O que um negro deve escrever?
Parece evidente a existência de um mercado de entretenimento pronto para consumir o sofrimento negro de modo a colocar seu leitor “no lado certo da história”
Na primavera parisiense de 1949, o escritor norte americano James Baldwin publicou pela primeira vez o ensaio “o romance de protesto de todos“. Em tom ácido, o texto se propunha a analisar relação entre a literatura produzida por pessoas negras e o suposto imperativo político em expor didaticamente os problemas sociais vividos por afrodescendentes. Os argumentos do autor foram diretos: tais obras eram esteticamente deploráveis e sentimentalistas, a intenção destes autores era a de traduzir as denúncias do sofrimento negro em uma espécie de ritual purificador para que eles fossem aceitos por leitores brancos.

Setenta anos após a decisiva acusação de Baldwin sobre a realidade norteamericana, o mercado literário brasileiro parece se afetar pelo mesmo debate. Em sua crítica literária publicada no jornal Folha de São Paulo, Luiz Maurício Azevedo afirmou, ao analisar o livro “Homens pretos (não) choram”, de Stefano Volp, que a demasiada atenção atual a autores negros por vezes vilipendia a capacidade crítica da discussão ao trocar o juízo estético de uma apreciação da obra pela moralidade dos sofrimentos sociais que ela pretende demonstrar. Ao fazer “sociologia disfarçada de literatura” como também criticou o escritor Joca Reiners Terrón, tais obras e suas repercussões estariam escanteando o papel da literatura e prendendo suas imaginações a resultados medíocres condicionados por uma tentativa de aprovação conforme a suposta boa intenção da época.
Em ambos os casos apresentados, condizer com a expectativa de que a qualidade literária de uma obra se determinaria por sua capacidade em retratar de maneira verossimilhante, convincente e esteticamente caprichada um sofrimento próprio parece ser, ao mesmo tempo, um nicho de mercado e um aprisionamento intelectual. Contudo, argumento aqui, que, ao contrário do que discutia Baldwin em seu ensaio de 1949, o fundamento do sucesso e da limitação de tal forma de “escrever enquanto negro” não estaria na busca por perdão branco, mas sim na atual relação que junta relações raciais, culpa e a indústria do entretenimento.
Este paralelo também demonstra duas evidências do estado atual da discussão literária no Brasil: a primeira é que o mercado brasileiro de livros demorou mais de meio século para fazer algo que o americano sempre foi capaz: ter um número escritores negros e publicados que debatessem publicamente suas obras entre si ao invés de comemorar sua simples aparição. Por outro lado, este próprio amadurecimento (que nada tem de definitivo, vide a evidente regressão racista que o país passa nos tempos atuais) impõe a tais autores – grupo do qual também faço parte – o desafio de refletir sob quais condições é possível acessar um mercado que parece lhes dar atenção apenas nos últimos anos.
Neste sentido, vale alertar que considerar que uma crítica direcionada a um autor negro seria um ato racista, ou “cancelamento” da sua possibilidade enunciação é um sinal da condescendência com a qual a discussão pode ser tratada em seus piores momentos. Não só o ofício crítico é parte constitutiva da liberdade de expressão no seu sentido mais simples, como também aparece como sinal do amadurecimento estético imprescindível para não cairmos no estado inercial de pensar que apenas a existência de publicações negras seria por si só suficiente e celebrável.
Retornando ao argumento, parece evidente a existência de um mercado de entretenimento pronto para consumir o sofrimento negro de modo a colocar seu leitor “no lado certo da história”. Esse entretenimento pode ser produzido com um tom mais passivo, em melodramas de sofrimento negro em que personagens sofrem repetidos violências racistas, ou em tom mais ativo, em manifestações que o interlocutor usa da performance da ofensa sabendo que o ouvinte concordará em ser ofendido. Para além da qualidade das obras, tal empreendimento tem grande chance de sucesso pois possibilita a impressão de resolução do problema do racismo através da fixação da posição moral dos polos: basta o leitor dizer “concordo” que tudo está bem, o sofrimento biográfico do artista é válido, o sentimento antirracista também, a obra merece atenção. Com uma técnica bem resolvida, este tipo de texto produz a satisfação da qual um leitor branco e culpado é melhor que qualquer outro tipo de consumidor.
Complementar a essa relação com o sofrimento negro e que encontrará num leitor que se considera um humanista seu expectador ideal, a exposição do sofrimento negro enquanto estética e sua forma de expressão como resolução do problema racial tem um caráter pedagógico evidente. A intenção de ler para “aprender” sobre experiências racializadas conduz variedades literárias que vão desde o uso da ficção para a criação de cenas exemplares de racismo, até mesmo a produção de manuais que pretendem ensinar as pessoas a não serem racistas.
Há, contudo, obras que assumem o risco de dar a resposta mais dolorosa, e provavelmente mais produtiva, para o problema racial brasileiro: não há solução alguma. Um país fundado em tamanha violência contra pessoas não brancas, o país do garimpo em terra indígena, do estupro colonial, dos 300 anos de escravidão, processo que transformou “Negro” não apenas numa designação de uma via racializada e produzida num contexto colonial, ela é também uma certa experiência da morte. No Brasil, negro é uma expressão específica de violência, e a relação da literatura com a violência sempre se torna mais produtiva quando esta é capaz de demonstrar seus limites impronunciáveis, suas contradições e questões irresolvíveis.
Nesta seara, a originalidade afrofuturista de Grace Passô, os deslocamentos causados por Jota Mombaça, os avanços na poesia negra e na tradução negra em português brasileiro produzidos por Stephanie Borges e Lubi Prates, e o recente empreendimento de Paulo Scott em tratar diretamente do problema do colorismo racial apontam uma qualidade impar frente a média do mercado: suas obras são capazes de – através de distintos caminhos – contrapor a moralidade do leitor contra eles próprios, sejam os leitores da minoria representada ou não. Este processo jamais encontrará resposta tranquilizante ou edificadora para as pessoas que experimentam seus reflexos através da arte, sejam elas brancas ou negras, ao mesmo tempo que é justamente deste desassossego que geralmente nascem os avanços estéticos e sociais.
Se em 1949 a irritação de Baldwin com seus colegas negros e escritores que pareciam, segundo o autor, herdar o fardo da “Cabana do Pai Tomás” ao buscar uma literatura de expiação, nos anos 2020 o amadurecimento da relação do mercado literário com seus autores negros parece trazer um outro tipo de inquietação. Esta inquietação por uma obra que redima o problema do racismo estrutural através da culpa branca e de um esforço pedagógico no interior de seus textos criou um nicho de mercado legítimo, mas que também opera como barreira para obras que não se disponham a concordar com a moralidade e culpa de seus leitores. Nesta seara, tanto a existência deste nicho editorial quanto as tentativas de vanguarda são motivos para se comemoração em seus termos, a relação conflituosa entre escritores e críticos negros brasileiros é, em si, uma novidade histórica e ela parece estar apenas começando.
Evandro Cruz Silva é doutorando em Ciências Sociais pela Unicamp e escritor. “Praia Artificial” (Patuá, 2021) é seu livro primeiro livro de contos e sua estreia na literatura.