O que significa a prisão de Desireè?
Desireè pode ser presa a qualquer momento. Mas o que significa sua prisão dentro da política de encarceramento em massa promovida pelo Estado brasileiro?
Desireè Mendes Pinto é uma mulher que está sob a ameaça iminente de retornar à prisão para cumprir o que resta de uma pena de seis anos à qual foi condenada e recorre hoje em liberdade.
Detida em 2012, com apenas 30 gramas de crack, durante a Operação Sufoco – na qual diversos usuários de drogas foram presos na “cracolândia” por acusação de tráfico – vivenciou pela segunda vez na vida uma gravidez na prisão. Temia que desta vez ocorresse o mesmo que anos antes e que ocorre todos os dias com mulheres presas: um parto algemada, um período de incertezas sobre seu destino e do filho, uma separação certeira, a ruptura de laços familiares.
Viveu a gestação no sistema prisional, deu à luz presa – agora sem algemas – e, felizmente, desta vez, não entrou para as estatísticas de tantas mulheres que são mães e veem seus filhos serem abrigados ou entregues a familiares. Por um habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública, ganhou a liberdade para aguardar o resultado de seus recursos, e pode sair das grades com seu bebê nos braços.
Tal liberdade, ainda que diariamente vivida por Desireè, não é completa. Isso porque enquanto existir o processo ela se sente presa a um passado que não existe mais. Nesses cinco anos em liberdade, Desireè fez cursos de microempreendedorismo, iniciou um negócio de venda de bolos e doces (Um doce por um sonho), trabalhou em um bistrô, aprendeu confeitaria e voltou a estudar. Os laços com sua família, em especial com seus outros dois filhos e sua mãe, se estreitaram nesse período. Hoje sonha com uma vida bem distante da que viveu durante duas décadas como usuária de drogas e transeunte da “cracolândia”. Para lá vai somente a trabalho, para ajudar na recuperação de pessoas que estão na situação em que uma vez esteve. Compartilhando esperança e força com todos ao seu redor, Desireè inspira.
É essa inspiração que nos faz escrever este texto. Desireè não pode ser presa. Sua liberdade representa um paradigma na política de investimento no encarceramento como regra e na liberdade como exceção, que tem sido colocada em prática pelo Estado brasileiro no “combate” às drogas. Sua prisão não se sustenta e representa uma violência sem tamanho.
A pessoa que foi presa em 2012 em meio ao caos da “cracolândia” já não existe mais. A mulher vítima do “crack” e de uma política proibicionista hipócrita que transforma dependentes em traficantes já não existe mais. Desireè fez o impossível: morreu e renasceu em si mesma. A pena que agora se pretende aplicar, seis anos depois do fato, já não serve para nada.
Ora, se a função da pena de prisão em regime fechado é a ressocialização, conforme enunciam diversas teorias que buscam justificar o encarceramento, no caso de Desireè, ela não faz sentido, pois não foi a prisão que a ressocializou. Ao contrário, foi a exceção de ter a liberdade, em meio a tanta desesperança, que a permitiu, ao lado de seu filho recém-nascido, reconstruir seus laços e afetos. Se recolhida à prisão neste momento, o resultado será desastroso tanto para Desireè quanto para sua família, e o cárcere poderá destruir tudo aquilo que conseguiu, sozinha, construir.
E nem se fale na necessidade de punição para Desireè. O crime de que foi acusada e condenada não teve qualquer vítima a não ser ela mesma. Toda a sua trajetória de vida – as ruas, as drogas, a maternidade impedida, as gravidezes reclusa, a prisão preventiva e o tempo de agonia enquanto aguarda o veredito – é uma punição muito maior do que qualquer pena estatal. Desireè foi capaz de retomar a sua vida. Jogá-la agora à miséria que é o cárcere brasileiro não é apenas excesso de punição, é crueldade e irracionalidade.
Desireè precisa ser respeitada. Desireè precisa ser libertada. Desireè precisa ser reconhecida como ser humano e ter garantida sua dignidade. Alternativas à prisão existem e fingir ignorância sobre sua história é apagá-la completamente. As saídas penais e processuais penais disponíveis para se garantir sua liberdade são inúmeras, basta que o Poder Judiciário brasileiro tenha interesse em aplicá-las.
Um processo penal não representa meros fatos, mas pessoas, relações e expectativas. A pena de prisão em regime fechado em torno de um suposto crime que permaneceu no passado não se justifica diante do que essa mulher é hoje.
O mais recente recurso impetrado pela Defensoria Pública, no Superior Tribunal de Justiça, pedindo desclassificação para tráfico privilegiado, foi negado e o Ministério Público Federal fez o pedido de expedição do mandado de prisão, que agora aguarda a posição de ministro. Esperamos, de coração, que sua história seja levada em conta.
*Bruna Angotti é mestre em Antropologia Social, pesquisadora e professora universitária; Carolina Vieira é bacharel em direito e pesquisadora; e Humberto Fabretti é doutor em direito, advogado criminalista e professor universitário.