escravos permanecem escravos. […] a cada ano os grandes chefes se reúnem para festejar sua fortuna. Eles comem, bebem, cantam. […] O grande Maurice, ministro das Florestas, se tornou o líder de uma multinacional do papel. Jeanne Sauvé, sua mulher, administradora da Bombardier, da Industrial Insurance, e governadora-geral. Marc Lalonde, ex-ministro da Economia, agora no conselho de administração do City Bank of Canada. Francis Fox, ministro das Comunicações, empregado pela Astral Communications. Toda a gangue dos canadenses franceses de serviço está ali, fantasiados de reis negros biculturais. Antigos políticos que se tornaram homens de negócios. Antigos homens de negócios que se tornaram políticos. Futuros políticos que ainda são homens de negócios.
Todos os predadores estão ali: chefes e mulheres dos chefes, barões das finanças, reis da pizza congelada, mafiosos do mercado imobiliário. Toda a gangue dos benfeitores da humanidade. Carniças para quem se erguem monumentos, aproveitadores que se passam por filantropos, pobres coitados amigos do regime fantasiados de senadores senis, mulheres de bunda durinha, corpos que trabalham para subir até o topo, jornalistas rastejantes vestidos como editorialistas servis, advogados carcomidos, fantasiados de juízes a US$ 100 mil por ano, puxa-sacos que se tomam por artistas. Toda a gangue está lá: um belo monte de insignificantes cromados, medalhados, engravatados, vulgares e grossos com seus ternos chiques e suas joias de luxo. Eles fedem a perfume caro. São ricos e bonitos; horrendamente bonitos com seus dentes horrendamente brancos e sua pele horrendamente rosa. E festejam…
Em Gana, uma vez por ano, os pobres imitam os ricos. Aqui, nesta noite, os ricos imitam os ricos. Cada um no seu lugar…