Para os amigos, tudo. Para os inimigos, a lei
Governo federal privilegia publicidade em meios de comunicação aliados e ameaça endurecer regras de concessão para adversários. Leia mais um artigo do especial Concentração da Mídia e liberdade de expressão.
Quando o governo de Michel Temer, em 2016, promoveu sua primeira reforma administrativa e acabou com o Ministério das Comunicações (MiniCom), fundindo a pasta com a da Ciência e Tecnologia e criando o MCTIC, já se sabia que o futuro das políticas de comunicação não seria promissor. O fim do MiniCom significou o término das poucas políticas públicas de fomento no campo da radiodifusão educativa e comunitária. Avisos de habilitação foram cancelados e, na outra ponta, Temer promoveu uma ampla flexibilização das regras para o setor privado de radiodifusão, atendendo aos pleitos das grandes empresas comerciais.
Bolsonaro assumiu a Presidência da República em 2019 sem nenhum programa para as comunicações. Pelo contrário, como mostra o artigo Do discurso à prática: a violência atinge os jornalistas publicado neste especial, o candidato eleito, desde sua posse, tem atacado sistematicamente o papel da imprensa e do jornalismo. Entre as 35 metas previstas para os primeiros 100 dias de governo, só uma dizia respeito à mídia: o que foi chamado de “reestruturação da Empresa Brasileira (sic) de Comunicação”, tema do próximo artigo desta série. Para cuidar do MCTIC na nova gestão, Bolsonaro escolheu o cosmonauta Marcos Pontes, e as políticas de comunicação ficaram ainda mais esquecidas.
À exceção da agenda do setor de telecomunicações, repetiu-se, no âmbito federal, algo já muito frequente em secretarias estaduais ou municipais responsáveis por esta área: a política pública se limitou à assessoria de imprensa e à distribuição das verbas publicitárias do governo, sob responsabilidade da Secom, a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República. E Bolsonaro cumpriu a ameaça que havia feito durante a campanha eleitoral: cortou os anúncios em veículos considerados por ele adversários de sua gestão.
Atualmente, as regras para definição da veiculação de anúncios do governo federal estão previstas na instrução normativa no 7/2014 da Secom. Ela estabelece o uso de “critérios técnicos na seleção de meios e veículos de comunicação e divulgação” e diretrizes como a “desconcentração do investimento” e a valorização “da programação de meios e veículos de comunicação e de divulgação regionalizados”. O perfil do veículo e dos setores da sociedade alcançados por ele também são considerados.
Desde a gestão Lula, a audiência e circulação dos veículos vinham sendo os principais critérios técnicos usados nos planos de mídia do governo. Durante os governos Dilma e Temer, houve polêmicas em torno da publicidade veiculada em sites e blogs e em veículos impressos específicos. Mas, até 2019, na radiodifusão e na maior parte dos jornais e revistas impressos de circulação nacional, audiência e circulação guiaram os percentuais de publicidade governamental. Bolsonaro alterou essa regra.
Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) divulgado em novembro de 2019 mostrou uma inversão nos anúncios nas emissoras de TV abertas, com claro favorecimento dos canais que abertamente apoiaram Bolsonaro na campanha eleitoral. Se em 2017 a TV Globo havia recebido 48,5% dos recursos de propaganda do governo (excluídas as estatais) e, em 2018, 39,1% – valores próximos ao share da audiência do canal –, em 2019, até o mês de outubro, o percentual estava em 16,3%, sem que o número de telespectadores da Globo tenha reduzido na mesma proporção. A emissora continua líder de audiência nacional, com 33,1% do público da TV, de acordo com o IBOPE.
Já suas concorrentes passaram a receber mais verba publicitária estatal sem terem ampliado o número de telespectadores. A Record, que em 2017 recebeu 26,6% dos recursos e, em 2018, 31,1%, recebeu em 2019 42,6%, tendo apenas 13,1% da audiência. O SBT recebeu 24,8% e 29,6% dos recursos nos últimos dois anos, saltando para 41% em 2019, mas com apenas 14,5% do share nas 15 principais regiões metropolitanas do país. A propaganda governamental mais veiculada no período foi a da Reforma da Previdência, que sofreu questionamentos na Justiça sobre sua legalidade, e incluiu a ida do presidente e de seus filhos a programas das duas emissoras favorecidas.
Segundo reportagem publicada à época na Folha de S. Paulo, até 11 de novembro as despesas da Secom com publicidade totalizavam R$ 140,7 milhões. A Globo havia sido contemplada com R$ 10,5 milhões; o SBT, com R$ 16,3 milhões; e a Record, com R$ 19,7 milhões. Ao jornal, a Secom justificou os gastos afirmando que os investimentos “dependem dos objetivos de campanha e não necessariamente são representados pelos índices de participação em audiência, visto se tratar de informação modulada a partir do público-alvo a ser impactado com a publicidade e cobertura geográfica”.
Na avaliação de Guilherme Canela, conselheiro regional de Comunicação e Informação da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) para a América Latina e o Caribe, a publicidade governamental é um recurso inicialmente legítimo de uso dos Estados para a comunicação de questões relevantes à cidadania. “A publicidade governamental, a depender de como é feita, cumpre um papel de acesso à informação pública que pode ser pertinente”, disse ao Intervozes. Para que cumpra este papel, uma das recomendações do Sistema Interamericano de Direitos Humanos é que a mesma seja exercida respeitando-se critérios objetivos relacionados à proteção da liberdade de expressão e a busca por justiça na distribuição dos recursos.
“Se o que interessa é chegar ao maior número possível de pessoas, os recursos devem acabar indo para veículos que já alcançam uma maior audiência. Já se o objetivo é chegar a populações específicas, o critério pode ser, por exemplo, usar rádios comunitárias. O importante é que sejam critérios objetivos e claros e que haja accountability – processo de controle, fiscalização, responsabilização e prestação de contas – no seu uso”, explica Canela. “Sobretudo, é fundamental que haja uma capacidade imparcial de avaliar se a publicidade oficial não está sendo usada para privilegiar meios de comunicação que são amigos do governo de turno e castigar meios de comunicação que tenham uma perspectiva editorial contrária ao governo, seja quem seja. Por essas razões, o uso da publicidade governamental deve ser transparente”, complementa o representante da Unesco.
Em janeiro de 2020, também a Folha de S. Paulo denunciou que o secretário Fabio Wajngarten, chefe da Secom, mantém o controle societário da FW Comunicação e Marketing, empresa que possui contratos de prestação de serviço com pelo menos cinco empresas que recebem recursos de publicidade governamental, entre emissoras de TV e agências de publicidade. A prática, considerada um claro conflito de interesses, já que a decisão sobre a distribuição das verbas de publicidade governamental cabe à Secom, pode levar à demissão de Wajngarten e já foi alvo de ações movidas na Justiça por partidos políticos de oposição.
Mudanças nos processos de outorga
No final de 2019, em vídeo distribuído pela Internet no qual ataca a TV Globo, o presidente Jair Bolsonaro declarou, ao falar sobre o prazo de término para exploração da outorga de radiodifusão pelo grupo privado, que “se o processo não estiver limpo, não tem renovação da concessão”. Posteriormente, o MCTIC confirmou à imprensa que a ideia do Ministério é realizar mudanças nos processos de outorga, de modo a exigir que as empresas quitem eventuais dívidas com a União para terem o direito a solicitar a renovação de suas licenças. Atualmente, caso as dívidas estejam parceladas, é possível emitir uma certidão de regularidade fiscal junto à Receita Federal e dar entrada no processo de renovação de outorga. Exigir previamente o pagamento integral das dívidas criaria dificuldades para boa parte das emissoras.
Em nota, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) manifestou preocupação com a iniciativa do Ministério de “endurecer” as regras para renovação das outorgas de rádio e televisão. “Se é verdade que a atual legislação que rege o setor data de 1962 e precisa de atualização e modernização, também é verdade que esse processo precisa ser pautado em torno de um amplo debate público e com o objetivo de atender aos princípios democráticos expressos na Constituição Federal (…) A revisão do marco legal de 1962 para a radiodifusão, portanto, tem menos relação com regras mais duras ou brandas, com mais ou menos regras. O que precisamos é definir mecanismos legais que imponham ao processo de concessão mais transparência, mais participação social e parâmetros mais explícitos para aumentar a diversidade e pluralidade dos conteúdos ofertados para a população”, afirmou o FNDC.
Não há qualquer debate em curso no MCTIC sobre alterações no marco regulatório da radiodifusão para atender os princípios constitucionais e os procedimentos de outorga defendidos historicamente pelo Fórum. O governo declara, entretanto, que pretende “modernizar” a legislação para o setor para “equilibrar” a regulação dos setores de radiodifusão e telecomunicações, tratando de temas como o streaming audiovisual. Esta série especial solicitou uma entrevista com o secretário de Radiodifusão do Ministério, Elifas Gurgel do Amaral, para tratar do assunto. A assessoria do MCTIC pediu que as perguntas fossem enviadas por escrito, mas as respostas não chegaram até o fechamento deste artigo, mesmo após três prorrogações de prazo.
Além dos pontos acima, o Intervozes questionou o governo federal sobre a possibilidade de mudanças na regulação de rádios comunitárias, considerando os pleitos históricos das emissoras. De acordo com Geremias dos Santos, coordenador executivo da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), a falta de transparência do MCTIC na publicação de informações sobre a situação das emissoras outorgadas, sobretudo no que diz respeito à pontuação de cada uma diante da aplicação de sanções, tem dificultado eventuais esclarecimentos e ajustes que devam ser feitos junto ao Ministério e, consequentemente, levado à extinção de um maior número de outorgas.
Em pesquisa no site do MCTIC, constatamos que essas informações não estão disponíveis ao público geral. Questionamos a Secretaria sobre quantas outorgas de radiodifusão comunitária foram extintas em 2019 e por quais motivos e também se as medidas de desburocratização dos processos com vistas a acelerar os pedidos de autorização, anunciadas em setembro de 2019, já foram implementadas. Também não recebemos nenhum tipo de retorno.
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Bia Barbosa é jornalista e integrante do Conselho Diretor do Intervozes