“O problema do menor é o maior”
A omissão estatal propicia o surgimento das facções, e, muitas vezes, o preso acaba se envolvendo numa malha criminosa muito mais complexa ao ser encarcerado. Essa é a perspectiva no horizonte dos jovens de 16 anos, caso o Congresso aprove a redução da idade penalMarina Dias
No fim de maio, um médico foi morto a facadas na Lagoa Rodrigo de Freitas, local nobre da cidade do Rio de Janeiro. O crime recebeu ampla cobertura jornalística. A polícia rapidamente apontou adolescentes como culpados, e as mídias sociais bombaram, inflamando o discurso de que a redução da idade penal é uma medida urgente e necessária.
Segundo reportagem do jornal O Globo, o secretário de Segurança do estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, declarou que são “inadmissíveis” os recentes assaltos registrados na Lagoa. “Um lugar como a Lagoa Rodrigo de Freitas não pode, de maneira nenhuma, ser alvo desse tipo de atitude, porque é um local que todos nós frequentamos, aonde todos nós gostamos de ir, gostamos de frequentar, é um cartão-postal. E nós não podemos admitir de maneira nenhuma que ações como essa aconteçam”. Fazendo coro, o prefeito Eduardo Paes afirmou que o problema dos assaltos com faca na cidade é uma questão de polícia, e não social.
As duas falas ilustram bem a mentalidade seletiva e punitiva daqueles que promovem a política de segurança pública do país. Por meio de fatos como esse, ganham força discursos, projetos de lei e práticas que valorizam o recrudescimento penal como forma de coibir os altos índices de criminalidade. É também um tipo de argumento sintomático da velha arte de reduzir problemas complexos a soluções populistas, apoiadas no mais rasteiro senso comum.
Essa trama de desinformação, que atua em diferentes esferas de poder, é refletida no estarrecedor apoio à proposta de redução da maioridade penal. Segundo pesquisa recente do Datafolha, 87% da população do país se diz favorável à redução, dado que alimenta setores do Congresso que atropelam os direitos humanos e individuais, soterrando conquistas importantes trazidas pela redemocratização e pela Constituição de 1988.
O Brasil tem o maior índice de mortes por armas de fogo no mundo. De acordo com a Anistia Internacional, analisando dados de 2004 a 2007, estima-se em mais de 192 mil os homicídios no país. No mesmo período, os doze maiores conflitos mundiais totalizaram 170 mil mortes.
Mesmo diante desse cenário dramático, a taxa de resolução dos homicídios no país é de apenas 8%. Não temos dados sobre o perfil dos autores, tampouco das causas e circunstâncias em que os crimes ocorreram. No entanto, são conhecidas as maiores vítimas dessa violência. São os jovens, negros e moradores das periferias dos centros urbanos. Essa tragédia é escancarada anualmente pelo Mapa da violência e só se intensifica ao longo dos anos.
Se por um lado os números de vítimas com esse perfil não param de subir, por outro os índices de homicídios cujas vítimas são brancas caem. São esses dados que deveriam mobilizar os gestores na elaboração de políticas públicas. No entanto, essas mortes são invisíveis. Não são investigadas, não causam comoção, tampouco audiência. São toleradas e aceitas com passividade. Afinal, “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, como canta Elza Soares.
Em contraponto, quando esses mesmos crimes ocorrem em bairros nobres e as vítimas são ricas, os desdobramentos são totalmente diferentes. Há ampla repercussão na imprensa, os crimes causam indignação, e o poder público se mobiliza para dar uma resposta rápida e implacável à sociedade. Assim, propostas legislativas como as que alteram a maioridade penal para 16 anos surgem como panaceia para a violência que assombra o país.
Embora o Brasil tenha avançado em alguns aspectos sociais e econômicos, a desigualdade ainda é profunda, e as políticas públicas sociais, precárias. O jovem está no centro da violência endêmica que assola o país não na condição de protagonista, e sim de vítima. Nesse contexto, a proposta de redução da idade penal deve ser vista com grande preocupação, pois flexibiliza todo um arcabouço jurídico de proteção dos direitos da criança e do adolescente que reconhece a importância da responsabilidade da família, do Estado e da sociedade com o jovem. Como dizia o grande frasista Carlito Maia, “o problema do menor é o maior”.
Durante o VII Congresso de Alternativas Penais, realizado em 2011, o professor de Criminologia Álvaro Pires defendeu que o sistema socioeducativo estabelecido pela legislação juvenil deveria inspirar o legislador no aprimoramento da lei penal para os adultos, e não o contrário. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi um avanço por seu caráter educativo, preventivo e protetor. Há um arcabouço filosófico que leva em conta o acompanhamento cuidadoso e individualizado do jovem, o atendimento multidisciplinar com o envolvimento de diversos atores e equipamentos, formando uma rede de proteção essencial para que o Estado tenha condições de resgatar o vínculo do jovem com a família e a comunidade. Muitos percebem essa abordagem como impunidade, pois existe uma cultura da vingança impregnada na forma como lidamos com conflitos. A imposição de uma punição severa responde a esses anseios.
Nesse ponto, pode-se perguntar: se o ECA é tão inovador e eficaz, por que a delinquência juvenil está cada vez maior? Porque o estatuto não foi colocado em prática em sua totalidade. A lei que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), criado para regulamentar a forma como o poder público deverá prestar o atendimento especializado a adolescentes autores de ato infracional, tem apenas dois anos. As unidades de internação são precárias. Há inúmeras denúncias de tortura e maus-tratos. Segundo o Mapa do encarceramento, divulgado neste ano, a Defensoria Pública não está presente em mais de 72% das comarcas do país, o que dificulta o acesso à justiça e a efetivação dos direitos previstos no ECA.
Atualmente, cerca de 20.500 jovens teriam praticado atos infracionais no país. A 13.674 deles foram aplicadas medidas de internação, ou seja, internar é a regra, quando deveria ser a exceção. Ainda segundo o Mapa do encarceramento, em 2012 o roubo representou 39% dos atos infracionais cometidos no país, seguido por tráfico de drogas (27%), homicídios (9%) e furtos (4%). Os outros atos infracionais variaram de 3% a 4% (latrocínio, estupro, porte de arma de fogo etc.). Complementando essa visão, de acordo com o Fórum Nacional de Segurança Pública, estima-se que menos de 1% dos homicídios tenha sido cometido por adolescentes de 16 e 17 anos. São cerca de quinhentas mortes num universo que supera 55 mil assassinatos anuais.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicou recentemente um estudo que conclui que a maioria dos adolescentes de 16 anos não havia completado o ensino fundamental quando cometeu os atos infracionais. Muitos não estudavam nem trabalhavam. Mais de 3,8 milhões de crianças e adolescentes (de 4 a 17 anos) estão fora da escola, de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). O Estado não investe em uma educação de qualidade, professores são mal remunerados e encontram-se desestimulados. O acesso a serviços públicos é restrito. Nas periferias, a juventude só se defronta com a faceta opressora do Estado. A violência policial é uma realidade dramática. Existe um apartheid social, e a criminalidade é uma das formas de manifestação dessa desigualdade.
Depositar jovens de 16 e 17 anos nas prisões aumentará ainda mais a espiral da violência. O país tem apostado todas as suas fichas no encarceramento, embora há anos experiências apontem o fracasso dessa política. O Brasil ocupa o nada honroso lugar de quarto país com a maior população prisional do mundo. O Ministério da Justiça divulgou há poucos dias um relatório no qual registra sua preocupação com o crescimento da população carcerária. Em números absolutos, o país alcançou a marca de 607.700 presos. Entre 2000 e 2014, a taxa de aprisionamento aumentou 119%. Os três países que mais encarceram no mundo – Estados Unidos, China e Rússia – vêm reduzindo o ritmo de prisões.
É importante destacar que, na composição da população prisional, 56% são jovens de 18 a 29 anos e 67% são negros. Na população brasileira, a proporção de negros é de 51%. Contexto análogo é observado em relação à violência letal por arma de fogo, principal causa da morte de jovens de 15 a 29 anos. Em 2012, foram 56.337 mortes por homicídios no Brasil: 52,63% eram jovens; 77%, negros e pardos; e 93,3%, do sexo masculino.
Outro dado alarmante é o fato de que 41% dos presos são provisórios. Levantamento feito pelo Ipea apontou que 37% das pessoas que responderam aos processos presas não foram condenadas à pena privativa de liberdade. Isto é, o Judiciário tem convertido rotineiramente prisões em flagrante em preventivas, e faz isso sem respaldo legal, de forma burocrática, violando a presunção da inocência.
É gritante a diferença de estrutura da Defensoria Pública em relação ao Ministério Público e ao Judiciário, o que dificulta sua presença nas prisões. E o Judiciário e o Ministério Público não fiscalizam as condições de cumprimento da pena, conforme prevê a Lei de Execução Penal. A omissão estatal propicia o surgimento das facções e, muitas vezes, o preso acaba se envolvendo numa malha criminosa muito mais complexa ao ser encarcerado. Essa é a perspectiva no horizonte dos jovens de 16 anos caso o Congresso aprove a redução da idade penal.
O enfrentamento dessa realidade passa por uma mudança de paradigmas no sistema de justiça criminal. A prisão tem de deixar de ocupar lugar central para ceder espaço a outras medidas, como prestação de serviços à comunidade, medidas protetivas, transação penal, mediação de conflitos e justiça restaurativa. Há muitas experiências com esse viés que precisam ser identificadas como boas práticas. É preciso fomentar uma política de alternativas penais para atuar logo após a ocorrência da infração. A finalidade dessas medidas é a reconstrução das relações sociais e a prevenção do crime, estimulando a participação da sociedade nesse processo. Além de propiciar a responsabilização adequada do autor, em consonância com as garantias individuais, a política de alternativas penais resgata a importância de acolher a vítima, atualmente esquecida, e dar voz a ela.
Com relação aos conflitos que ocorrem na adolescência, é primordial a aplicação de programas extrajudiciais de justiça restaurativa nas escolas públicas e centros de mediação. Iniciativas como essas fortalecem a comunidade e sua capacidade de protagonizar a resolução de seus conflitos e interrompem o ciclo de violência. Afinal, a vítima de hoje é o potencial ofensor de amanhã.
Outro ponto que merece atenção é o fato de o tráfico de drogas contribuir para o envolvimento precoce dos jovens no mundo do crime. Existe nessa atividade uma oportunidade rápida de geração de renda e de alcançar certo status na comunidade. É também da natureza desse crime o envolvimento em outros tipos penais, como homicídios, roubos e portes de armas, já que uma cadeia complexa de crimes se estrutura ao redor do tráfico. Mas só o peixe pequeno é preso.
A guerra às drogas falhou. Não houve redução na oferta e na demanda das drogas ilícitas, mas há uma escalada no encarceramento, principalmente de jovens. O consumo de drogas ilícitas não é responsável pela violência, e sim a política proibicionista que, ao deixar o tema na clandestinidade, fortalece o crime organizado. Registre-se também que atualmente cerca de metade das mulheres está presa pelo crime de tráfico. É uma realidade decisiva na desestruturação familiar e na perpetuação de outras formas de violência, como a perda da guarda dos filhos.
É preciso debater ainda o fato de que a política de segurança pública está focada no policiamento ostensivo. Pesquisa do Ipea revela que 59,2% dos inquéritos policiais são fruto de prisões em flagrante de suspeitos, e em 73,8% dos processos o Ministério Público propôs ação penal sem o retorno do inquérito à delegacia para mais investigações. Existe pouco trabalho de inteligência policial para prevenção e desmantelamento do crime. Além disso, a Polícia Militar mantém uma mentalidade extremamente autoritária, resquício da ditadura militar. De acordo com levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança, nos últimos cinco anos as polícias brasileiras mataram mais do que as norte-americanas em trinta anos. Uma média de seis mortes por dia.
Para piorar, o Judiciário chancela uma série de prisões e procedimentos arbitrários, legitimando práticas policiais próprias de regimes totalitários. Um exemplo é o desrespeito rotineiro ao princípio da inviolabilidade do domicílio: 8% das prisões em flagrante são efetuadas na casa das pessoas, sendo 90,9% sem mandado judicial, segundo levantamento do Instituto Sou da Paz. Um porém: isso só acontece na periferia.
Do mesmo modo atua o Ministério Público, cuja omissão em exercer o controle externo da polícia é patente. Agindo assim, Ministério Público e Judiciário são coniventes com uma política pífia de segurança pública, pois deixam de exigir o aperfeiçoamento da atividade policial, para que atue segundo os princípios do Estado democrático de direito.
Quando se mergulha na complexidade de cada uma das realidades que alimentam o sistema de justiça, fica evidente que o discurso da redução da idade penal é falacioso e não enfrenta as raízes dos problemas da criminalidade. Existe falta de transparência e uniformização dos dados, dificultando o controle social. Especialmente em relação à infância e à juventude, as informações são ainda mais frágeis e não há monitoramento sobre a eficácia das medidas socioeducativas.
Para combater a violência, o país precisa de uma política de segurança pública séria e transparente, articulada de forma colaborativa com os atores do sistema de justiça criminal e sociedade civil. É preciso incentivar a criação de ouvidorias externas e independentes nas instituições, investir no aprimoramento das polícias, no fortalecimento das defensorias públicas, na introdução de uma política de alternativas penais e na consolidação de mecanismos de combate à tortura.
Justiça seja feita. Os culpados pela violência no Brasil não são os jovens, mas o Estado absolutamente omisso na sua função de garantir direitos. O que falta neste país é empatia, nada mais do que a capacidade de se colocar no lugar do outro. Enquanto os jovens não tiverem a experiência de uma realidade menos opressora e mais protetora, as perspectivas de futuro serão ainda mais desastrosas. Antes de entregar nossa juventude às galés, precisamos enfrentar a violência da única forma possível: usando a inteligência e os princípios de reparação e restauração, antes da força e da vingança.
Marina Dias é advogada criminal, conselheira do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e do Conselho da Ouvidoria da Defensoria Pública de São Paulo e produtora executiva do documentário Sem pena.