O que os russos pensam de 1917
Segundo a mídia e os manuais escolares, a experiência comunista não teria passado de um intervalo assustador. Essa não é a opinião, de acordo com estudos sociológicos, dos cidadãos russos. Um certo apego à revolução de outubro persiste, e até se reforça, apesar do esquecimento e da propaganda
("Abaixo o capital! Vida longa à ditadura do proletariado" celebra poster do 3° aniversário da Revolução de Outubro)
Durante mais de setenta anos, a Grande Revolução de Outubro (nome oficial, inclusive em letras maiúsculas) foi, para os soviéticos, o principal evento não apenas da história de seu país, mas do mundo, e não unicamente do século XX, mas desde as origens até nossos dias. A partir dos anos 60, parece – a URSS praticamente não conheceu uma pesquisa de opinião pública antes de 1988 – que 1917 perdeu para 1945: a vitória sobre o nazismo permanece como o único evento “positivo” que os russos guardam do período soviético.
No entanto, se a revolução leninista conserva um status particular, é porque ela constituiu o momento fundador do regime e do país. Muitas vezes redesenhada em função das necessidades políticas do momento, sua imagem amplamente mítica ocupou lugar central na ideologia soviética. Da música à literatura, dos livros de história às paradas militares, tudo colaborou para criá-la, divulgá-la e mantê-la. O próprio cânone stalinista sofreu poucas transformações, salvo na época do “degelo” khrouchtcheviano, quando o desaparecimento de Stalin, de acordo com a verdade histórica, foi compensado por uma glorificação de Lenin na propaganda de Estado. Em contrapartida, os “fundamentos” permaneceram inalteráveis. Assim, chamou-se rapidamente à razão os poucos historiadores que ousaram duvidar do caráter proletário da revolução: eles defendiam ideias bem mais razoáveis, mas heterodoxas (tratar-se-ia antes de tudo de uma revolução camponesa; dificilmente poderiam separar fevereiro de outubro de 1917; na sociedade russa anterior a 1917 coabitavam elementos “feudais” e “capitalistas”).
Era preciso manter a todo custo a ficção de uma revolução “proletária”de outubro, com o partido bolchevique à sua frente, sucedendo à revolução “burguesa” de fevereiro: os acontecimentos de 1917 poderiam assim se inserir, como em um filme acelerado, no esquema marxista-leninista segundo o qual o socialismo devia obrigatoriamente se seguir ao capitalismo, ele próprio tendo sucedido ao feudalismo. Qualquer detalhe da lenda era intocável, como descobriu por conta própria V. Kardin, redator da revista Novy Mir, quando declarou que o cruzador Aurora não havia disparado, e que o tiro de canhão desencadeador da insurreição era de festim.
Assim, grande parte da população permaneceu fiel aos estereótipos quando, durante a Perestroika, e depois nos anos 90, foi novamente questionado o relato lendário: no discurso dominante, outubro se transformou rapidamente em golpe de Estado por um bando de extremistas responsáveis por sete décadas de miséria na Rússia.
Essa mudança de 180 graus não convenceu: em 1989, uma pesquisa do Centro Levada (à época Vtsiom, centro de estudo de opinião pública criado em 1988) mostrava que 58% dos soviéticos continuavam a considerar a Revolução de Outubro como um dos maiores eventos do século XX, ultrapassado apenas pela “vitória na grande guerra patriótica” de 1941-1945. De maneira ainda mais significativa, 68% consideravam Lenin como um dos maiores homens de todos os tempos, seguido, de muito longe, por Pedro, o Grande (36%). Dez anos mais tarde, mais de 45% dos entrevistados conservavam opinião “muito positiva ou positiva”, contra cerca de 34% “muito negativa ou negativa”.
Mas, além desse apego persistente, a visão dos russos, com a ajuda do novo discurso, mudou principalmente em três pontos:
– a progressiva introdução de novos estereótipos: alguns veem a Rússia de antes da revolução como um país próspero que alimentava a Europa toda; a revolução como uma catástrofe; os bolcheviques como criminosos. Enfim, a Rússia teria sido “desviada” de seu caminho pelo “acidente” revolucionário, e teria reencontrado sua identidade após o “parênteses” soviético;
– outro resultado, revelado tanto pelas pesquisas de opinião como pelos trabalhos de estudantes, discussões na internet etc.: a combinação heteróclita dos dois discursos oficiais, o soviético e o pós-soviético, que refletem em particular as respostas contraditórias às perguntas das sondagens;
– enfim, e principalmente, essa confusão se manifesta na incerteza da opinião pública em relação ao passado soviético. Foi um passado glorioso ou vergonhoso?
O ex-presidente Boris Yeltsin obteve legitimidade graças a seu papel na destruição do regime soviético: este último, na época, era totalmente rejeitado – o que grande parte da população, principalmente idosa, sentia dolorosamente. Em contrapartida, seu sucessor reabilitou o período soviético para melhor louvar a “grandeza russa” desde as origens a nossos dias, de Vladimr (Monomaque, o grande príncipe de Kiev) a Vladimir (Putin). Essa reconciliação dos russos com a sua história – ao preço do abandono da busca pela verdade histórica – contribuiu muito para sua extraordinária popularidade.
O quadro 1 indica a evolução, que vai da atitude mais negativa em relação à revolução, resultado de anos da Perestroika, à sua tímida reabilitação nos anos 2000.
Façamos uma análise mais profunda. À questão direta “a revolução trouxe mais benefício ou prejuízo à Rússia?” as respostas se dividem em três blocos mais ou menos iguais: 40% consideram suas consequências “positivas” para o país, 29% “negativas” e 31% não sabem. Entre as pessoas com menos de 35 anos, a proporção é respectivamente de 29%, 29% e 41%, segundo pesquisa da Fundação da Opinião Pública (FOM) realizada em 2007, e que pode ser acessada pelo site www.form.ru, a enorme porcentagem daqueles que responderam “Eu não sei” ou se recusam a se pronunciar (geralmente na ordem dos 50%) traduz bem a ignorância e/ou a perplexidade dos russos de hoje, a começar pelos jovens.
Aliás, sua hesitação diz respeito também aos acontecimentos precedentes e futuros:
– em uma pesquisa da FOM de 2007, por ocasião do aniversário dos setenta anos da revolução, 58% sabiam que uma primeira revolução tinha ocorrido em fevereiro de 1917, 27% tinham ouvido falar vagamente, 9% ficaram sabendo da sua existência e 6% não responderam (apenas 48% das pessoas com menos de 35 anos tinham conhecimento dela);
– paralelamente, 46% das pessoas interrogadas ignoravam se o fim da monarquia, em consequência da Revolução de Fevereiro, havia sido um bem ou um mal para a Rússia;
– no mesmo espírito, raros eram os entrevistados capazes de dizer qual partido teriam tomado no decorrer da guerra civil: 38% responderam “nem de um lado nem do outro”, 20% “do lado dos vermelhos”, 7% “do lado dos brancos”, 35% não quiseram responder (entre os com menos de 35 anos, respectivamente 39%, 15%, 9% e 38%). Aliás, praticamente ninguém lembrava dos protagonistas da guerra civil: 33% citaram Tchapaiev (herói de um filme famoso dos anos 30, que a televisão transmite regularmente, e de uma série de piadas), 19% o almirante Koltchak (ao qual um filme foi recentemente dedicado) e 41% nenhuma personalidade;
– mais surpreendente ainda, o ano da Revolução de Outubro estava sendo esquecido: se 80% a situaram corretamente em 1917, 16% confessaram não saber e 4% deram resposta errada. Entre as pessoas com menos de 35 anos, apenas 62% deram a resposta certa, contra 29% de hesitantes e 8% de erradas.
Se o próprio acontecimento tende a se apagar dos espíritos e perder sua aura positiva, seu ator maior, Vladimir Ilitch Oulianov, Lenin, conheceu a mesma sorte. E no entanto ele foi, por décadas, objeto de um culto excessivo (na verdade, mais formal que real): desde a escola maternal, os pequenos soviéticos recitavam versos malfeitos consagrados ao “titio Lenin”, antes de estudar, um pouco maiores, suas obras e sua biografia, inclusive na universidade e durante o doutorado. Toda cidade soviética tinha uma estátua de Lenin na praça central – e, muitas vezes, outras espalhadas pela cidade –, sua Praça Lenin, sua Rua Lenin e seu Museu Lenin.
Evidentemente, apenas os monumentos e as ruas sobreviveram no espírito dos mais jovens. Quando de uma pesquisa com alunos da escola 686 de Moscou, à pergunta “Quem foi Lenin?” os alunos da segunda série (7 anos) responderam: “É um monumento, ao lado da loja”; “Ele já morreu. Ele tem um monumento”; “Ele tem um boné e é um homem. É um monumento e fica longe de casa”. Em Irkoutsk, alunos entre 10 e 11 anos não se mostraram mais precisos: “Não sei quem é Lenin; é um homem careca; vi muitas vezes seu monumento”; “Lenin é nosso ex-presidente. Ele viveu há muito tempo. Ele tem monumentos e há ruas com seu nome, com certeza deve haver uma razão para isso” etc.
Mas vejam um aluno do segundo colegial, com 16 anos: “Lenin fundou o partido bolchevique, fugiu das autoridades czaristas. Fundou o jornal A centelha no exílio. Viajava num couraçado, foi secretário-geral, morreu em 1924, era pobre; ligado à família, casado com Kroupskaia, descansava na pequena cidade de Gorki; está estendido no mausoléu”.
Nessa “miscelânea”, o relato da vida de Vladimir Ilitch mistura histórias verdadeiras e falsas: sua mulher Kroupskaia, seu amor por Inessa Armand, o vagão blindado, a revolução paga (financiada) pelos fascistas alemães, o fechamento das igrejas, a calvície, os bigodes e a vitória quando da “grande guerra patriótica” (confusão evidente com Stalin) etc. Todos esses elementos raramente compõem um quadro de conjunto. Certamente, em alguns textos de estudantes, aparece um julgamento de conjunto, positivo ou negativo, mas como disse um jovem: “É o que me ensinaram, eu não sei se está certo”.
O que surpreende aqui não é tanto a ignorância dos alunos – que nos remete ao eterno e universal discurso sobre a baixa qualidade do ensino – mas o desaparecimento de um culto tão duradouro na escala de toda a população, particularmente sensível entre os jovens não socializados na época soviética.
Entretanto, a revolução figura nos programas. Na França, nas classes de terceiro colegial principalmente, 13 das 67 horas consagradas durante o ano à história da Rússia no século XX referem-se ao período de 1917 a 1927. Mas o evento de alcance mundial, abrindo uma nova era na história da humanidade, se torna aí um acidente da história que viu um grupo de extremistas instigar a plebe para tomar o poder e derramar rios de sangue para conservá-lo.
Entretanto, nesses últimos anos observa-se uma mudança tímida, em primeiro lugar entre os jovens, que começaram a expressar uma opinião mais positiva sobre a revolução. Isso foi revelado, por exemplo, em pesquisa realizada durante muitos anos em Nijni Novgorod com estudantes de 16 a 19 anos consultados sobre a revolução socialista de outubro (ver quadro 2). Sua visão de Lenin e mesmo de Stalin tende a melhorar: as “opiniões positivas” em relação a Lenin passaram de 34% para 51%; a Stalin, de 12% para 33%; e as “negativas”, respectivamente, de 29% para 19% e 64% para 31%. Além da contradição das respostas, reflexo da confusão citada acima, e do caráter realmente contraditório da revolução, a evolução caminha no sentido de um questionamento da nova versão corrente da revolução.
Os autores do estudo sem dúvida têm razão ao concluir por uma tomada de consciência, pelos jovens, das dificuldades que eles encontram na Rússia de hoje, mas também, consequentemente, certa volta à ideia de revolução: não mais como fundação do Estado soviético, mas como destituição de uma ordem injusta.
BOX
"Sem Abdicação de pensamento crítico" Por Victor Serge
De dirigentes bolcheviques só vi, desta vez em Moscou, Aveli Enouikidze, secretário do comitê executivo dos sovietes da União. Era um georgiano loiro avermelhado, com o rosto quadrado, iluminado por olhos azuis; corpulento e de porte nobre como os montanheses raçudos. Ele era amável, risonho, realista assim como os bolcheviques de Petrogrado. “Famosa, nossa burocracia, de fato! Acredito que Petrogrado é mais sadio. Eu lhe aconselho até de se estabelecer lá, se os perigos de Petrogrado não lhe assustam muito […]. Aqui, misturamos todos os defeitos da velha Rússia ao da nova. Petrogrado é um posto avançado, é a frente de batalha…”. Falando de conservas e de pão, lhe perguntei: “Você acha que nós aguentaremos? Sou como um homem caído de um outro planeta e por vezes tenho a sensação de uma revolução na agonia”. Ele explodiu de rir. “É que você não nos conhece. Nós somos infinitamente mais fortes do que parecemos.”
Em Petrogrado, Gorki me propunha trabalhar com ele nas edições da literatura universal, mas lá eu só encontrei letrados envelhecidos ou amargurados que buscavam a fuga do presente traduzindo Boccaccio, Knut Hamsun e Balzac. Minha decisão estava tomada: eu não seria nem contra os bolcheviques, nem neutro, ficaria do lado deles, mas livremente, sem abdicação de pensamento nem de senso crítico.
As carreiras governamentais eram de acesso fácil para mim, decidi evitá-las e evitar também, tanto quanto fosse possível, as funções que implicassem o exercício da autoridade: outros se satisfaziam de tal forma com isso que me permiti essa atitude, evidentemente errônea. Eu estaria com os bolcheviques porque eles cumpriam tenazmente, sem desânimo, com um ardor magnífico, com uma paixão refletida, a necessidade mesma; porque eles eram os únicos a cumprir, assumindo todas as responsabilidades e todas as iniciativas revelando uma surpreendente bravura. Eles se enganavam certamente sob vários pontos essenciais: na sua intolerância, na sua fé no Estado, na sua tendência para a centralização e para as medidas administrativas.
Mas se era preciso combater seus erros com liberdade de espírito e com espírito de liberdade, seria entre eles. Considerando bem, esses enganos poderiam ter sido impostos pela guerra civil, o bloqueio, a fome e que, se nós conseguíssemos sobreviver, a cura viria dela mesma. Lembro-me de ter escrito, em uma de minhas primeiras cartas da Rússia, que estava “bem decidido a não fazer carreira na revolução e, tendo passado o perigo mortal, a me encontrar com aqueles que combaterão os erros interiores do novo regime…”.
Mémoires d’un révolutionnaire (1905-1945) (Memórias de um revolucionário).Montreal : Lux, 2010.