Para atender às reivindicações dos que foram à luta
Levando em consideração somente o que o governo federal teria a receber (R$ 114 bilhões anuais) daria para construir na cidade de São Paulo mais de 375 quilômetros de metrô (a R$ 300 milhões o km) ou 1,14 milhão de casas populares (R$ 100 mil a unidade, incluindo a desapropriação do terreno) ou 57,5 mil creches…Odilon Guedes
As manifestações ocorridas pelo Brasil, que atingiram das grandes capitais até pequenas cidades do interior, foram iniciadas pelo Movimento Passe Livre (MPL) em São Paulo e mobilizaram cerca de 2 milhões de pessoas, principalmente jovens.Elas abriram uma enorme oportunidade para avançar nas transformações que nosso país precisa. É importante destacar que essas lutas já produziram resultados significativos, entreoutros, a diminuição das passagens do transporte público nas mais diferentes cidades, o cancelamento do aumento de pedágios em São Paulo, o recuo do governador do Rio de Janeiro em demolir vários equipamentos públicos no entorno do Maracanã.
Toda essa luta reflete o enorme descontentamento de amplas parcelas da população com a atual realidade. Apesar de termos o sétimo PIB do planeta ocupamos a 85ª posição no IDH. Na educação, os alunos brasileiros se classificam entre os últimos nos exames da OCDE (Programme for International Student Assessment – Pisa), a saúde está em crise há anos, o transporte coletivo massacra milhões de pessoas diariamente e, a segurança pública, com o homicídio de 50 mil pessoas por ano, deixa qualquer cidadão completamente inseguro. Nas periferias, principalmente das regiões metropolitanas, faltam praças, centros de esporte, lazer e cultura. Quanto mais distante do centro das cidades, maior a ausência de equipamentos sociais. A população em grande parte está abandonada, sem perspectivas para o futuro. Esse contexto tem como pano de fundo a corrupção e as mordomias presentes nos mais diversos níveis de governo e escalões da República. O povo não aguenta mais esse estado de coisas!
A única forma de resolver parcela expressiva desses problemas é o investimento de dezenas de bilhões de reais, por longos anos seguidos, nas várias áreas.
O jornal Valor Econômico(27 jun. 2013) precisou esse número em manchete: “Demanda das ruas já tem custo de R$ 115 bi por ano”. O que é necessário ser investigado é se existem tais valores.
Entre as várias formas existentes para se conseguir recursos uma delas é fazer uma profunda reforma tributária aumentando a tributação direta sobre a renda, a propriedade, a herança e a riqueza. Outra é cobrar a dívida ativa.
Cobrar a dívida ativa
Uma importante fonte de recursos é a cobrança da dívida ativa. A dívida ativa da União é composta por todos os créditos desse ente, sejam eles de natureza tributária ou não tributária, regularmente inscritos na Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), depois de esgotado o prazo fixado para pagamento, pela lei ou por decisão proferida em processo regular. Essa dívida, portanto, está relacionada aos tributos ou não, que deixam de ser pagos pelas empresas e cidadãos à União, como também aos estados e aos municípios. Alguns exemplos: na área federal são dívidas relacionadas ao IR, IPI, INSS, Cofins; na estadual ao ICMS e IPVA; e na municipal ao IPTU, ISS, ITBI, entre outros.
O total da dívida que o governo federal tem direito a receber era, em 31 de dezembro de 2012, segundo o balanço da PGFN, de R$ 1,14 trilhão. Os principais devedores são grandes empresas que muitas vezes sonegam o pagamento de tributos propositalmente. Isso ocorre porque, na relação custo- benefício, sabem que essa prática será vantajosa.A cobrança vai levar anos para ser executada, seus advogados vão se utilizar de todo aparato jurídico que postergará o pagamento por anos. E, quando for efetuar o pagamento, se utilizam de programas que permitem parcelar a dívida por longo período, com parte de seu valor sendo abatido.
Matéria do jornal Folha de S.Paulo(5 ago. 2013) dá exemplos do que estamos discorrendo. Ela relaciona empresas que devem R$ 1,5 bilhão ao fisco e, ao mesmo tempo, doaram milhões de reais para os mais diversos candidatos à Presidência nas últimas eleições. Mencionam a Bombril, que deve R$ 779,7 milhões; a Copersucar, R$ 147,3 milhões; a Infan, R$ 99,3 milhões; a JBS S/A, R$ 66,0 milhões; a Bracol Holding, R$ 61,7 milhões; a Sana Bárbara Engenharia, R$ 35,9 milhões; a Vega Engenharia Ambiental, R$ 31,0 milhões; a Usina Naviraí, R$ 26,4 milhões; a Iesa, R$ 26,3 milhões; e a Usina Barra, R$ 24,3 milhões. Como vemos, não são valores pequenos que muitas empresas devem no Brasil! Segundo informação contida no site da PGFN, qualquer pessoa pode consultar a Lista de Devedores porque o acesso a esse serviço independe de senha, basta saber o CPF/CNPJ ou o nome do devedor.
As empresas devedoras se utilizam do Refis, que é um programa de recuperação fiscal que consiste em um regime opcional de parcelamento de débitos fiscais proposto a pessoas jurídicas com dívidas perante a Secretaria da Receita Federal (SRF), a PGFN e o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Quando a empresa for pagar, o prazo é de até sessenta meses com juros TJLP.
Em relação ao crédito rural, se a dívida for liquidada, há uma tabela com várias faixas de descontos. Para os devedores de mais de R$ 200 mil, têm um abatimento de 38% somado a outro fixo de R$ 19,2 mil. Por exemplo, quem deve R$ 1 milhão terá R$ 380 mil somados a R$ 19,2 mil, o que dará um total de R$ 399,2 mil de desconto.
Essa prática absurda de sonegação, contrária aos interesses da nação, traz enormes prejuízos para a sociedade porque bilhões de reais que deveriam ser investidos em educação, saúde, infraestrutura deixam de acontecer. Além disso, é uma enorme injustiça para com os cidadãos e empresas, que cumprem em dia suas obrigações com o Estado.
Essa situação se repete nos estados e municípios. Em 31 de dezembro de 2012, o estado de São Paulo tinha uma dívida ativa de R$ 226 bilhões; o do Rio de Janeiro, R$ 50,6 bilhões; e o do Rio Grande do Sul, R$ 30,2 bilhões. Em relação a São Paulo, o próprio governo considera que 50% dessa dívida é irrecuperável. Em 2012, o governo conseguiu cobrar somente R$ 1,16 bilhão, cerca de 0,5% do total da dívida. Segundo o procurador Rafael Demarchi Costa, “o baixíssimo índice de recuperação traz em si alta possibilidade de risco moral ao não pagamento voluntário por parte dos devedores”.
Em relação aos municípios, veja no quadro 1 todas as capitais dos estados brasileiros que tinham dívida ativa registradas.
O total das dívidas ativas das capitais dos estados brasileiros, como é possível observar, somava R$ 129,9 bilhões.
No Nordeste, a de Salvador, com R$ 12,4 bilhões de dívida ativa que representa 323% da receita orçamentária de 2012, a de Recife, com R$ 5,5 bilhões, e a de Natal, com R$ 1,5 bilhão, ultrapassam mais de 100% da receita orçamentária. No Sudeste, São Paulo, com R$ 55,3 bilhões, e Rio de Janeiro, com R$ 35,7, bilhões também superam os 100% e são as maiores em valores absolutos. No Norte, Manaus, com R$ 3,1 bilhões, também está acima desse percentual. São Luís não apresentou os dados.
Além da União, estados e capitais, os municípios brasileiros também têm esse tipo de dívida a receber. Para ilustrar essa situação, apontamos os municípios da região do chamado ABC paulista, que têm uma dívida ativa de R$ 5,1 bilhões, sendo que a de São Bernardo era, em 2012, de R$ 2,4 bilhões e a de Santo André, de R$ 1,2 bilhão. O município de Londrina, no Paraná, tem uma dívida ativa de R$ 1 bilhão, sendo que quinhentos devedores devem R$ 380 milhões, o que dá em média R$ 760 mil para cada um. Esse último dado demonstra que provavelmente não estamos tratando de atrasos de pagamento de IPTU residenciais…
Somando a dívida ativa da União, dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul e das capitais chega-se à cifra de R$ 1,577 trilhão. Se a esse valor for somado aos demais estados da federação e municípios, a dívida chegará a valores bem mais elevados.
Fazendo-se uma simulação sobre um programa da cobrança da dívida ativa, para que seus valores sejam recuperados em dez anos, apenas o que o governo da União tem direito a receber representaria R$ 114 bilhões de recursos anuais aos cofres federais. No estado de São Paulo, o valor seria de R$ 22,6 bilhões; no Rio de Janeiro, R$ 5 bilhões; e no Rio Grande do Sul, R$ 3 bilhões.
Nas capitais, podemos apontar Salvador, R$ 1,2 bilhões; Recife, R$ 550 milhões; Rio de Janeiro, R$ 3,6 bilhões; São Paulo, R$ 5,5 bilhões; Manaus, R$ 313 milhões; Belo Horizonte, R$ 560 milhões; e Porto Alegre, R$ 157 milhões ao ano.
É importante lembrar que o Brasil tem 5.560 municípios e grande parte deles têm dívidas a receber. Isso significa que se os tributos fossem pagos em dia poderiam ser feitos os investimentos sociais que falamos ao início e que beneficiariam toda a população.
Para efeito comparativo, levando em consideração somente o que o governo federal teria a receber (R$ 114 bilhões anuais) daria para construir na cidade de São Paulo mais de 375 quilômetros de metrô (a R$ 300 milhões o km) ou 1,14 milhão de casas populares (R$ 100 mil a unidade, incluindo a desapropriação do terreno) ou 57,5 mil creches (R$ 2 milhões cada uma). Em relação a obras de infraestrutura, daria para construir 27,5 mil quilômetros de ferrovias como a Nova Transnordestina (a R$ 4 milhões o km), ou ainda 7 usinas hidrelétricas como a de Santo Antonio no Rio Madeira (R$ 16 bilhões cada). É possível e importante fazer esse tipo de comparação em relação a cada estado e cidade da federação adequada aos preços dos investimentos em cada região. Com certeza, a cobrança da dívida ativa resolveria a maioria dos problemas brasileiros.
Em nosso entender, a cobrança da dívida ativadeveria ser abordada e fazer parte da agenda do Movimento Passe Livre, dos milhares de cidadãos e dos diversos movimentos sociais que estão participando das manifestações no Brasil. Exigir a ampla divulgação dos devedores e respectivas dívidas, e que os governos da União, estados e municípios façam um plano para recebê-las no período mais curto possível.
Odilon Guedes é economista, mestre em economia pela PUC-SP, é professor das Faculdades Oswaldo Cruz. Foi presidente do Sindicato dos Economistas no Estado de São Paulo e vereador na cidade de São Paulo.