Que horas ela volta?
Patrões e classes médias percebem a melhora de vida das classes subalternas como ameaça a seus privilégios, e trabalhadores, apenas como fruto de seu esforço individual. Em comum, a alienação das lutas políticas e dos processos históricos que sustentam as dinâmicas sociais, e um mito de emancipação pelo consumo comparPaulo Augusto André Balthazar
Muitos já exploraram as possibilidades de análise da obra ficcional como manifestação da cultura e como forma concentrada da própria vida. É inegável a contribuição de Cervantes, Goethe, Balzac ou Kafka para a compreensão de grandes transformações nas sociedades europeias. Da mesma forma é conhecida a importância da literatura para a intelligentsia russa durante o período revolucionário e primeiros anos da república soviética.1 Uma hipótese para essas aproximações seria que em fases de grandes mudanças a dimensão dramática se sobrepõe às dimensões processuais, e as fronteiras entre realidade e ficção tornam-se menos nítidas.
O sucesso do filme Que horas ela volta? e as reações geradas indicam esse potencial de convergência entre forma, conteúdo, ficção e realidade. E, ainda que a obra recorra a um conjunto variado de elementos estéticos, alguns até esquemáticos e talvez maniqueístas, sua atitude central sempre foi realista na medida em que os movimentos dos personagens tipificaram forças e transformações atuais da sociedade brasileira. Essa é uma de suas virtudes que ajudam a entender sua recepção e impacto.
Sendo assim, explorar as relações entre obra de arte e sociedade por meio do filme Que horas ela volta? representa uma alternativa válida para acessar dinâmicas sociais, econômicas e culturais que vinculam classe média e juventude aos atuais processos de polarização e ruptura da ordem democrática. É dessa forma que propomos aqui uma inversão: deixar a busca do significado da obra de arte com base em seu elemento histórico-social, para compreender o contexto histórico-social recorrendo à estrutura e ao sentido de uma obra de arte.
A cidade polarizada
Para Antonio Candido, uma análise integradora revela como a mensagem estrutura-se com base no mundo, mas gera um mundo novo, cuja organização faz sentir melhor a realidade originária pela fusão que provoca entre texto e contexto.2 Uma integração que em Que horas ela volta? organiza-se numa sucessão de oposições: cozinha/sala; quartos dos patrões/quarto de empregada; áreas de serviço/piscina e jardim; bairro de rico/periferia de pobre; patrões vaidosos e egoístas/empregados autênticos e generosos etc. Essas oposições são reforçadas por contrapontos de luz e enquadramento: na cidade dos ricos prevalecem luzes contrastadas em espaços fechados; na cidade dos pobres surgem luzes mais difusas e espaços abertos. Como resultante, texto e contexto convergem para uma cidade polarizada, com a tensão situada no lugar dos ricos.
Como personagem que se mostra na estrutura da obra, a cidade fraturada pelo apartheid e negada às classes populares surge recortada por privilégios privados. Na primeira cena, cidade demarcada por muros e enclausurada em jardins e condomínios. Depois, cidade como aeroporto que, apropriado por trabalhadores, aos olhos das elites se degradou em “rodoviária”. Em seguida, cidade como algo que a cultura popular não consegue decodificar – uma praça sem uma árvore que não serve para nada –, entrevista por janelas de coletivos. Por fim, uma cidade em disputa na escandalosa revelação de que Jéssica, a “filha da empregada”, concorre a uma vaga na FAU/USP (faculdade de arquitetura e urbanismo e núcleo de debates teóricos sobre os destinos da cidade). Assim, as classes populares vão sendo percebidas como intrusas em espaços materiais e simbólicos que lhes eram interditados, como vias para automóveis, shoppings centers, aeroportos, universidades, espaços culturais…
Uma cidade também representada nos templos de vidro do quadrilátero corporativo da Berrini, em oposição às curvas do Copan de Niemeyer; no bunker dos ricos em contraponto aos vãos livres e luminosos da FAU de Vilanova Artigas. A cidade em projetos distintos – um calculado por investidores e corporações de mercado, que aprisiona o homem outra vez feto; outro centrado numa humanidade idealizada, como portas abertas ao homem.3 Uma disputa que permanece no atual embate entre o “direito à cidade” e o projeto de “cidade como empreendimento” em curso.4 Em ambos, uma cidade que opõe explorador e explorado e candidata-se a locus central do conflito originário da ordem capitalista – como máquina fabril que ubiquamente penetra todos os espaços de sociabilidade e consciência social, descrita por Lefebvre.5
Dessa forma, o filme também incorpora em sua estrutura a disputa pela cidade como núcleo polarizador e conecta o drama da sujeição pessoal com a segregação e expropriação dos espaços urbanos – que para Harvey configuram hoje esselocus estrutural dos processos de acumulação e realização capitalista.6 E como sugerido ainda por Carlos Lessa,7 uma crise urbana conectada às crises políticas, em disputas pela ocupação e controle de suas estruturas (transporte, saneamento, zoneamento…), convertidas em pontos críticos para a manutenção dos poderes hegemônicos. E também para o sucesso dos movimentos contra-hegemônicos.
O jovem e a polarização
Na abertura do filme, a câmera é posicionada atrás de Val para que doméstica, casa de patrões, cidade e suas relações sejam projetadas de um lugar crítico. Esse será o olhar de Jéssica, que poucas cenas adiante surgirá na trama precisamente às costas de Val, no aeroporto. Ao longo do filme, ela sairá do porão a que estava destinada para expor o singular apartheid social que nos caracteriza, no qual o conflito é recalcado e a exploração, dissimulada num cândido e cruel “você é como se fosse da família”.
Uma filha de empregada e migrante nordestina que chega de fora rompe com o senso comum e rejeita estereótipos para sintetizar virtualidades presentes entre 48,85 milhões de brasileiros com 15 a 29 anos que vivenciaram transformações inéditas. Em 2004, os 20% mais ricos detinham 55% das vagas em universidades da rede pública e 69% das vagas na rede particular – com as políticas distributivas, em doze anos, as porções dos mais ricos nas universidades caíram para 38% na rede pública e 43% na particular, e a proporção total de jovens entre 18 e 24 anos nas universidades subiu de 32% para 55%. No ensino médio, o número total de jovens mais que dobrou de uma geração a outra, saindo dos 25% para os atuais 55%.8 Esses números representam uma ruptura radical com os processos de socialização do passado.
Ainda que as gerações de Val e Jéssica compartilhem elementos como origem pobre e o movimento da periferia em direção ao centro, elas representam sujeitos e países diferentes, que se projetam na vida de forma diversa: se a mãe parte da transição do rural para o urbano num tempo em que o Brasil ainda fazia o mesmo percurso e reúne elementos picarescos e a condição servil como defesa contra as violências de gênero, classe e origem que a cercavam, a filha já nasce num país urbanizado, que nos últimos anos vivenciou a experiência da democracia com ampliação de direitos e redução da desigualdade. E, mesmo numa sociedade marcada pelo passado escravocrata e patriarcal, ela já não teme o conflito e luta por sua realização pessoal.
A personagem Jéssica representa o potencial de ruptura de uma geração com ascendência ideológica junto aos seus núcleos familiares e comunitários, que hoje dispõe de um repertório sociocultural incompatível com as estruturas tradicionais de dominação e exploração. Uma juventude que contesta as diversas formas de segregação que organizam o território e as relações entre centro e periferia, e constrói uma agenda própria de transformação, tendo no direito à cidade uma plataforma integradora de múltiplos temas: educação, trabalho, comunicação, democratização da mídia, participação e democracia, mobilidade, saúde, diversidade, sexualidade etc. Esses jovens ocupam espaços públicos e, por meio de diversas linguagens, definem estratégias e criam novas táticas para denunciar desigualdades, democratizar o espaço urbano e construir novos direitos.9
Polarizando a estrutura
Apesar de Jéssica ser o elemento polarizador, será Val que conduzirá o drama ao seu desfecho, o que ocorre em dois movimentos: primeiro, na cena em que, depois de dez anos vivendo na casa dos patrões, pela primeira vez a empregada Val entra na piscina motivada pelo sucesso da filha; depois, na cena em que a propriedade impõe seu poder com o “esta casa ainda é minha” decretado pela patroa Bárbara. Logo em seguida, Val rejeitará a condição de doméstica e seguirá a filha para construir seu próprio núcleo familiar na periferia.
Na estrutura da obra, esse movimento tem um forte sentido emancipatório. Porém, é significativo que na última cena do filme, quando perguntada pela filha o que fará após se demitir, Val responda: “Vou dar meu jeito, quem sabe como massagista”. Assim, a obra deixa uma advertência: a terceirização, a precarização e a informalidade como perspectivas reais para mãe e filha, numa visão mais profunda do destino e da função de trabalhadores e classes populares na sociedade atual.10
O clímax dramático coincide, desse modo, com a possibilidade de deixar o emprego, o que converte o trabalhador em mercadoria e constitui o mercado de trabalho, mas também representa sua possibilidade de libertação dos vínculos de servidão.11 Uma passagem do abstrato para o concreto condicionada pela valorização do salário, proteção do trabalho, oferta de seguro-desemprego e requalificação profissional – elementos que atuam em conjunto com a crítica ideológica da subserviência, que no filme é operada pela filha.
É assim que a polarização presente na narrativa e nos códigos visuais converge para uma síntese: a tensão entre os opostos dependência e autonomia, que se refrata nos conflitos entre destino e emancipação vividos por mãe e filha, e entre apartheid e cidadania, vividos por patrões e empregados e inscritos nas configurações espaciais que os envolvem. No filme, essas oposições organizam movimentos que transitam entre dois polos estruturais: ruptura e reconciliação.
O ponto de articulação entre estrutura narrativa e contexto é que Val e Jéssica compartilham possibilidades geradas pelo Brasil pós-Constituição de 1988, especialmente aquelas promovidas pela valorização do salário, proteção do trabalho e redução da desigualdade, com aumento da renda familiar e ampliação do tempo dedicado aos estudos pelos filhos das classes trabalhadoras. É nesse sentido que o elemento gerador da polarização e da ruptura do pacto democrático (até então aceito pelas elites) seria o próprio avanço do programa instituído em 1988, que em círculos concêntricos foi se alargando pelo protagonismo sucessivo de cada um dos principais atores, estruturados na resistência à ditadura. É esse movimento em espiral que parece ter se esgotado – não por ter se cumprido, ou por uma ausência de projeto para sua continuidade, mas pelas próprias limitações contidas no pacto de 1988 para incorporar seus efeitos.
O ressentimento das classes médias
No filme, código visual e narrativa centralizam a polarização no território dos patrões. Uma família cuja casa e relações estruturam-se no tripé ostentação, ócio e alienação, confortavelmente inserida entre os 20% mais ricos. Ao mesmo tempo, quando o patrão de Val declara ter herdado seu patrimônio do trabalho árduo do pai, isso indica uma riqueza produzida pelo trabalho, mais próxima das classes médias que das elites. Os patrões de Val seriam, então, herdeiros de empregados especializados e profissionais liberais que, durante a industrialização concentradora do século passado, acumularam para gerações futuras e passaram a reproduzir práticas tradicionais de exploração das classes subalternas. Essa família também retratou a existência de divisões dentro da classe média: o patrão Carlos e o filho Fabinho se sentem atraídos pela trajetória de Jéssica e esboçam vínculos de solidariedade com seu projeto. Mas, conforme Jéssica vai se revelando uma ameaça aos privilégios de classe, o ponto de vista excludente de Bárbara vai se impondo sobre os demais.
Outra virtude do filme é a vocalização dos interesses de classe por Bárbara, o que retrata uma dimensão atual da polarização: ter um de seus núcleos no ambiente doméstico, onde a empregada liberta a mãe tanto para a realização pessoal como para a exploração pelo mercado de trabalho. Uma liberação vital para a estrutura familiar, quando mulheres provedoras e chefes de família se multiplicam rapidamente – nos últimos dez anos, pularam de 18% para 40%.12 Esses mecanismos foram impactados pelas recentes políticas distributivas e de ampliação de direitos, sem contrapartidas a segmentos que se consideraram prejudicados.
Ao longo da narrativa, classes médias e trabalhadores compartilham alguns elementos, como mérito individual e alienação política. Para ambos, mobilidade e condição social resultam do mérito pessoal, o que no filme é expresso por Jéssica ao atribuir sua trajetória apenas a um professor de História que “abriu sua cabeça”, ou na cobrança dos pais por empenho individual do filho como único condicionante de sucesso. Porém, se classes trabalhadoras avaliam o mérito unicamente por suas obras, as classes médias podem somar ao desempenho uma manipulação virtuosa dos privilégios sociais, econômicos e culturais que acumulam e ideologicamente procuram incorporar como qualidades intrínsecas (o que permite que um fracasso no vestibular seja compensado por estudos no exterior, por exemplo). O fundamental é que, para nenhum dos dois, o sucesso decorre de processos históricos, lutas coletivas e direitos conquistados.13
Como resultante, configura-se uma situação em que patrões e classes médias percebem a melhora de vida das classes subalternas como ameaça a seus privilégios, e trabalhadores, apenas como fruto de seu esforço individual. Em comum, a alienação das lutas políticas e dos processos históricos que sustentam as dinâmicas sociais, e um mito de emancipação pelo consumo compartilhado por ambos (nesse sentido, universidade, educação e arte podem equiparar-se a piscinas, suítes e sorvetes gourmet).
O adeus à democracia
Nas últimas cenas, após deixar a condição de doméstica, Val segue ao encontro da filha, e pela primeira vez surge no filme um horizonte em perspectiva, tendo a periferia como ponto de fuga. Numa primeira camada interpretativa, essa cena significa a superação da sujeição pessoal. Mas ela também carrega o significado de uma ruptura entre as classes. Na verdade, a impossibilidade de uma aliança problemática, nunca efetivada, mas necessária quando a classe média é o “outro” que opera como paradigma ascendente das classes trabalhadoras. Um problema que se amplia quando o Estado se apresenta como representante dos interesses de uma única classe e, ao mesmo tempo, aquilo que chamamos de classe média seja uma miríade de identidades.
Contudo, tanto a polarização como o golpe jurídico-parlamentar de abril de 2016 ganham maior inteligibilidade se compreendidos por meio da ruptura do pacto democrático instituído pela Constituição de 1988. Um tema que, com diferentes enfoques, vem sendo trabalhado de forma complementar e produtiva por Singer, que explora a trajetória do PT e os limites do lulismo;14 por Nobre, que focaliza o presidencialismo de coalisão e o que chamou de peemedebismo;15 e por Safatle, que propõe o fim do ciclo aberto com a Nova República.16
No entanto, cabe lembrar que a resolução desse movimento que se inicia na resistência à ditadura militar não se dissocia de movimentos globais marcados pela ampliação crescente, e até agora irreversível, das desigualdades. E, se os estudos de Piketty tornaram irrefutável que essa é uma tendência estrutural do capital,17 é importante lembrar que um modelo de desigualdade crescente também é incompatível com qualquer projeto democrático.
Por isso, movimentos que eclodem repletos de semelhanças tanto na periferia global das jovens democracias latino-americanas como nas sociedades hegemônicas do Hemisfério Norte nos obrigam a considerar que a atual polarização pode estar associada a processos mais amplos e profundos, o que envolve a revisão das estruturas que sustentaram as democracias ocidentais do século XX. Em especial, que o poder do voto popular é disfuncional aos interesses corporativos transnacionais, financeirizados e expansionistas. E, ao mesmo tempo, que o sistema representativo é insuficiente para dar conta da demanda por participação e complexidade das sociedades contemporâneas.
Em ambos os casos, seja esgotamento do pacto de 1988 ou crise global, assim como Que horas ela volta? não fala de retorno, mas da chegada do novo, a crise atual também parece não encontrar suas referências no passado, mas em necessidades que se impõem tanto aos que pretendem a manutenção de privilégios como aos que aspiram por mais democracia e emancipação. Tudo isso torna impossível a manutenção dos conflitos recalcados e, entre o trágico e o sublime que caracterizam as estruturas dramáticas, aponta para uma profunda redefinição da forma como vivemos a democracia e concebemos a igualdade.
Paulo Augusto André Balthazar é mestre em Ciências Sociais e pesquisador do Núcleo de Ruralidades (CPDA/UFRRJ).